São Paulo – O plano de governo do candidato à presidência do Equador, Alberto Acosta, pode ser resumido da seguinte maneira: vamos fazer tudo o que Rafael Correa deixou de fazer porque começou a “entortar” para a direita. Ex-ministro, ex-amigo e ex-correligionário do presidente equatoriano, Acosta deixou o governo da Revolução Cidadã em 2008, pouco antes que o povo aprovasse nas urnas a nova Constituição Plurinacional – cuja elaboração ele coordenou sentado em sua cadeira de presidente da Assembleia Constituinte.
De lá para cá, a distância política em relação a seu ex-pupilo só fez aumentar: as críticas pontuais foram paulatinamente dando espaço a diferenças ideológicas mais profundas, e a esperança de provocar mudanças na orientação do correísmo enterrou-se. Para recuperar as raízes do projeto que elegera Rafael Correa pela primeira vez, em 2006, era preciso romper de vez com o presidente e lançar uma alternativa eleitoral. Assim nasceu a Coordenadora Plurinacional pela Unidade das Esquerdas, ou simplesmente Unidade Plurinacional, que agora Alberto Acosta representa como presidenciável. O grupo é formado por uma constelação de movimentos políticos e sociais que paulatinamente foram se frustando com as ações de Rafael Correa. Queriam mudanças estruturais e, asseveram, o governo não correspondeu.
O cerne das diferenças está na Constituição. Apesar de tê-la aprovado devido à maioria que seu partido, Alianza País, obteve na Assembleia Constituinte, cerca de 70%, Rafael Correa teria se distanciado dos “inovadores” preceitos da Carta equatoriana – sobretudo da Plurinacionalidade, dos Direitos da Natureza e do Bom-Viver, dizem os novos inimigos da Revolução Cidadã. A inconstitucionalidade correísta estaria refletida em medidas concretas, como as novas leis de Mineração e Águas, além das supostas intervenções do presidente no Judiciário e sua “incorrigível” indisposição a dialogar com opositores, mesmo com os mais construtivos.
Alberto Acosta registrou sua candidatura no Conselho Nacional Eleitoral (CNE) no último dia 13. Escolheu como companheira de chapa outra dissidente do governo, Marcia Caicedo, primeira mulher negra a concorrer a uma vaga no Palácio de Carondelet, sede do Executivo nacional. A RBA foi atrás de saber o que tem a dizer esse economista de 64 anos, que até o primeiro semestre deste ano dava aulas na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e, até um ano atrás, sugeria um divórcio completo com a administração pública. A entrevista, concedida por email, você lê abaixo.
Quando te entrevistei pela primeira vez, em 2009, perguntei se você seria candidato à presidência dali quatro anos. Você me respondeu: “Não sei, não trouxe a bola de cristal.” Claro que naquela época não era – como nunca é – possível prever o futuro, mas você já tinha alguma intenção, por menor que seja, de lançar-se como alternativa ao presidente?
Não, não havia. Minha candidatura responde à construção da unidade dos partidos e movimentos de esquerda no Equador, através da Unidade Plurinacional. Esse processo começou a desenvolver-se apenas no ano passado, quando as forças progressistas do país se juntaram para resistir à decisão do presidente Rafael Correa de modificar inconstitucionalmente a Constituição e legitimar o controle da Justiça pelo Executivo.
No último mês de agosto, a Unidade Plurinacional concluiu um processo de eleições primárias inédito no Equador – e os participantes me elegeram como candidato à presidência. Havia seis pré-candidatos, e todos percorremos conjuntamente o país. Foi um exercício democrático de solidariedade, em que deixamos de lado os egos, as vaidades e as ambições desmedidas. Foi realmente histórico.
Por que acredita que os membros da Unidade Plurinacional tenham escolhido você – e não outro – como representante da esquerda equatoriana para estas eleições?
Todos os companheiros que participamos do processo estávamos perfeitamente qualificados para assumir o desafio de disputar a presidência contra Rafael Correa. Acredito que minha nomeação tenha sido o reconhecimento de um acumulado histórico de coerência com as lutas dos movimentos sociais e da esquerda equatoriana. Não tenho ambições pessoais. Ao me candidatar, ratifico meu compromisso de luta para enfrentar as traições cometidas pelo governo de Rafael Correa.
Você acredita que sua condição social e seu parentesco com o ex-presidente Velasco Ibarra, que governou o Equador por cinco vezes e patrocinou uma contrarrevolução, pode ser uma barreira ao voto popular e indígena?
