Por Lucas Martin e Ezequiel Lopardo na Revista Trincheira.*
Atraído pela ameaça de instalação de uma fábrica da Monsanto na província argentina de Córdoba, Manu Chao se reuniu com moradores das Malvinas Argentinas e fez um show intimista para os cerca de 20 militantes que se concentraram na praça central da cidade e que há mais de um ano resistem contra a multinacional.
A seguinte entrevista foi concedida pelo cantor francês em Buenos Aires, após sua passagem pelas Malvinas Argentinas. O Diferente, Pero no Mucho reproduz os principais trechos da conversa de Manu Chao com os jornalistas Lucas Martin e Ezequiel Lopardo, realizada em novembro do ano passado:
Em geral, para todo artista é difícil definir para quem ele cria, mas o certo é que todos na hora de eleger um estilo, uma estética, uma temática, acaba definindo. Como é isso para Manu Chao?
Para minha maneira de encarar as coisas, minha arte sinceramente é para todo mundo. Egoisticamente lhes diria que é para mim. É minha pequena terapia pessoal para aguentar esse mundo. Assim me curo, assim o aguento. A partir daí, a quem sirva. Mas é para todo o mundo. É um processo interno, pessoal e serve para mim, e se esse processo serve para mais pessoas, que é o que tem ocorrido, pois que sejam bem-vindos.
Uma emoção, uma palavra, uma melodia. Minha arte é música mais que tudo; há mais coisas, mas se falamos do que propôs, é assim. Eu nunca pensei se era dirigido a alguém. Minha arte está dirigida a quem lhe sirva. No bom sentido da palavra, a quem ela possa ajudar.
Aqui Mano Negra [antigo grupo de Chao] repercutiu, mas quando saiu o disco solo Clandestino contribuiu para que nos encontrássemos com nós mesmos, com nossa Pátria Grande. Nos ajudou a nos vermos sem vergonha como indígenas, negros, mestiços, pobres. A sentirmos novamente como parte de Nossa América e menos ianques. Como sentiu esse primeiro disco solo?
Quando respondi a primeira pergunta, de que minha música é para quem sirva, eu penso que Clandestino serviu. Serviu a isso em um momento, em uma época histórica — final dos anos 1990, 2000 —. Este disco foi como um pequeno tubo de oxigênio para respirar um pouco e sair para a luta de novo. Eu o vi assim e me serviu assim.
Em suas músicas há um apoio — às vezes mais explícito, às vezes menos — a diferentes lutas que há no mundo. Como se dá essa relação entre a música e suas posturas?
Essas posturas tenho defendido enquanto cidadão. Eu não sei bem analisar minha música, mas nenhuma delas é realmente panfletária. O lado assim mais combativo, não estou seguro que esteja na minha música, mas as pessoas entendem assim. Eu não sei analisar, mas há frases, há uma certa liberdade. Mas o lado realmente de ativista cidadão eu me coloco mais como algo paralelo, mais como pessoa. São os trabalhos de ajuda cidadã. É preciso ajudar-se mutuamente. Eu acredito nisso.
Todos conhecemos Manu Chao ambulante, que canta aqui e acolá, onde tem vontade. Mas quando volta para a sua casa, como lida com sua vizinhança?
Eu sou apaixonado pela vizinhança, minha cidadania como vizinho é algo muito importante na minha vida. Você vive em um rincão do planeta e está rodeado por vizinhos e tem que se entender com eles. Se não se entende com seus vizinhos, como vai se entender com todo o mundo? Começa pela sua casa.
Até que o vizinho… alguns na sequência te roubam, outros são reacionários pelas ideias, pela cultura, porque “o Manu é um vermelho e eu sou de direita”. Me chamem de vermelho se quiserem, mas primeiro é meu vizinho, no que precisar de mim, aqui me terás. E rapidamente eles vêm.
E eu sou músico. Como posso ajudar no meu bairro? Pois com música. Dou aulas de violão para as crianças do bairro, os levo para casa ou na calçada e “tatatata”. O truque acontece naturalmente. As mães ficam gratas, porque primeiro a criança volta iluminada e segundo, porque lhe tiro o filho por uma, duas horinhas. A mãe não está preocupada se a criança está bem. E à noite chega uma tortilla, uma comidinha.
Vendo a vida desde este lugar de simplicidade, de bairro, de surpresas simples e cotidianas, como crê que deve ser a arte?
A arte tem que ser livre. Não tem porque ter receitas e deve ser algo totalmente sem padrões de construção. É mais, creio que no mundo da arte em geral há muitos patrões… em todos os sentidos.
Eu acho que o artista tem que ser livre para fazer uma arte que a mim me pareça interessante, porque se é livre, não aplica o manual, e se não aplica o manual será surpreendente, vai se surpreender. Eu penso que na história da humanidade, da cultura, os que sempre fizeram avançar foram os transgressores.
Para o continente latino-americano esses modelos fracassados, na música, foram chave para que surgisse algo novo no campo popular. Que elementos importantes encontra em Nossa América?
Que encontro? Amplitude e diversidade, essa é a minha resposta. Não posso dizer exatamente o que encontro, mas sim o que me deu. Foi uma aprendizagem de vida fenomenal. A conhecia de pequeno, pelos discos, pela cultura, pelo ativismo da época, com todos os exilados.
Minha família exilada da Espanha, do Chile, da Argentina, do Uruguai. Então havia toda uma comunidade latina no meu país e eu mamei desde pequeno, sem me inteirar dos problemas políticos.
Estava nos vinis: Bola de Nieve — cantor, compositor e pianista cubano dos anos 1950-60 — meu grande herói da infância. Creio que no meu desenvolvimento da música latina, meu primeiro professor foi Bola de Nieve, o amava desde pequeno.
Há um personagem argentino que você tem cantado muito. Por que Maradona?
Eu o cantei duas vezes. A primeira com o Mano Negra por tietagem total. Gostava dele porque era o único que abria a boca, que não dizia “sim, como queira o senhor”, o único transgressor para o bem e para o mal, mas que pelo menos rompia com as barreiras.
Com os anos tive a sorte de conhecê-lo em Nápoli, quando voltou para lá. Eu conheci Diego, e me pareceu bem com o bom e o mau que tem; porque é um ser humano e tem suas cagadas. Gostei porque há algo que pratico também e que ele também pratica. Ser Maradona não é fácil, e é disso que se trata… ”a vida tombola [a vida é uma loteria]”. É fácil criticá-lo ou dizer que é um deus, mas se coloque na pele de Maradona e veja como resolvê-lo.
O que gostei nele é que realmente é um cara do momento presente, assim o analiso. Diego não está nem no passado, nem no futuro, mas está aqui e te olha e… o que ocorre: Bem ou mal, damos risada de uma piada ou não, mas está. Não está pensando em outra coisa ou em quando irá embora. Não, mas está 100% no momento que está vivendo contigo ou comigo, ou com quem seja. Com o gari do estádio do Nápoli o vi dar seu tempo: ficar, falar, perguntar pela menina, perguntar pelo filho. Diego quando está, está.
Leia a íntegra da entrevista aqui (em espanhol).
* Tradução: Vanessa Martina Silva, do Diferente, Pero no Mucho
Fonte: Pero No Mucho.