Por Marlén Sánchez Gutiérrez.
No conjunto de dificuldades que afecta a economia cubana destaca-se, pela sua importância e conotação, o problema da dívida. As múltiplas categorias que se estabeleceram desde meados dos anos 80, a estrutura e composição das mesmas, a acumulação de atrasos, as particularidades da renegociação e a ausência de informação estatística actualizada, apresentam-se como peças de um quebra-cabeças que torna muito complexa a análise desta problemática.
Portanto, o presente artigo só se propõe comentar o que a autora chamou linha de tempo do endividamento externo cubano com o objectivo de facilitar a compreensão do tema e ao mesmo tempo identificar o que se conseguiu em matéria de renegociação, o que ainda está pendente e os reptos derivados do processo de normalização de relações com os credores e do novo cenário de contracção da economia cubana.
As premissas de partidas são três. A primeira, deixar claro que os conceitos dívida e desenvolvimento não são por natureza incompatíveis. A dívida externa tem origem nas relações financeiras que as nações estabelecem livremente com os credores para “financiar seu desenvolvimento”, seja por iniciativa privada ou pública. O que acontece é que os países subdesenvolvidos, na sua maioria, passarão de uma dívida pequena, no âmbito de grandes esforços “para se desenvolverem”, a uma dívida grande e não manejável sem haver conseguido o ansiado desenvolvimento.
De modo que o problema não está em endividar-se com o exterior e sem na capacidade para administrar esses níveis de endividamento, pelo que velar pela sustentabilidade da dívida é essencial e para Cuba isto continua a ser um grande repto.
A segunda premissa parece muito simples mas deve ser uma constante nas políticas de endividamento de qualquer país. Há que honrar os compromissos assumidos. Se não se pagam pontualmente as obrigações contraídas, a dívida alimenta-se a si própria pela acumulação de atrasos, corre-se o risco de incorrer em crises de pagamento e fecham-se praticamente todas as fontes de financiamento externo.
A terceira é muito mais complexa e exige um nível de debate que certamente escapa dos propósitos deste artigo mas que é essencial. A análise da sustentabilidade da dívida não pode centrar-se somente num enfoque da capacidade de pagamento porque deixa o país numa situação muito vulnerável. Normalmente, a capacidade de pagamento associa-se a condições de solvência, que se se cumprirem reflectem que se conta com os recursos necessários para fazer frente às obrigações de dívida externa.
Entretanto, entender a sustentabilidade, [apenas] como esta capacidade da economia frente a seus compromissos pode conduzir a ratificar termos como solvência e sustentabilidade, ao entender-se que um país que seja capaz de satisfazer suas obrigações externas de pagamento, ou seja, que seja solvente, tem uma situação de dívida sustentável.
Conceber a sustentabilidade só como capacidade de pagamento é considerar a solvência como condição suficiente, quando é só uma condição necessária. A solvência de hoje não garante per se a solvência de amanhã, ser sustentável pressupõe uma análise de longo prazo. Portanto é preciso distinguir as fontes que a estão a garantir, sejam estruturais (capacidade de resposta de uma estratégia de desenvolvimento económico ao processo de endividamento, por exemplo) ou conjunturais [1] , uma vez que cada um destes cenários terá consequências diferentes ao garantir a capacidade de pagamento futura (Curbelo, 2006).
Assim, o determinante é que a capacidade de pagamento surja do processo de desenvolvimento económico, mas que esteja determinada pelo impacto que esses fluxos de dívida gerem na economia devedora.
Assumindo estas premissas à partida, o artigo propõe-se num primeiro momento a estabelecer as peças chave do quebra-cabeças da dívida; num segundo momento abordar-se-á o processo de reordenamento da dívida externa a parte da análise das renegociações acordadas dentro e fora do Clube de Paris e, finalmente, sintetizar-se-ão os desafios que ainda prevalecem para normalizar efectivamente as relações com os credores.
Sobre o quebra-cabeças da dívida
Para entender a problemática recente do endividamento cubano é preciso considerar as três categorias de dívida que prevaleciam até que começaram a se concretizar os processos de renegociação: a dívida activa, a passiva e a dívida com os ex-países socialistas.
A dívida activa é a dívida corrente, a que não se deixou de pagar e que tão pouco deixou de crescer devido à contribuição dos novos fluxos captados. A dívida passiva corresponde àquela que entrou em incumprimento (default) em 1986 e que se renegociou em fins de 2015. E a dívida com o antigo campo socialista dizia-se que era significativa mas, ao desaparecer a moeda na qual foi concertada (rublo transferível) e desintegrar-se o principal credor, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), caiu num limbo jurídico que criou um litígio entre as partes o qual durou mais de uma década.
