Por Guilherme Amado, Tácio Lorran e Eduardo Barretto, DCM.
O cônsul honorário do Brasil em Israel, Eyal Devidas, um rico empresário do ramo do tabaco, é dono de ao menos sete empresas offshore em Chipre, ilha mediterrânea cujo sistema bancário é conhecido pela baixa transparência e alta oferta de incentivos fiscais. As companhias foram abertas por meio do escritório de advocacia Demetrios A. Demetriades LLC, conhecido como Dadlaw, que deu tratamento VIP às offshores de Devidas. O escritório é uma das 14 companhias no mundo que tiveram documentos confidenciais vazados no último ano e publicados pelo Pandora Papers, investigação global coordenada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), com participação do Metrópoles.
Esta reportagem faz parte de uma nova investigação global conduzida pelo ICIJ, Diplomacia nas sombras. A força-tarefa reuniu 160 jornalistas de 61 veículos de imprensa em 46 países. No Brasil, trabalharam na apuração o Metrópoles e a Agência Pública. A investigação lança luz sobre uma atuação dos cônsules honorários, voluntários que desempenham parte das funções de diplomatas para promover os interesses de governos estrangeiros. Não recebem salário nem contam com infraestrutura para representar o governo em outro país, mas recebem passaporte diplomático e, o mais importante, o status trazido pelo cargo.
A série de reportagens Diplomacia nas sombras mostra que, em todo o mundo, o sistema diplomático de cônsules honorários tem sido prejudicado pela atuação sem regulamentação de agentes que abusaram da influência do cargo para enriquecer, fugir da aplicação da lei ou promover agendas políticas. Ao todo, o trabalho identificou 500 atuais e ex-cônsules honorários ao redor do mundo que estiveram envolvidos em escândalos ou casos criminais, como financiamento ao terrorismo, tráfico de drogas e de armas.
Dentre os brasileiros, um dos com mais poder é o israelense Eyal Devidas. Aos 61 anos, Devidas é o único cônsul honorário do Brasil em Israel e despacha na cidade de Haifa, a terceira maior do país. Sua família é uma das mais conhecidas na comunidade empresarial em Israel. Começou no posto em 2006, quando foi nomeado no primeiro governo Lula. Continuou sob Dilma, Temer e Bolsonaro e foi autorizado a seguir no posto ao menos até 2026, uma vez que teve a nomeação renovada neste ano. Uma foto do Google Street View de 2011 no endereço atual indicado pelo Itamaraty mostra uma placa bilíngue com o brasão de armas do Brasil indicando o “Consulado Honorário do Brasil em Israel”. Dentro da propriedade, é possível identificar bandeiras dos dois países.
As offshores de Eyal Devidas operam majoritariamente no mercado de tabaco, setor onde também atua a Devidas Group, empresa originalmente familiar do israelense. Documentos do escritório Dadlaw e que constam na base do Pandora Papers informaram que, por ser cônsul honorário brasileiro, Eyal Devidas é uma pessoa exposta politicamente (PEP), e, portanto, traz “altos riscos” às offshores. Na prática, PEPs são autoridades públicas consideradas pelos órgãos de investigação como suscetíveis a crimes financeiros. O alerta também inclui familiares e sócios desses agentes.
Os documentos mostraram que o cônsul honorário brasileiro em Israel podia ser encontrado a cerca de 700 quilômetros do país, em Chipre, onde as offshores estão registradas. Devidas foi citado em e-mails internos, faturas de importação e até ofertas de brindes para as offshores. O cônsul tinha o pai, aos 92 anos, como parceiro de negócios: a Dadlaw conferiu a Eyal e Moshe documentos que lhes autorizavam a movimentar contas bancárias e atuar em nome das offshores.
Segundo uma reportagem de 2019 do jornal israelense Calcalist, pai e filho começaram a romper recentemente relações comerciais e pessoais — mal se falavam. Moshe entrou com uma ação na Justiça contra Eyal, e pediu para vender as próprias ações da empresa. O patriarca acusou o filho de desviar recursos do caixa da companhia e de assediá-lo, “fazendo tudo ao seu alcance para prejudicá-lo”. O cônsul, por sua vez, negou as acusações e disse se sentir traído.
Fundado em 1966, o escritório de advocacia cipriota tem um histórico de clientes envolvidos em fraudes, a exemplo de oligarcas russos. Nos registros internos da Dadlaw, consta que Eyal Devidas é ou foi dono de pelo menos 11 offshores, algumas delas em sociedade com o pai. Segundo dados atualizados do governo de Chipre, sete firmas estão ativas, três foram dissolvidas e uma não foi localizadas.