Minha relação e meu compromisso com o movimento indígena são antigos. O movimento indígena tem sido protagonista da política nacional desde o levante de 1990, e em todo esse tempo estive a seu lado. Antes, havia me vinculado ao movimento sindical e à luta de amplos setores populares contra a assinatura de um Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e contra o próprio neoliberalismo. Contudo, não acredito que o voto indígena seja uniforme. Há diversas tendências políticas dentro do mundo indígena, o que faz com que os indígenas nem sempre votem por candidatos indígenas ou por aqueles apoiados por suas organizações.
Você é político radical?
Alguns meios de comunicação recentemente utilizaram o termo “radical tolerante” para me definir. Tudo depende de como você interpreta o termo radical. Se radical é ir à raiz dos problemas e propor uma ruptura com a ordem vigente, então, sim, sou radical. Mas acredito que esse tipo de medida só pode ser tomada com amplo consenso social, dialogando com os diferentes setores. É preciso também ter propostas concretas de mudança. O socialismo é um processo de democracia sem fim. Então, defendemos uma democracia radical. Sempre mais democracia, nunca menos.
Você diz que, se vencer as eleições, fará um governo para todos os equatorianos. Porém, muitas de suas propostas – reforma agrária, fim dos monopólios, redistribuição da água, justiça tributária etc. – vão ferir os interesses dos setores mais estabelecidos da sociedade equatoriana. Como pretende viabilizar essas proposta sem suscitar reações violentas?
Construir um governo em favor das maiorias supõe inevitavelmente gerar conflitos com as elites que têm se beneficiado historicamente da injusta distribuição da riqueza nacional. Caso contrário, não seria um governo de mudanças, mas sim uma administração que apenas reeditaria a atual ordem das coisas. No Equador, o Índice de Gini da concentração da terra é de 0,81 – o mais alto do continente. Igualmente, o controle sobre a água é desigual. Apesar de a Constituição ter estabelecido mecanismos de democratização, ainda hoje apenas 1% dos beneficiários da água controlam 64% do caudal de irrigação. Enquanto isso, os camponeses, que representam 84% dos usuários de água no campo equatoriano, controlam apenas 13% das fontes.
A evasão fiscal no Equador soma cerca de 40% do total de tributos que poderiam ser pagos – e isso apesar dos avanços recentes em se combater a sonegação. Nem preciso dizer que os que mais ganham são os que mais evadem impostos. Num país onde 2 milhões de pessoas sobrevivem com um subsídio de 35 dólares mensais, as cem principais empresas lucraram durante o governo de Rafael Correa 50% mais do que no período anterior, que era abertamente neoliberal. Apenas a banca privada lucrou no ano passado 52% mais do que em 2010.
Seu plano de governo pode ser resumido em um só ponto: apreço à Constituição. Mas há dificuldades práticas em transformá-la em realidade. Para você, Rafael Correa tentou e não conseguiu aplicar a Constituição ou, pelo contrário, simplesmente não acredita nela?
O processo constituinte se caracterizou por uma forte participação de setores organizados da sociedade. Grande parte das exigências históricas dos movimentos sociais, que foram sendo elaboradas durante quase três décadas de luta contra o neoliberalismo, se condensaram no texto constitucional. O distanciamento entre o presidente e a Constituição corresponde ao mesmo distanciamento que se deu entre Rafael Correa e os movimentos sociais. A Constituição foi modificada em temas tão sensíveis como a independência dos poderes do Estado. O governo viola a Carta cotidianamente ao não proibir a privatização da água, ao não realizar a reforma agrária e ao não democratizar os meios de produção – e também na falta de mecanismos de controle social e participação democrática dos cidadãos na tomada de decisões. O processo constituinte foi o ponto mais alto do processo de mudança no Equador. Desde então, essa suposta Revolução Cidadã não fez nada mais do retroceder politicamente.
Em seus discursos, Rafael Correa costuma ser bastante agressivo com a oposição, inclusive com a oposição de esquerda – ou seja, vocês. Acredita que essa agressividade vai extravasar para a campanha?
Rafael Correa já manifestou em diversas ocasiões que seus maiores oponentes são a esquerda, o movimento indígena e os ambientalistas, aos que está sempre menosprezando como “infantis”. De fato, somos seus maiores oponentes nesta campanha eleitoral. Até porque, ao defender o modelo de acumulação extrativista, que tem sua origem no período colonial, Correa se coloca ao lado dos demais candidatos da direita. Seu estilo desrespeitoso, cheio de insultos e desqualificações aos adversários revela uma maneira caudilhista de entender a política – e isso nós repudiamos. Para nós, a política deve ser atravessada pelo respeito à diversidade de opiniões, culturas e visões de mundo existentes no país. Já disse: sempre mais democracia, nunca menos. Essa diferença não pode ser desprezada, porque define posturas contrárias entre nós e o correísmo.
Qual é a grande diferença entre os projetos personificados por Rafael Correa e Alberto Acosta?