Segundo números do Banco Central de Cuba o montante da dívida cubana em fins de 2013 era de 11914 milhões de dólares. Contudo, este montante inclui só a dívida activa, a qual é a única categoria para a qual existe informação oficial (ONEI, 2015). A análise da sua composição permite identificar que:
1. A dívida é essencialmente de longo prazo e a boa notícia é que a de curto prazo tende a diminuir.
2. 61% da dívida total é com credores oficiais, essencialmente bilaterais e com um baixo componente concessional; 17% é com credores privados e 22% refere-se a dívida comercial (de fornecedores). Esta última mostra uma acentuada tendência de crescimento.
3. A estrutura da dívida de médio e longo prazo mostrou uma mudança interessante: aumenta significativamente a dívida de fornecedores e diminui a bancária. Enquanto em 2012 a primeira representava 46% do total da dívida de médio e longo prazo, em 203 passou a representar mais de 78%. Isto dá certa margem de folga à economia cubana, que até o momento dependia muito de créditos comerciais de muito curto prazo.
4. A dívida de curto prazo representa 17% do total e em 2013 deu-se uma mudança significativa na sua composição. Até o momento, apesar desta dívida tender a diminuir, preocupava que dentro desta aumentasse exponencialmente a dívida de fornecedores. Entretanto, os últimos números mostram que a mesma diminuiu consideravelmente, passando de 54% do total da dívida de prazo em 2012 a menos de 22% em 2013. Não obstante, a dívida bancária passou a representar quase 55% do total da dívida de curto prazo durante 2013 e, como se sabe, os termos e condições desta categoria de dívida são mais onerosos do que os da dívida oficial.
5. Os indicadores de dívida têm melhorado mas isso não indica que o endividamento acumulado seja sustentável porque os factores têm estado a determinar a capacidade de pagamento da economia foram conjunturais. A dívida representa 15,4% do PIB e algo mais de 44% das exportações de bens. Segundo The Economist Intelligence Unit o serviço da dívida em 2013 era de 5383 milhões de dólares. Desse montante, um total de 3453 milhões destinaram-se a pagar juros. (EIU, 2017)
6. A alta concentração da dívida é um foco de tensão. Segundo fontes não oficiais só dois países são responsáveis por 55% da dívida com credores oficiais de carácter bilateral (Venezuela com 37% e China com 18%). (Sánchez, 2016)
7. A qualificação de risco da [agência de notação] Moody’s mantém-se na categoria especulativa [2] . Em Abril de 1999 era Caa1, em Novembro de 2003 passa a Caa1 estável, em Abril de 2014 a referida agência baixou a qualificação para Caa2 estável depois de avaliar a vulnerabilidade do país a choques externos e internos, em relação a países com qualificação semelhante e em Dezembro de 2015 sobe-a para “positiva” mas na mesma categoria Caa2, devido à diminuição da dependência para com a Venezuela e à aproximação com os Estados Unidos. De qualquer maneira, a percepção da Moody’s em relação à dívida cubana continua a ser de risco substancial.
Em síntese, as mudanças na composição da dívida deram-se essencialmente pelo lado da dívida bancária e de fornecedores. A dívida oficial continua a descrever a mesma tendência tanto no longo como no curto prazo e na prática o que se deu foi uma reacomodação funcional para Cuba mas não isenta de riscos uma vez que o peso da dívida de fornecedores se desloca a médio e longo prazo mas concentra-se a carga da dívida bancária no curto prazo.
De qualquer modo, estes números têm tanto atraso e são tão agregadas que impedem realizar uma análise qualitativa que reflicta efectivamente a situação recente em matéria de dívida, inclusive por tipo de credor. Muitos acontecimentos verificaram-se desde 2013 que de um modo ou de outro tiveram impacto e continuarão a afectar o reordenamento da dívida: o relacionamento de relações diplomáticas com os Estados Unidos; o VII Congresso do PCC onde ficou definida a Conceptualización del modelo económico y social cubano e foi apresentado o Plan nacional de desarrollo hasta 2030; a derrogação da posição comum da União Europeia em relação a Cuba; decrescimento da economia cubana em 2016 a seguir a um crescimento de 4% em 2015; e o início de uma nova administração nos Estados Unidos que desencadeou uma grande incerteza quanto ao rumo do processo de normalização de relações entre ambos os países.
