Entrevista com Wilson Araújo e Souza

Por Clóvis Campêlo.

– Como você definiria a sua formação poética? Quais os autores ou movimentos literários que mais o influenciaram?

– Minha formação (ou deformação?) poética se deu basicamente com elementos da música popular. Aquela atmosfera da década de 1960 (a grande década do século breve), com os compositores muito ilustrados pela cultura de modo geral, fazia fortemente a cabeça da gente na transição para a universidade. Um poema em especial foi determinante para que minha vontade de fazer poesia realmente se manifestasse: Acrilírico, de Caetano Veloso, que aliás não foi musicado. “Olhar colírico/ lírios plásticos do campo/ e do contracampo/ telástico cinemaScope/ teu sorriso/ tudo isso/ tudo ido e lido e vindo do vivido… ainda canto o ido, o tido, o dito, o dado, o consumido, o consumado ato do amor morto motor da saudade…”. Meu primeiro poema foi um pastiche de Acrilírico. Mas foi publicado na revista Equipe (muito boa) da Sudene. Eu ainda estava em São Luís.
Movimentos, movimentos… A parafernália infernal da tropicália com elementos da poesia concreta e dos manifestos de Oswald de Andrade. E o movimento diário dos diários de notícias.
Autores. E autores. Não sei se me influenciaram tanto. Entre a angústia e o êxtase da influência, desconfio que não esteja à altura das influências. Entrementes entre coração e mente, digo que gosto da minha fluência. Com ou sem influência. Confluências. Sou fã incondicional da poesia concreta e do paideuma pai de uma proeza nada igual. Mas entendo que não me preparei o suficiente para uma proeza pró Ezra. Agora tem os autores que admiro muito: Sousândrade, trindade de Andrade, Bandeira da vida inteira, Augusto de cidadecitycité, Afonso Ávila da vila rica em códigos e signos, Caetano medula e osso, Gil rouxin’roll, anjo Tor(qua)to da (van)guarda, Leminski in the sky with Lennon, o multitudo Arnaldo Antunes, muito de tudo do Frederico Barbosa. No Recife, gosto muito de Alberto Cunha belo e sou muitíssimo empolgado com a leveza densa condensada em agudeza de Almir Castro Barros. E a identidade com pedrAmérico (“meus ais viraram assobios”) e Jomard Muniz de Brito e rito e ritual e ritmo do mito do orfeu do carnaval é total. E João Cabral de Melo Neto fica sendo o nome mais belo do verso.

– Você nasceu na cidade de São João dos Patos, no interior do Maranhão. Como foi esse percurso de lá até a metrópole, no caso o Recife, e como isso influiu na sua elaboração poética?

– Nasci na Vila de Sucupira (hoje cidade, Sucupira do Riachão), distrito de São João dos Patos. São João dos pat(h)os. São João dos pathos e ethos do poeta. Uma cidade pequena, pacata, mas que deu a primeira prefeita (Noca Santos) do Brasil. Chefona política mais durona que os habituais chefes políticos. Uma cidade sem ginásio, sem cinema, sem padre, sem rua calçada. Fui para Caxias (terra morena de Gonçalves Dias como diz o xote de João do Vale gravado por Luís Gonzaga). Com 12 anos de idade. Que mudança! Ruas e mais ruas, calçadas, ginásio, cinema e… bispo! Comparativamente, uma metrópole. Foi meu encontro com a cultura urbana, com o mundo. Já fui, digamos, pronto pra São Luís (azulejo azul vejo a luz de São Luís). Em São Luís: casa de estudante, sofrimento, cinema e mais cinema, Sudene, Faculdade, coisas da cultura não mais apenas como diversão. E… o Tropicalismo. Cheguei em Recife (1970), com essas coisas todas batendo e debatendo no meu sistema (como diz minha irmã Iracema) e já compenetrado de poeta – ou de antipoeta. Foram então andanças e danças de um sobrevivente com ambição intelectual. A passagem por Caxias foi determinante. Adentrei a labiríntica pernambucália como um, digamos, ludovicense metropolitano antenado com o movimento soteropolitano-cosmopolita da tropicália.
Aqui fixado, aderi ao fluxo do momo sapiens. Não mais o ir-e-vir(e ir) do homo duplex, mas o passo em vai-e-vém de todas as variedades do momo sapiens.

– O poeta é um fingidor ou é um demiurgo? Qual o papel do poeta no mundo de hoje?

– Nem a dicção farsesca, nem a convicção messiânica. O poeta é um homem como outro qualquer, só que diferente, pela ambição de ser antena da raça. Talvez o poeta seja aquele que Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, poetizou filosoficamente: “Nada sois que eu não me sinta”. Ou o outro da razão – o eu da loucura. A loucura falando na primeira pessoa (como mostrou Erasmo) – da lucidez. Se, como disse Descartes, o bom senso é a coisa mais bem partilhada desse mundo, o poeta quer partilhar o nonsense – ou o bom senso partilhando o nonsense. Pense!
O papel do poeta no mundo de hoje é ser e estar antenado para captar a demanda do mundo (do mundo da oca ao oco do mundo) e o inusitado (do âmago ao mago). Divago?

– No seu texto a forma e o conteúdo se confundem e se fixam nas aliterações, no ritmo, na sonoridade das palavras. Você acha que o leitor sempre estará pronto para esse jogo interpretativo? Ou o poeta deve desprezar o feed-back?

