Por Guilherme Balza. O processo de normalização das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos provoca entre os cubanos reações contraditórias, que vão da expectativa de que a aproximação ajude a melhorar a economia da ilha à descrença de que o governo norte-americano irá, enfim, respeitar a soberania do país caribenho.
As negociações entre os países tornaram-se públicas em 17 de dezembro, quando os presidentes Raúl Castro e Barack Obama fizeram um anúncio conjunto para formalizar a retomada das relações diplomáticas. Desde então, as diplomacias de ambos os países têm se reunido para articular os próximos passos.
Os principais jornais cubanos (Granma e Juventude Rebelde) tratam a aproximação com cautela. Ao mesmo tempo em que convocam a população a manter-se unida e alertam possíveis novas investidas dos EUA, fazem cobranças à administração Obama sobre o fim do bloqueio e a devolução da base de Guantánamo.
Em Havana, é possível ver, todos os dias, muitos cubanos usando roupas e souvenirs com a bandeira norte-americana – como também se vê outros tantos usando a camisa da seleção brasileira ou de times europeus – numa demonstração de que as divergências políticas não geram necessariamente um ódio anti-EUA entre os caribenhos.
Nos cinemas, filmes norte-americanos dividem espaço com produções cubanas e europeias. Na televisão, além do conteúdo nacional, os canais exibem desde a programação da estatal venezuelana Telesur até séries de sucesso dos EUA, passando pelas novelas brasileiras.
“Todos aqui estamos desesperados esperando a próxima temporada de Game of Thrones”, brinca a bióloga aposentada Lourdes Cervantes Paredes, 65, que batizou seu gato de Dexter, por conta do seriado homônimo também produzido nos EUA e exibido em Cuba.
Lourdes tinha apenas 9 anos quando a ditadura de Fulgêncio Batista foi derrubada pela Revolução Cubana, em 1959. Ela diz se lembrar da festa nas ruas de Havana e da multidão recepcionando os “barbudos” de farda verde chegando no Malecón, como é chamada parte da orla de Havana.
A bióloga afirma ter acompanhado todo o desenrolar da revolução, com o “caminho difícil e escabroso” para construir o socialismo nos anos 60, diante do impacto do bloqueio imposto pelos EUA naquela década, o apogeu cubano nos anos 80 e a queda abrupta nos 90, após o fim da União Soviética. “Ninguém achou que Cuba fosse sobreviver.”
Lourdes diz, também, acompanhado com expectativa os anúncios de Raúl e Obama em 17 de dezembro, mas mantêm-se reticente por ter na memória o que chama de “50 anos de hostilidade” dos EUA.
“Tenho muita desconfiança, mas também expectativa de que a melhora das relações faça com que os EUA acabem com o bloqueio econômico, retirem Cuba da lista dos países que apoiam o terrorismo e devolvam Guantánamo, que eles ocupam ilegalmente e usam aquilo como um açougue. Estes são os passos verdadeiramente claros que os EUA precisam dar”, disse.
Atualmente, a aposentada aproveita-se do processo de reformas econômicas iniciado pelo governo cubano desde o final dos anos 90 e acelerado nos últimos anos. Desde 2003, Lourdes aluga para turistas os quartos de seu apartamento, o que lhe confere uma renda média mensal de 300 pesos convertíveis – o CUC, pouco mais de R$ 970 -, quinze vezes o que recebe de aposentadoria.
Para Lourdes, os cubanos estão preparados para o processo, mas precisam “estudar bem como vai ser a aproximação para não colocar o inimigo dentro de casa”. “Para nós é muito mais fácil adaptar-se às mudanças porque somos superexperimentados nisso. Temos um grande poder de adaptação. Se nos falta uma coisa, buscamos outra, substituímos, e assim fazemos com tudo na vida.”
Mudança de método ou de objetivo?
Regina Agramonte Rosell, 48, doutora em didática, professora na Universidade de Havana e na Universidade das Artes de Cuba, além de pesquisadora do Instituto de Filosofia de Havana, nasceu seis anos depois da Revolução. Negra e de origem pobre, se considera “100% resultado do projeto social construído pela revolução e pelo povo cubano”. “Tudo que sou e que consegui é fruto desse projeto.”
Apesar da defesa da Revolução Cubana, Regina diz que a atividade econômica do país foi marcada por erros nos últimos 50 anos, sobretudo pelo fato de o governo, há até pouco tempo, ter impedido negócios particulares que ela considera fundamentais para “oxigenar” a economia. “E é preciso mais mudanças. Mudar tudo o que tem de ser mudado, sem perder a essência da Revolução e todas as conquistas.”
