Por Jéssica Ipólito.*
Há muitas camadas para desvendar nessa linha do tempo e por isso esse artigo não se propõe inquisitório, mas colaborativo no que diz respeito à intersecção de gênero, raça, classe e orientação sexual que segue escamoteado no interior dos movimentos negro, feministas e LGBTs.
Inicialmente, a data escolhida para celebrar a visibilidade lésbica foi 19 de Agosto, pois nesse dia, em 1983, as sapatonas revoltaram-se contra o gerente do Ferro’s Bar, local que as fanchas frequentavam e sustentavam mas que também eram alvo de discriminação constantemente.
As ativistas do Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF) ocuparam o espaço, voltaram a vender o folhetim ChanacomChana e impuseram o respeito como máxima a exercer ali, fazendo dessa data um “Stonewall brasileiro“.
Na ocasião do V Seminário Nacional de Lésbicas – SENALE (2003), decidiu-se em votação a mudança da data de visibilidade lésbica, passando a ser considerado dia 29 de Agosto, data que referencia o I Seminário Nacional de Lésbicas -SENALE (1996), no Rio de Janeiro, realizado pelo Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro (COLERJ).
Nesse processo, é essencial evidenciar nome e sobrenome de uma importante militante precursora da visibilidade lésbica: Neusa das Dores Pereira. A professora e atual diretora/presidenta da organização não-governamental Coisa de Mulher², é uma mulher negra que tem seu nome muitas vezes apagado desse processo.
No interior das organizações dos movimentos sociais, a invisibilidade lésbica também se expressa. Não há lugar isento. Na construção política da visibilidade lésbica, o protagonismo das negras lésbicas se deu desde o início do movimento quando ainda se chamava “movimento homossexual”.
Não é por acaso que a história do Movimento Lésbico e do 29 de Agosto é repetida sem nome e sobrenome daquelas que encabeçaram o puxar da dança, o que me leva a entender como uma tentativa de manter a universalização das sujeitas participantes desses encontros políticos, como se fosse ruim evidenciarmos os nomes importantes. A construção histórica dessa luta foi protagonizada por sapatonas negras.
O trabalho e responsabilidade política em buscar apoio e parcerias; a árdua tarefa de conseguir botar de pé um encontro de grande porte [I SENALE] foi construindo por sapatonas bem específicas, com nome e sobrenome, cor, lugar social demarcado pelo racismo.
O cruzamento de vários marcadores sociais sobre nossos corpos precisa ser presente nos movimentos que visam uma sociedade equânime. Como traz Audre Lorde: “Dentro da comunidade lésbica eu sou negra, e dentro da comunidade negra eu sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas negras é uma questão lésbica e gay, porque eu e milhares de outras mulheres negras somos parte da comunidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbicas e gays é uma questão de negrxs, porque milhares de lésbicas e gays são negrxs.
Não existe hierarquia de opressão.”
Se hoje temos um movimento de lésbicas e bissexuais ousado que compreende suas lacunas e em certa medida tenta preenchê-las, isso muito se dá por causa da construção conjunta entre lesbianas, mas especialmente de todo trabalho intelectual de negras lésbicas que tem sido invisibilizado.
Marcadores como raça e classe precisam sair do limbo da omissão e emergirem às vias de fato, ou seja, a branquitude precisa ser reconhecida e também problematizada.
Em 2013, eu publicava no meu blog a pergunta-título “Onde estão as pretas e sapatão?” , texto que indagava a ausência de lésbicas negras nos espaços de organização política, nas redes sociais, nos bares e festas… Aquele ano foi crucial para mim, pois encontrei outras negras lésbicas onde pude me espelhar, fortalecer e saber de fato que não estava só.
O Grupo Minas de Cor, em parceria com o Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro (COLERJ), realizaram em 2006 o I Seminário Nacional de Lésbicas Negras e Bissexuais na cidade de São Paulo com o tema “Afirmando identidades”, cujas informações nem o Google tem pra mostrar o que me deixa preocupada e entristecida, mas não menos instigada a procurar uma forma de visibilidade da trajetória preta lesbiana com o pouco que já temos.
Assim, a realização nos dia dias 28, 29 e 30 Agosto de 2015, em Curitiba, do II Seminário Nacional de Lésbicas Negras e Bissexuais seria de suma importância para propiciar essas trocas de saberes e construção política. A organização foi realizada pela Rede de Mulheres Negras – PR, em parceria com Articulação Brasileira de Lésbicas, Coletivo de Lésbicas Negras Feminitas Autônomas – Candaces, Coletivo BIL – Coletivo de Bissexuais e Lésbicas do Vale do Aço, Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro – COLERJ, Grupo Matizes (PI), Liga Brasileira de Lésbicas – LBL, Rede Afro LGBT e Rede Nacional de Promoção e Saúde de Controle Social e Políticas Públicas de Lésbicas e Bissexuais.