– O poeta não tem que desprezar o feed-back. Mas deve construir o poema a seu modo, incômodo que seja. Oswald deu a melhor resposta: “A massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”. Acho que serei no máximo um cream cracker querendo alimentar feed-back. O que o poeta quer mesmo é ser comido, digo lido. Lido ou colido?

– Um poema é feito de sangue ou de signos?

– Há uma gota de sangue em cada poema (Mário). Gota gota a gota uma gota nunca pinga abruptamente. Nem impunemente. Gota a gota, como no piano de Jobim. Bom.
Todos os signos, o signo in-voluntário da pátria minha língua (minha língua é meu sotaque: pedrAmérico).

– Na atual conjuntura da literatura pernambucana, você acha que a sua poesia é devidamente reconhecida ou você se sente marginalizado?

– Eu me sinto (ou me situo) automarginalizado. Discreto que desapareço, reapareço com toda a nitidez da minha timidez. Mas até que sou um marginal que deu certo. Até título de cidadão recifense eu recebi este ano. Você não tem noção de qual foi a minha emoção. Este ano andei aparecendo desde o Sesc (Santo Amaro, que encenou meus textos) até esta, digamos, praça Clóvis. Mas sou muito arredio! Só gosto da badalação nos amigos. Gosto mesmo é de conversa de botequim. De preferência sobre cinema. Mas entendo que tem uma coisa estranha na minha linguagem que não entranha bem na viagem, digamos, canônica do lugar – talvez seja mediocridade mesmo. Meu ir-e-vir vai-e-vem num pra-lá-pra-cá meio que por fora do me cita que te cito e juntos citemos Gilberto Freyre ou recitemos Ariano Suassuna.

– Na minha opinião, a sua poesia é muito mais sonora do que imagética. Como explicaria essa sua paixão pelo cinema e que relação ele poderia ter com o seu trabalho poético?

– Minha paixão pelo cinema é um vício que é uma virtude: sofro (ou melhor, gozo) de cinefilia. Escurinho do cinema: um onde chamado desejo. No escurinho do cinema: um Brando chamado desejo, um desejo chamado Gilda. Mas, de fato, os meus textos têm mais relação com a música. O tropicalismo fez isso. Na verdade faço poesia porque não vinguei como letrista de música. Gosto mais do letrista que do beletrista. Mas entendo que aqui e acolá há travelling admirando Bogart ou Godard, um film noir ou Renoir. Corte, digo que não vinguei como letrista, mas para mim a poesia é o almanaque da alma.

– Existe paz na poesia? Ou o poeta vive dividido entre a utopia e a realidade?

– A poesia não tem paz: a vida quer ser poema. O poeta é um apanhador, no campo, de centelhas. O poeta capta e coopta os flagrantes da vida (sur)real e cheira o pó do ópio da utopia.

– Você se sente um autor engajado? Acha que o poeta, com o seu trabalho, deve ter a pretensão de mudar o mundo?

– Glauber Rocha, a inquietação em pessoa – e no artista, cita Mário Faustino em Terra em Transe, pela boca de Jardel Filho, que faz o papel principal (um intelectual politicamente engajado): a poesia e a política são demais para uma só pessoa. É realmente difícil ser militante poético e político num mesmo diapasão. No mesmo diapasão, Marcelo Mário de Melo é esse elo: uma pessoa plenária plena de ária. O que eu quero ser quando crescer? Marcelo Mário de Melo! Quando fiz ostensivamente militância política como cidadão, servidor público, sindicalista (tempo de abertura, de redemocratização, de re-organização da sociedade, de re-construção da cidadania), fiz pouca poesia. Fiz mais palavra de ordem (o preço da cidadania é a eterna militância) para panfletos e manifestos. Mas acho que sou engajado. Inclusive pela inquietação com a linguagem. Mas também pela inquietação com a realidade – como neste poemeto de circunstância, circunstância com Daniel Dantas:
TOGA DE COLARINHO BRANCO
o promíscuo
conspurca
o conspícuo
(vide a capa capital de Carta Capital com Gilmar Mendes). E neste poema anterior à crise (a crise fede, quem escafede da crise?)
MADE IN US(UR)A
o inferno
de wall street
são os outros

horror, o horror!

o teor do horror
em estado de terror

em terror de ESTADO

democracia
da suprema corte

e da supremaCIA!

O cidadão é do poeta. O poeta é do cidadão.
Não digo a pretensão de mudar o mundo. Mas te(n)são (tenso, logo existo) de domar a demanda do mundo. Com pulso político e impulso poético. Com pulsões eróticas e expulsões neuróticas.

– Para finalizar, a internet é uma coisa boa ou ruim para a literatura de um modo geral? Como você lida com essa nova forma de comunicação?

– A internet é mais ou menos uma redoma? Quem doma a rede? Quem dorme na rede? Meu ir e vir ainda não é do ritual virtual. Ainda estou mais no lugar que no login. Ainda estou mais no livro sete que no livro site. Ainda estou mais nos arroubos do Emílio que nas arrobas do e-mail. Mas chego lá, na miríade de ondes (nômades?) e ondas (mônadas) da circunavegação inter(pla)netária.

Recife, 2009

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