A dívida passiva, por sua vez, era estimada nuns 8200 milhões de dólares em fins dos anos 2000, da qual algo mais de 60% correspondia ao Clube de Paris. O resto constituía débitos com o Clube de Londres. Aquela contraída com o antigo Conselho de Ajuda Mútua Económica (CAME) era de quase 37 mil milhões [de dólares], dos quais 35 mil milhões com a Rússia. (Sánchez, 2016) The Economist Intelligence Unit reflecte a dívida passiva nas suas estatísticas da dívida externa cubana e, segundo os seus cálculos, em 2016 esta alcançava o montante de 26309 milhões de milhões de dólares [3] . (EIU, 2017)
A dívida com a antiga URSS foi renegociada finalmente em Fevereiro de 2013. O acordo incluiu a redução (condonación) de 90% do montante em débito e os 3500 milhões restantes serão pagáveis em dez anos com a possibilidade de converter parte dessa dívida em capital produtivo, ou seja, dar à Rússia a possibilidade de investir em Cuba (Rodríguez, 2013).
Sobre a normalização de relações com os credores
Em princípios dos anos 2000 deu-se uma aproximação ao Clube de Paris mas em 2001 considerou-se que os termos e condições oferecidas pelo referido fórum para a renegociação da dívida cubana era inaceitáveis para Cuba. Não obstante, conseguiram-se alguns acordos bilaterais, fora do Clube de Paris, que permitiram ao país começar a reorganizar suas relações com os credores.
Assim, “em Maio de 2000 Cuba firmou um acordo bilateral para renegociar o pagamento da dívida pendente com a Alemanha de 115 milhões de dólares de curto, médio e longo prazo. Nesse mesmo ano reestruturou-se a dívida comercial com a China, que se estima em cerca de 6000 milhões de dólares e firmou-se outro acordo com o Japão no qual se perdoaram 130 mil milhões de yens (cerca de 1140 milhões de dólares) pendentes com os credores comerciais japoneses desde a década dos 80 e o resto acordou-se o seu pagamento em vinte anos” (Sánchez, 2014).
Posteriormente renegociou-se a dívida com a Mongólia, com o México [4] , com a Rússia e finalmente, em Dezembro de 2015, alcançou-se um acordo multilateral histórico com o Grupo Ad-Hoc de Países Credores de Cuba no Clube de Paris sobre a dívida que estava em incumprimento desde 1986.
Na referida renegociação foi calculado o montante total de dívida pendente com o Clube de Paris em 11,1 mil milhões de dólares. Deles perdoaram-se 8,5 mil milhões, quase 77%. Os termos e condições pactuados foram muito favoráveis a Cuba. Decidiu-se não pagar juros até 2020 e, a partir daí, pagar só 1,5% da dívida total ainda pendente. O prazo de amortização será de 18 anos e os pagamentos anuais serão incrementados gradualmente desde 1,6% dos US$2600 milhões em débito (uns 40 milhões) em 2016 até 8,9% em 2033. (Clube de Paris, 2015)
Além disso acordou-se que os credores podem negociar swaps da dívida de forma bilateral em até 30% da dívida, ou US$20 milhões em ajuda ao desenvolvimento, o montante que for mais alto. (Clube de Paris, 2015)
Este foi um acordo sem precedentes, totalmente fora das regras do Clube de Paris. Foi efectuado sem a intervenção do FMI como garantidor e o sítio web do Clube de Paris só emitiu um comunicado de imprensa de uma página com os resultados acordados. Sem dúvida, o início do restabelecimento de relações entre os Estados Unidos e Cuba constituiu um factor influente neste processo. Os credores tradicionais, com interesse crescente em realizar negócios com a ilha, não podiam ficar à margem no novo cenário e optaram por serem flexíveis com a nação devedora.
A instrumentação deste Acordo Multilateral subscrito implicou a assinatura de convénios específicos com cada um dos catorze países membros do Grupo Ad-Hoc de Países Credores de Cuba [5] para poder tornar efectiva a regularização completa da dívida de médio e longo prazo de carácter bilateral. Este processo está em curso e já são treze os países que regularizaram os pagamentos com Cuba.
Sobre os desafios pendentes
A renegociação da dívida cubana era imprescindível para normalizar as relações com os credores e aceder a dinheiro fresco, mas o desafio agora é cumprir em tempo os novos e os velhos compromissos para não ficarmos presos em cenários que podem levar à moratória de parte da dívida.
Nem todas as variáveis da equação do endividamento externo cubano se conseguiu resolver. Na realidade, trata-se de um sistema de equações complexo cuja solução vai muito além de considerações políticas e das boas intenção para honrar os compromissos.