Regina afirma que está sendo procurada por amigos do mundo inteiro receosos com a aproximação de Cuba com os EUA. “Pessoas de diferentes partes do mundo me perguntam: ‘e agora?’. Penso que não são dois meninos que não se falavam e agora se falam. Tem uma dimensão de dois Estados nacionais. Nossos povos não têm nada contra. A história do conflito não é entre o povo de Cuba e o povo dos EUA. É entre o governo dos EUA e o governo de Cuba”, afirma.
“Todos somos americanos –no conceito que José Martí tem de América–, desde Rio Bravo (Texas) até a Patagônia. O intercâmbio de nossos povos é uma necessidade e irá nos enriquecer mutuamente e vai proporcionar melhorias econômicas”, diz.
Para Regina, no entanto, o discurso de Obama em 17 de dezembro deixa claro que os EUA mudaram de tática, e não de objetivos, com relação a Cuba, e que ainda persiste o desejo de influir nos rumos da ilha.
“Obama fala a todo tempo da necessidade de mudança de método. Diz que o método usado até agora não teve resultado – e é verdade -, mas em nenhum momento falou da necessidade de mudar os objetivos dos EUA, que são bem fortes, vinculados à nossa dominação. Cuba pode aproveitar inteligentemente a oportunidade para estabelecer relações de boa vizinhança. No restante, tem que dar tempo ao tempo.”
Origens do nacionalismo cubano
Javier Enríque, 30, é formado em publicidade na Universidade de Havana, mas nunca quis exercer a profissão em função da baixa remuneração que receberia se trabalhasse no setor público (US$ 20 por mês). Com bicos, como transportar turistas do aeroporto até as hospedagens ou ajudar vendedores de carros a encontrar compradores, chega a ganhar dez vezes mais.
Apesar de lidar com a Revolução e o governo de forma crítica, Javier vê no processo cubano não só a transformação social, mas a independência do país.
“O cubano é muito nacionalista porque a nossa independência custou muito. Cuba foi o último país da América a conseguir a independência. Depois que nos libertamos dos espanhóis, vieram os americanos e transformaram aqui num parque de diversões deles. Até que em 1959 veio a Revolução e nos deu a independência. Estes 55 anos foram os únicos que Cuba viveu independente. Ocorreram coisas incríveis e coisas muitos ruins. Não é fácil de compreender.”
Javier tem muitos familiares vivendo nos Estados Unidos, “como todos os cubanos”, e vê a aproximação como um passo importante. “EUA são a maior potência mundial e estamos há 90 milhas de lá. Necessitamos deles, necessitamos dessa economia tão grande. Cuba é um país com muito potencial em todos os sentidos. Eles devem entrar aqui, até o ponto que permitirmos. Tenho muitas expectativas nesse processo, mas não muitas ilusões. Vamos ver ate que ponto chegam as coisas.”
Vistos
Segundo comerciantes que trabalham nos arredores do escritório de interesses dos Estados Unidos em Havana, no bairro Vedado, a imensa maioria dos cubanos continua tendo o visto para o país vizinho negado pelo governo norte-americano, desperdiçando, a cada tentativa, US$ 160, valor equivalente a seis meses de salário oficial cubano.
De acordo com relatos de comerciantes e gerentes de hotéis, a retomada das relações não provocou um boom de turistas, ainda que muita gente esteja indo à ilha com temor de que a aproximação com o vizinho do norte inicie um processo de descaracterização do país socialista.
Entre os estrangeiros, os norte-americanos continuam a ser minoria. Os que conseguem entrar na ilha precisam de uma motivação especial, como o consultor Matthew Certner, 24, que só conseguiu autorização dos EUA para visitar Cuba porque faz parte de uma missão religiosa judia.
“Não fosse pelo grupo religioso, seria difícil ou quase impossível vir à Cuba”, disse o turista, que imaginava uma Cuba “menos desenvolvida” do que a que conheceu. Sobre a aproximação entre os países, Matthew acredita que haverá mais progressos nos próximos três anos de administração Obama. “Está na hora de uma mudança de mentalidade. Acho que as novas gerações, em Cuba e nos EUA, pensam assim.”
Foto: Reprodução/Opera Mundi
Fonte: Opera Mundi