Apressada nos cruzamentos da região continental de Florianópolis, Luana Carolina de Matos, 27 anos, chega a carregar 200 quilos “na galheta”, expressão que usa para designar o tradicional carrinho dos catadores de reciclado. Dali vem o sustento para ela e a filha: “Já enfrentei muito preconceito por estar aqui revirando o lixo, mas é uma profissão tão digna como qualquer outra”, diz a mulher.
Muitas vezes marginalizados pela opinião pública, o trabalho dos catadores é um dos principais motores da indústria recicladora no Brasil e no mundo. Exemplo disso está nos índices de reciclagem do alumínio, principal produto dos recicladores autônomos. No Brasil, o reaproveitaento das latinhas que são colocadas no mercado é de 98,4%, colocando o país no topo do ranking dos que mais reciclam o metal.
O volume catado por Luana e outros 350 catadores informais na cidade não são computados pelos dados oficias do município. Para conseguir o material que vai pesar nas balanças dos sucateiros da região, Luana percorre ruas de Capoeira e Monte Cristo, revirando sacos que teriam como único destino o aterro sanitário de Biguaçu. O trabalho envolve perícia para classificar diferentes tipos de plásticos comprados pela indústria e recolher o material antes que o caminhão da coleta convencional passe.
O mais valioso entre os reciclados, o alumínio é disputado pelos catadores que circulam quase que ininterruptamente pela cidade. E algumas características explicam a disputa e o sucesso no comércio do metal. O alumínio é infinitamente reciclável e mantém praticamente a mesma qualidade que a matéria virgem, diferente do papel e plástico, por exemplo, que se tornam inferiores depois do processamento. Por ano, em média, cada brasileiro consome 54 latinhas. O metal é utilizado, basicamente, como embalagem de bebidas, sendo que 45,8% das cervejas nacionais são envasadas em alumínio.
“Eu pego de tudo, desde papelão, alumínio e plástico. A latinha é o que dá mais lucro. Mesmo assim tem muita coisa que acaba não podendo ser aproveitada. As pessoas não têm noção quando jogam as coisas fora. Misturam tudo, e isso contamina o material”. De praxe, os catadores recolhem apenas o que pode ter valor comercial e por falta de galpões e espaço para triagem, muitas vezes escolhem lugares abandonados, terrenos baldios ou áreas públicas sem utilidade. De tempo em tempo esses lugares acumulam lixo totalmente inservível. É o caso das áreas na divisa entre São José e Florianópolis, nas marginais da Via Expressa.
“O catador autônomo que faz o recolhimento de lixo realiza um grande trabalho para a cidade”, Diego Campos, pesquisador da Ufsc.
Dados do Cempre (Compromisso Empresarial para a Reciclagem) mostram que o preço da latinha de alumínio custa o dobro do preço da garrafa PET, do plástico rígido e do plástico filme, cinco vezes o preço do papel branco, oito vezes o preço do vidro, 14 vezes o papelão e 17 vezes o preço da embalagem longa vida. O índice brasileiro de reciclagem de latinhas é de 98,4%, praticamente tudo que sai da indústria retorna em forma de matéria prima para reciclagem, enquanto o índice mundial é de aproximadamente 75%.
Jailson Macário, 38, leva duas horas para arrecadar um quilo em latinhas no centro de Florianópolis. O que lhe rendem R$ 2,20. Ele vive na rua, e praticamente todo o dinheiro que consegue vem da catação. “Esse é o meu ganha pão. Estou nisso há cinco anos, e olha que tem um monte de gente catando e não falta latinha nessa cidade”, conta.
A alta comercialização do alumínio faz com que catadores recolham as latinhas antes mesmo que elas cheguem às centrais de triagem, motivo que reduz o índice de composição do alumínio nos resíduos de muitas cidades. E mesmo a PNRS prevendo a inclusão das cooperativas, as políticas de inclusão desses atores no processo de manejo dos resíduos ainda são incipientes. A maioria trabalha desvinculado de associações e cooperativas.
“O catador autônomo que faz o recolhimento de lixo realiza um grande trabalho para a cidade. Recentemente, devido reclamações sobre esses catadores no centro, a Comcap mudou o horário da coleta, sem resolver a questão. O governo foge do problema ao invés de resolvê-lo”, aponta o pesquisador Diego Campos, da Ufsc.
Dificuldades para devolver material descartado à industria
Grande problema para muitas cidades brasileiras, incluindo Florianópolis, está na efetivação da logística reversa. O caminho de volta dos produtos descartados também é cobrado pelo PNRS, mas devido a falta de um sistema eficiente e barato, muitos resíduos —como o vidro, produto 100% reciclável— adormecem nos depósitos a espera de soluções.
Os principais polos de reciclagem de vidro estão em São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre, o que acabaria por encarecer, por exemplo, o custo com transporte para envio do material de cidades distantes destes polos. Segundo pesquisa da Abividro (Associação Técnica Brasileira das Indústrias de Vidro), a reciclagem do resíduo no país está entre 30% e 40%, abaixo, por exemplo, da garrafa PET (58%).