Os principais reptos a encarar estão relacionados com:
1. A obrigatoriedade de pagar anualmente, durante o mês de Outubro, 40 milhões de dólares em consequência dos acordos derivados da renegociação com o Clube de Paris. Tenha-se em conta que este pagamento será incrementado gradualmente ao longo do período de amortização, na medida em que se vá reduzindo o montante em dívida.
2. Os custos adicionais do risco de incumprimento dos acordos concertados com o Clube de Paris. É certo que até 2020 não se pagarão juros mas se o país suspender temporariamente o pagamento anual pactuado da amortização será tributado com um juro de 9% até o pagamento final, além dos juros de mora pela porção em atraso.
3. A renegociação daquela parte da dívida passiva correspondente ao Clube de Londres. Segundo informações não oficiais, um grupo de credores comerciais de Cuba em Abril de 2015 constituiu um comité liderado pelo Stancroft Trust para começar a negociar uma reestruturação da dívida. Diz-se que entre os maiores detentores de dívida do Clube de Londres cubano três instituições concentram 50% da dívida comercial. (Strohecker, 2015)
4. A necessidade de continuar a cumprir pontualmente com o serviço da dívida activa e a já renegociada. Murillo afirmou na legislatura de Dezembro de 2015 da Assembleia Nacional do Poder Popular que para conseguir 6500 milhões de crédito para o financiamento da economia em 2016 “temos que pagar os mais de 5000 milhões da dívida” (exactamente 5299 milhões). (Murillo, 2015)
5. A própria composição da dívida activa, onde adquire cada vez mais importância a dívida de fornecedores que é a que nos permite cobrir as importações.
6. A diminuição das reservas internacionais em termos reais pela valorização do dólar estado-unidense e pela necessidade de enfrentar os desastres significativos verificados após a passagem do furacão Matthew.
7. O decrescimento da economia cubana e o excesso de optimismo quanto aos 2% de crescimento em 2017, num contexto onde continua a predominar uma alta incerteza quanto ao crescimento económico mundial e o desempenho dos principais sócios comerciais de Cuba. Tenha-se em contra que a renegociação da dívida foi efectuada considerando perspectivas de crescimento que não se puderam alcançar.
8. A necessidade de continuar a canalizar recursos externos pela via do crédito num cenário em que o investimento estrangeiro não chega a constituir-se numa fonte essencial de financiamento do desenvolvimento.
9. O risco de que a percepção da Moody’s sobre o desempenho a médio prazo de Cuba pressione em baixa a sua qualificação creditícia.
Em síntese, Cuba avança rumo à normalização das relações com os credores, percebe-se um esforço importante por parte do governo em honrar os novos e velhos compromissos. Mas 2017, sem dúvida, colocará a necessidade de realizar ajustes importantes em matéria de reordenamento da dívida. O péssimo desempenho macroeconómico, logo no primeiro ano depois do acordo histórico com o Clube de Paris, não é uma boa notícia para os credores. Tão pouco o são as rigidezes que ainda permanecem da economia cubana para canalizar os fluxos de investimento estrangeiro directo pelos quais se apostou para conseguir oxigenar a economia.
O desafio da dívida continua pendente.
Bibliografia
Club de París Agreement 2015. Club de Paris
Curbelo, Liudmila. Tesis de Maestría: “La sostenibilidad de la deuda externa: del enfoque de capacidad de pago al basado en el desarrollo”. 2006.
Anuario Estadístico de Cuba, 2015. La Habana, ONEI
Rodríguez, José Luis. “Las relaciones económicas entre Cuba y Rusia en una nueva etapa”. Cubadebate , 1 de octubre de 2014.
Sánchez Gutiérrez, Marlén. “La renegociación de la deuda cubana en el Club de París: algunas lecturas”. Conferencia Instituto Internacional de Periodismo José Martí, 2016.
Sánchez Egozcue, Jorge Mario. “Reestructuración incipiente del comercio exterior cubano” en Colectivo de Autores, Economía cubana: transformaciones y desafíos, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2014.
Strohecker, Karin. “Acreedores comerciales de Cuba crean comité para iniciar negociaciones sobre deuda” Reuters , 8 de abril de 2015.
Murillo, M. “Ministro de Economía y Planificación de Cuba presentó en Asamblea Nacional resultados 2015 y propuesta Plan 2016”. Cubadebate
The Economist Intelligence Unit. Country Report Cuba , 5 de enero de 2017.
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Fonte: IELA.