Por Marco Vasques, para Desacato.info.
Gleber Pieniz é jornalista e mestre em Artes Visuais – História, Teoria e Crítica. Trabalhou em jornais, em rádio e em assessoria de imprensa cobrindo as áreas da cultura por muitos anos. Atua desde 1998 como professor e crítico de arte e, desde 2012, como curador de exposições. Coordena o programa Laboratório de Arte, onde presta assessoria e orientação para artistas desde 2015. Foi representante do setor de Comunicação no Conselho Municipal de Política Cultural de Joinville (2010-2014) e membro do Conselho Consultivo da Galeria Municipal de Arte Victor Kursancew (2015-2019). Fez a montagem de exposições para a Fundação Cultural de Navegantes (2019-2021) e a avaliação de projetos culturais para Itajaí (2017) e Blumenau (2021). Em 2021, recebeu o Prêmio Aldir Blanc de Trajetória Cultural pela sua longa atuação no setor, notadamente no âmbito da artes visuais. No dia 10 dezembro, sábado, o artista visual Rogério Negrão inaugura, em Joinville, a exposição “Cidade Fabricada”, no Instituto Internacional Juarez Machado, com curadoria de Gleber. A exposição propõe um diálogo entre passado, futuro e presente da cidade da flores, e, para isso, se vale de fotografias, desenhos técnicos, registros de patentes, plantas baixas, mapas e outras imagens documentais manipuladas para forjar paisagens tão familiares quanto irreais e estimular simultaneamente a noção de pertencimento à cidade, mas também a reflexão sobre um lugar estranho mesmo aos seus habitantes. Em entrevista, exclusiva para o Portal Desacato, Gleber Pieniz dá um panorama sobre arte, política, estética e poética no atual contexto joinvillense.
Gleber, gostaria de começar nossa conversa sobre a cena visual de Joinville já que você e Roseli Sartori têm atuado e dialogado com vários espectros das artes visuais da cidade?
Acho um pouco infrutífero falarmos de uma “cena” das artes visuais em Joinville quando há duas movimentações distintas entre o ambiente cultural e os agentes que atuam nele: enquanto os artistas empenham-se individualmente em produzir, em desenvolver-se, em estabelecer novos fluxos de formação, de colaboração e de circulação artística, as instituições se enfraquecem, se apequenam e retrocedem. Essa diferença se acentuou durante a pandemia, quando se viu uma movimentação muito forte dos artistas para seguirem estudando, produzindo, se reinventando e encontrando formas alternativas de manterem o circuito em funcionamento, ao passo que tanto o sistema público quanto o sistema privado de arte alinharam-se ao espírito político vigente e se tornaram igualmente mais restritivos e mais conservadores. Não há uma conexão orgânica entre a atuação dos artistas e as instituições de suporte, de estímulo ou de divulgação que dê conta daquilo que está sendo produzido e se instalou entre nós uma tolerância bovina ao mínimo obrigatório, ao consensual e ao protocolar, como se o improviso fosse a meta e o amadorismo fosse a regra. Como resultado desse descompasso, boa parte dos artistas tem procurado oportunidades de formação, de promoção e de diálogo com o público fora da cidade, em ambientes mais profissionais, mais acolhedores e mais maduros.
Outra questão que penso ser importante é a função, a profissão, ou, vamos dizer, o exercício da curadoria. Afinal, o que define uma curadoria? Qual o papel de um curador?
Tento exercer a curadoria como um exercício de mediação, afinal a nossa atuação se dá nas conexões entre o artista e o espaço expositivo, entre o artista e o público, entre o artista e o sistema da arte. Cumprimos uma função condicionada, sempre tensionada entre a produção artística, o alcance institucional e a cultura do nosso tempo, por isso acho um equívoco falar de curadoria independente quando o agente mais dependente e funcional de todo o mundo da arte é justamente o curador. Um certo tom de independência ainda é possível como exercício de pensamento e de diálogo (na forma do texto curatorial ou de catálogo, da entrevista ou da conversa com o artista e com o público), mas essa também é uma função precária, parcial: ela já nos chegou fragilizada como uma herança da crítica de arte que gradativamente perdeu espaço na esfera pública e migrou um tanto modesta – talvez até lutando por sobrevivência – para dentro da curadoria. Para mim, a parte mais gratificante e definidora do exercício da curadoria é o contato com as crises e com os êxitos de ateliê, os contrapontos que nascem entre a criação artística e a reflexão crítica, os diálogos que acontecem em primeira mão entre artista e curador, subjacentes e anteriores a qualquer projeto expositivo, uma colaboração cuja complexidade costuma permanecer invisível sob a superfície do evento e do espetáculo.