A Abividro chegou a propor um sistema de logística reversa onde o consumidor levaria o vidro até os postos de coletas que levariam o vidro devolta para as usinas de reciclagem. O sistema seria bancado pelos grandes consumidores do material, como a indústria de bebidas, no entanto, a proposta não tem avançado. Cada quilo de caco de vidro que retorna para a indústria economiza 1,2 quilo da matéria virgem.
A Comcap tem investindo na separação do vidro através do sistema de Pontos de Entrega Voluntária, os PEVs. Implantados desde 2014 no continente com contentores de 2,5 mil litros o sistema já separam seis toneladas por mês. A proposta da companhia agora é a instalação de 20 contentores também no entorno do Mercado Público. “A Fiesc e a UFSC já aderiram ao programa de doação de contentores e agora estamos em conversação com a Acats (Associação Catarinense de Supermercados), uma vez que a legislação municipal diz que os estabelecimentos comerciais que vendem embalagens de vidro são responsáveis pelo recolhimento e o destino desses materiais”, informa o presidente da Comcap, Marius Bagnatti.
Especialista em papelão completa renda como sucateiro
Um dos primeiros materiais a despertar o interesse pela reciclagem no Brasil foi o papelão. O papel reciclado estava por todos os lados: agendas, folhas de cheques, escritórios e até mesmo na fatura do cartão de crédito. Cada tonelada do resíduo reciclado evita a perda de 17 árvores e de mais de 26 mil litros de água, com uma economia de 60% de energia em comparação com produção a partir da matéria virgem. O papel e papelão representam 34% do volume da coleta seletiva.
O material é a especialidade do sucateiro Raimundo Pedro Schulle, 62, que todos os dias sai do bairro Colônia Santana, em São José, para buscar papelão no centro de Florianópolis. Boa parte do material recolhido por Schulle vai para a indústria cerâmica, em Criciúma, onde vira forração para o transporte de peças. O restante é encaminhado para a indústria que vai transformar em papel reciclado.
Ele também compra o material recolhido de outros catadores, que são encaminhados para empresas de reciclagem. Basta ele encostar a caminhonete na rua Sete de Setembro que eles logo aparecem. Ali mesmo o material é pesado e pago, mas só alumínio e outros metais: “O papelão eu mesmo pego. Eu já tenho um acordo com as lojas, eles separam para mim e eu passo todos os dias no fim da tarde recolhendo”, conta.
O aposentado trabalha desde 2003 como sucateiro, profissão que complementa a renda da família. “No início, a Comcap disse que eu não podia vir aqui no centro recolher o material. Mas aí fui no Ministério Público e eles me garantiram que eu podia”, conta. Atualmente, pelo menos 15 catadores no centro da cidade vendem alumínio, ferro e outros materiais para Schulle. Ele não soube precisar quanto recolhe por dia ou por semana. “Isso varia muito mesmo, tem semana que é boa, tem semana que não”.
Em 2014, no Brasil, foram vendidas 294 mil toneladas de latinhas e recicladas 289 mil toneladas, um índice de 98,4%
O processo de reciclagem de alumínio libera 5% das emissões de gás do efeito estufa quando comparado com a produção primária
18% dos municípios brasileiros (1.055) têm alguma iniciativa de coleta seletiva
85% dos brasileiros não têm acesso a programas de coleta seletiva
54% dos municípios brasileiros realizam coleta seletiva por meio de Pontos de Entrega Volutários (PEVs) e cooperativas de catadores
Estima-se que 34% do volume da coleta seletiva seja composta por papel e papelão, 11% plástico e 6% vidro
1055 municípios brasileiros (cerca de 18% do total) operam programas de coleta seletiva.
Desafios para o lixo eletrônico
Num dos endereços do Centro Industrial de Palhoça, a 18 quilômetros de Florianópolis, está uma das poucas empresas especializadas na reciclagem do “chamado lixo eletrônico”. Através de 45 pontos espalhados pelo Estado, 20 na Grande Florianópolis, a Compuciclado chega a processar 40 toneladas de resíduos por mês. Toda manutenção, distribuição e coleta nos pontos de entrega são feitos com veículos e recursos próprios da empresa.
O material que ainda tem serventia é triado e encaminhado para o CDI (Comitê para Democratização da Informática), organização social voltada ao empoderamento digital. Plástico, metais e vidro retornam para as fábricas no Brasil. As placas eletrônicas são encaminhadas para o exterior, onde passam pelo processo de extração de metais preciosos. O vidro dos televisores viram pisos vitrificados, depois de retirados plástico e placas.
No entanto, a grande dificuldade em dar o destino adequado para os eletrônicos também passa pela conduta dos cidadãos e das políticas públicas. O grande desafio, segundo o engenheiro sanitarista Leonardo Neves, é fazer a população tratar o resíduo eletrônico como resíduo: “As pessoas acumulam equipamentos velhos, até estragados, e ai quando percebem que ele é inservível jogam no lixo sem nenhuma preocupação”, alerta.
Neves cita como exemplo as televisões de tubos, atualmente sem valor comercial. “Uma televisão dessas tem um quilo de chumbo. Muitas pessoas não sabem disso, e quebram o vidro para tirar apenas o cilindro de metal que está ali. O chumbo acaba penetrando no solo, poluindo o meio ambiente”, conta.
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