Basicamente, o governo de Rafael Correa corresponde a um processo de modernização do Estado e do sistema capitalista no Equador, com um desmedido aparato de propaganda que pretende criar a ficção de um processo revolucionário. Já a proposta da Unidade Plurinacional resgata as bandeiras históricas dos movimentos sociais e da esquerda equatoriana, propondo um programa de mudanças que democratizem o país e gerem um mecanismo de redistribuição da riqueza mais justo e igualitário, transformando o modelo de acumulação econômica. Nossos objetivos estão inseridos no marco da participação cidadã. Igualmente, estamos dispostos a declarar guerra à corrupção, assim como à insegurança pública provocada pela delinquência e o crime organizado. Em ambos campos, iremos respeitar profundamente os direitos humanos, propiciando mais justiça social do que justiça penal, mais prevenção do que repressão.
Como presidente da República, vai manter o dólar estadunidense como moeda corrente no Equador? Como o senhor vê a ideia de adotar novamente o sucre, desta vez como sistema único de circulação regional?
Nós apoiamos a proposta governamental de construir uma moeda própria regional. Entendemos que esta é uma necessidade que faz parte da evolução do atual processo de integração na América do Sul. Sobre a dolarização, sem dúvida é uma mancha sobre o país, e os responsáveis por ela continuam impunes. Além das críticas que já formulei contra a dolarização, e que mantenho, neste momento seria impossível modificar a atual estrutura cambial e monetária do Equador. O ideal seria poder substituir o dólar por outra moeda, como parte de um processo de introdução de uma moeda única na região. Para que isso aconteça, porém, ainda temos um longo caminho pela frente.
Vocês pretendem seguir com a mineração industrial a céu aberto nas regiões indígenas e amazônicas?
Nossa posição sobre a mineração é realista, e também transformadora. Devemos abordar adequadamente a mineração que realmente existe no país – a artesanal e de pequena escala – gerando inclusive alternativas produtivas nas regiões e setores mais afetados. Quanto à megamineração, nossa proposta é clara: faremos um debate nacional em que o conjunto da população vai decidir se quer ou não quer mineração a céu aberto no Equador. Dentro desse debate nacional, nossa posição é que, num país como o nosso, a megamineração traz mais prejuízos do que vantagens, inclusive econômicas. Não vamos apoiá-la.
Caso vença, você não tem medo de que seu governo se torne “refém político” do movimento indígena?
Os únicos reféns políticos que conheço no Equador são os governos atados pelos interesses das elites e dos grupos econômicos nacionais e internacionais. Rafael Correa é um deles. Os movimentos sociais não fazem reféns. Suas propostas são democráticas, e por isso é que trabalhamos com eles.
Como pretende conduzir a cooperação entre Equador e os países da região? Pretende pedir a inclusão do país no Mercosul, como fez a Venezuela?
Temos uma posição decididamente favorável à integração regional. Queremos fomentar a participação do Equador em todos os espaços de integração política, econômica e social. Porém, nossa visão sobre qual é o melhor modelo de integração regional vai propor a mudança de mecanismos que não consideramos adequados. Por exemplo, questionamos a ideia de uma integração regional que se limite a acordos comerciais e à interconexão energética. Sem marginalizar a economia, vamos impulsionar principalmente as propostas de integração política que potencializem a capacidade da América do Sul de se apresentar como um bloco capaz de incidir no contexto mundial.
Como avalia as obras da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e o papel do governo e das empresas brasileiras como motores das grandes obras de infraestrutura no continente?
A comunidade sul-americana não deve ser reduzida a uma associação para conduzir projetos de rodovias ou créditos financeiros que acabam favorecendo essencialmente aos setores vinculados ao mercado mundial. Devemos revisar o IIRSA para levar em consideração as preocupações da gente que quer ver estradas construídas como polos de desenvolvimento, e não apenas como autopistas que atravessam bolsões de miséria para levar contêineres destinados à exportação. A política brasileira no Equador é clara: procura introduzir suas empresas transnacionais para a realização das obras de infraestrutura. No Itamaraty ainda se confundem os interesses privados das empresas brasileiras com os interesses nacionais do Brasil e da população.
Em sua visão, o Brasil é um país subimperialista na América do Sul?
A política exterior ainda está em disputa no Brasil, entre uma vertente claramente integracionista e outra, que é subimperialista. Basta ver como o Estado brasileiro fomenta suas grandes empresas transnacionais, impondo condições muitas vezes inaceitáveis a seus vizinhos. Parece-me que isso é também parte de uma disputa histórica do processo político brasileiro. A integração regional virá quando se aprofundem as tendências emancipadoras no Brasil. Não são processos independentes. Estou convencido de que o povo brasileiro conseguirá sua emancipação definitiva.
Fonte: Rede Brasil Atual.