Vivi por anos em Joinville. Conheço bem a sua faceta refratária ao trabalho criativo. Qual a realidade, em sua perspectiva, dos trabalhadores da arte e da cultura na cidade?
Os artistas de Joinville ainda não se reconhecem como trabalhadores, infelizmente. Parte do descrédito do joinvilense pela arte é fruto da omissão do artista como cidadão e como trabalhador. Por mais que as práticas da arte tenham se dinamizado e se desdobrado como geradoras de riqueza e de renda que vão da saúde à educação, do turismo ao lazer e da pesquisa acadêmica ao desenvolvimento dos recursos humanos, o ímpeto de profissionalização, da organização como classe trabalhadora e mesmo dos esforços na disputa por poder simbólico e político junto à comunidade é subestimado por boa parte da categoria artística. As associações se tornaram espaços de acomodação e corporativismo, onde a combatividade deu lugar à reprodução estética e política de valores conservadores. Nossa memória é fraca, nosso mercado é pouco mais que uma piada de mau gosto e nosso histórico de conquistas precisa de afirmações constantes. Parece que estamos sempre começando do zero, tendo que voltar ao básico e, obrigatoriamente, tendo que sacrificar a maturidade poética ou a densidade artística em nome de uma democratização ou de uma via de diálogo popular eternamente incompletas. Seja para provocar as sensibilidades ou as consciências, o trabalho artístico propositivo sempre se ressente de certa obrigação de reconstruir, de recompor, de recuperar um legado que nunca se firma, que precisa ser sempre reafirmado, resgatado do esquecimento ou do projeto de estupidificação que restringe a arte ao entretenimento fácil, à distração para a criança ou pano de fundo para a folga do operário.
O diálogo com artistas que propõe linguagens e pensamentos tão distintos traz que motivação à curadoria?
Eu vivo o diálogo e a colaboração com o artista como uma alternativa ao exercício da crítica de arte tradicional. Durante muito tempo estudei e me preparei para a atuação como crítico de arte, embora hoje não encontre espaço social onde essa função possa acontecer de forma plena e pródiga. Trabalhando com os artistas, mobilizo as necessárias doses de tensão, de crise, de reflexão, de provocação, de criatividade, de paixão, de erudição, de pesquisa e de posicionamento que caracterizam o trabalho da crítica, embora o alcance e a abrangência desse diálogo não sejam proporcionais àqueles que se esperam de um ensaio ou de uma resenha tradicionalmente publicados em veículos especializados. Cada processo criativo e cada estratégia poética são únicos e se conectam de formas peculiares àqueles que são a trajetória do artista e o contexto onde ele atua, àquele tipo de interação que ele pretende propor ao seu público. Cada artista chega com um conjunto específico e original de referências, de gostos, de visões de mundo, de desafios técnicos e conceituais a serem resolvidos no percurso até a finalização de trabalho e, depois, até a abertura da exposição – quando outro tipo de diálogo, mais amplo, se estabelece nas relações com o público, com a instituição e com o mundo da arte. No limite destas peculiaridades, no espaço de colaboração que se estabelece entre cada artista e o curador, encontro espaço para as minhas próprias reflexões e para as minhas aspirações profissionais e cidadãs. Amo a arte e cada artista com quem eu trabalho me permite viver esse amor de maneira intensa e plena, todos os dias.
Como você vê, na condição de curador, a produção da cidade?