Neste encontro, pude então, pela primeira vez, conhecer minhas griôs** em vida e ouvi-las, beber da fonte lesbiana gentilmente concedida por elas nos três dias de seminário e que foi sem dúvidas o melhor momento que tive nesses meus poucos anos de militância, onde pude afirmar minha identidade negra e lésbica, potencializá-la ao conhecer os pés que caminham a minha frente.
As redes sociais também contribuíram para a promoção da visibilidade negra lésbica quando temos um (único, diga-se de passagem) filme que registra a história de uma adolescente negra lésbica, o “Pariah” que estreiou em 2011.
Há também de se considerar a proliferação massiva do feminismo negro nas redes sociais, que propiciou também a visibilidade lésbica que pipocara dali. Audre Lorde tomando conta de nós com seus poemas, declarações e incentivos foi também força motriz para a compreensão completa de que “o silêncio não vai nos proteger”.
Nos grupos de Facebook, lésbicas negras foram se juntando para dialogar entre si num ato político de rebeldia contra um sistema que odeia mulheres, que faz com que mulheres odeiem outras mulheres e que o amor entre mulheres seja visto e recebido com violência e repúdio. Em plataformas de compartilhamento de imagens com o Tumblr, começa a ser inundado com hastags anexadas de fotos só de casais de negras lésbicas, assim como o Instagram. Além de espaço em blogs, como o Blogueiras Negras, que acumula uma série de textos desde seu início (em 2012) acerca das vivências lésbicas negras como fomento ao debate e visibilidade.
Tudo isso é resultado da luta incansável das nossas griôs, que devemos fazer referências e abraçá-las sempre, mas que também temos muito a oferecer de contribuição enquanto jovens para que outras perspectivas se somem às delas, travando novas batalhas contra o racismo, o sexismo, a lesbofobia, a bifobia e as múltiplas formas que o sistema inventa de nos coagir a seguir uma norma.
E nós, dissidentes desde a tenra idade, não aceitamos e provocamos o sistema quando acessamos a universidade pública e privada e pesquisamos sobre nós mesmas, usando muitas vezes as ferramentas da Casa Grande.
Não esperavam que fôssemos sementes. Não esperavam que vingaríamos: vingamos! Literalmente e brilhantemente, impulsionando umas às outras num movimento de visibilidade a partir de nossos afetos, pois falar de amor é fundamental para alimentar nossa (r)existência.
No último final de semana, dias 26, 27 e 28 de Agosto, aconteceu o evento Sapatonize Agosto na cidade de Salvador. Iniciativa articulada entre Odara – Instituto da Mulher Negra, Revista Afirmativa e o Blog Gorda&Sapatão (essa que vos escreve), demos o primeiro passo na construção de uma agenda comum de negras lésbicas em terras soteropolitanas.
O primeiro Sapatonize Agosto começou pautando afetividades lesbianas, com rodas de conversa e sarau sapatão que deram espaço a ecoar vozes antes inibidas pelo racismo combinado à lesbofobia.
A oralidade sendo fio condutor de nossas trajetórias: de 30 anos atrás aos dias atuais. Re-existências plurais e desafiadoras da heteronorma estão presentes da militância aos becos e vielas, da academia aos saraus, da internet às pequenas rodas de conversa, nossa corporiedade negra e lésbica escurece a visibilidade e reafirma identidades, reafirma espaços e vozes políticas.
Nosso desafio, porém, ainda é enorme: continuar os passos das que vieram antes de nós e abrir outros caminhos para gente e para as que vão chegar. Que outros Senales Negras aconteçam com a presença de nossas griôs Neusa das Dores, Heliana Hemetério, Alaerte Leandro, Angela Martins, Valdecir Nascimento, Rosangela Castro, Soraya Menezes, Cidinha da Silva, Rosangela Araújo e outras tantas que ainda são anônimas para muitas de nós jovens, para que cada vez mais possamos nos conhecer e estreitar nossos laços lesbianos de solidariedade afetiva, e que o bem-viver se amplie e dê conta de nos contemplar verdadeiramente. Nossas vidas importam! Nenhuma Luana Barbosa a menos! Eu só sou porque vocês são!
1 Informações obtidas através do material impresso da II Seminário Nacional de Lésbicas Negras e Bissexuais “Afirmando identidades para Saúde Integral” – 2015 – Rede de Mulheres Negras – PR.
*Jéssica Ipólito – Afro-latina e militante feminista negra, com 24 anos, preta gorda e sapatão; estudante do bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade – UFBA; criadora do blog Gorda&Sapatão.
** Griôs são contadores de histórias