Joinville é uma cidade cujas dimensões acomodam todos os tipos de arte e tenho tido a felicidade de trabalhar com artistas cujas posturas e perspectivas sobre a cultura coincidem com as minhas. Como curador ou orientador/assessor de artistas através do Laboratório de Arte, dou prioridade a esse alinhamento político e estético porque ele cria resultados mais consistentes, dá solidez aos pactos poéticos e permite relações duradouras, que não se encerram em um ou outro projeto, mas permanecem abertas a colaborações de longo prazo. Fora desta bolha, em particular, vejo tanto artistas conscientes de que sua maturidade de pesquisa e qualidade de produção dependem de muito esforço e profissionalismo quanto artistas que ainda acreditam que o sucesso do seu trabalho atende a uma espécie de padrão ou perfil universal que possa ser cumprido. Há, enfim, um panorama bastante variado, onde encontro desde artistas mais arrojados quanto aqueles dispostos a suprir as expectativas do gosto mediano; produções mais experimentais, com poder para revirar as vísceras da própria linguagem, e produções superficiais, claramente inspiradas em modelos já esgotados pelo tempo. Há artistas empenhados, generosos, gregários, que extraem da relação com o outro combustível e razão, mas também há aqueles que se orgulham do próprio isolamento, que acreditam na arte como uma forma solitária – quando não solipsista – de produção. Há, sobretudo, um amadorismo que não se restringe às artes visuais, mas infecta parte significativa da gestão pública, da comunicação, do mercado de bens culturais e cuja dimensão é desproporcional se comparada àquela da produção artística relevante. Via de regra, encontro muito trabalho a ser feito: em poucos dias, ainda em dezembro, comemoro dez anos atuando como curador e, com Cidade Fabricada, fecho a conta de 50 edições de 30 exposições diferentes que tiveram a minha curadoria. É muito, mas ainda é muito pouco: como já havia falado na primeira resposta, há toda uma cena a ser construída e estruturada, há conexões a serem consolidadas, um patrimônio cultural a manter contra ataques constantes – e isso exige o compromisso de mais agentes (artistas, curadores, produtores, empresários, gestores) realmente profissionais atendendo a comunidade.
O que Rogério Negrão investiga, de fato, na exposição Cidade Fabricada?
Como artista, Rogério Negrão é um inventor de flagrantes impossibilidades: constrói máquinas disfuncionais, mapeia o inexistente e – no caso de Cidade Fabricada – engendra lugares utópicos. Nesta exposição ele apresenta apenas uma as tantas pesquisas que faz a partir de um vasto acervo de imagens (fotografias, pranchas de projeto, desenhos técnicos, plantas baixas, mapas, catálogos de produtos e símbolos, cortes esquemáticos, etc) e do arranjo destas imagens em séries com tema e abordagem bem definidos. Em Cidade Fabricada, especificamente, Negrão se vale da colagem digital para “fabricar” uma cidade implausível, apresenta imagens nitidamente manipuladas combinando elementos visuais documentais para erguer uma Joinville de sonho e pesadelo, um ambiente irreal e estranhamente familiar construído com signos reais. Com esta tensão, a exposição faz uma analogia poderosa ao pensamento contemporâneo que ainda cria mitos, que inventa realidades confortáveis e que faz da ficção e mesmo da mentira um lugar historicamente habitável.
Agamben diz que o contemporâneo é um diálogo com escuros, com as fraturas do tempo. Você crê que os artistas joinvillenses têm adentrado essa fronteira?
É uma questão difícil de responder, já que esses escuros e fraturas temporais são preenchidos de maneiras muito particulares, em diferentes graus, com transposição nem sempre precisa para quadros maiores. Há quem lide com a complexidade do tempo em escala privada, através de signos mais restritos e quase intimistas – caso de Tirotti, Rosi Costah, Roseli Sartori, Costa Pereira e Linda Poll, só para citar alguns – e há artistas que abrem sua abordagem em códigos mais transparentes, historicamente delimitados, capazes de conexões mais universais – como Bernardete Merino, Motta e Sérgio Adriano H. e mesmo Schwanke. Creio que nem sempre esse diálogo da arte com os escuros e as fraturas do tempo se coloca em perspectiva crítica e, assim, torna visíveis manobras muito diversas como citações, apologias, tributos, paródias e mesmo nítidas cópias. No caso específico de Joinville, por exemplo, nos permite flagrar tanto poéticas mais experimentais quanto conservadoras.
—
Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.