Estão funcionando Barone Tobacco Trading, Metalpack Holdings, T.O.S. Classic Trading, Landtrack Trading, Castilia Trading, Scorley Trading e Yokehill Trading. Castleline Trading, Mondavo Capital e Spirito Tours foram dissolvidas, sendo a última no ano passado. A Camden Business, citada nos documentos do Pandora Papers, não foi localizada nos arquivos públicos de Chipre.
O cônsul honorário brasileiro em Israel integrava um grupo VIP de clientes da Dadlaw. Um documento de 2018 mostra que havia uma ordem interna para não cobrar qualquer pagamento antecipado de 17 clientes. O quarto nome com mais offshores era Eyal Devidas, com oito empresas citadas. “Executar qualquer serviço solicitado sem pedir pagamento adiantado”, apontou o documento, logo na primeira linha, em negrito e letras garrafais. Trata-se de um seleto círculo de empresários com ainda mais privilégios do que outros atendidos pela Dadlaw, cuja carteira soma bilhões de dólares.
Mesmo assim, a Dadlaw sabia que os negócios de Devidas eram arriscados, de acordo com ao menos três documentos do escritório de advocacia. Todas as sete offshores atualmente ativas do cônsul honorário foram consideradas de “alto risco” em um documento produzido a partir de 2016. Em outro papel, a offshore Camden Business recebeu a mesma classificação porque Eyal Devidas e o pai são pessoas expostas politicamente. “Eyal Devidas é uma pessoa politicamente exposta, cônsul honorário do Brasil em Haifa, Israel, desde janeiro de 2006”, disse o relatório de 2016. Um outro registro, enviado pela offshore Metalpack ao banco cipriote Astrobank em 2018, também informou que Devidas é uma PEP por ter sido nomeado para o cargo honorário do governo brasileiro.
O cônsul honorário e seu pai participavam diretamente da operação das offshores em Chipre. A dupla Eyal e Moshe Devidas podia abrir e fechar contas bancárias, assinar documentos e ser notificada de eventuais processos judiciais. Na Barone Tobacco e na T.O.S. Classic, havia esse aval. Outro sinal da ascendência do cônsul honorário sobre as offshores é que as próprias offshores cobraram dívidas de Devidas. Em 2018 e 2019, Eyal Devidas devia US$ 1,1 mil para a Barone, US$ 1,1 mil para a T.O.S., US$ 1,1 mil para a Landtrack, US$ 670 para a Scorley, e US$ 769 para a Castilia. No total, uma dívida de US$ 4,7 mil, ou R$ 24,5 mil. Em 2016, a Dadlaw informou à Receita Federal de Israel que o cônsul honorário do Brasil tinha ações de três offshores.
Reconhecido pelo governo brasileiro pelo bom trânsito político em Israel, Devidas também mostrou ser bem relacionado no mundo das offshores. Em 2019, uma fatura de exportação de isqueiros personalizados citava “presentes para Eyal Devidas”. Nessa carga por navio, a empresa Clipper levou isqueiros de Barcelona à Barone Tobacco, em Nicósia, capital do Chipre. A carga foi avaliada em 156 mil euros, o equivalente a R$ 800 mil.
Um fax de 2013 enviado para Devidas no endereço da Barone, em Chipre, trazia uma oferta de brinde da Alemanha. Um diretor da firma Simanko Gmbh, em Munique, ofereceu um álbum de música cubana a preço promocional para Devidas e seus clientes do mercado tabagista. “Cigarros e músicas são a combinação perfeita para desacelerar do stress diário!”, disse a mensagem do executivo alemão, promovendo o álbum “Rubén Gonzáles e amigos”, do icônico pianista cubano.
O mercado de tabaco é um dos pontos de contato entre o negócio familiar do cônsul honorário e suas offshores em Chipre. Além de ter importado isqueiros da Espanha em 2019, a Barone importou charutos de Havana, capital de Cuba, em 2009. A Devidas Group, empresa da família, é uma firma relevante no mercado de tabaco israelense, com três filiais no país. Sites especializados apontaram que a empresa importava e vendia produtos premium de tabaco. Em 2009, a Devidas lançou um cigarro “superslim”, um modelo mais fino e voltado para mulheres. O endereço da Devidas Group, em Herzliya, é o mesmo da companhia Tobacco Products Accessories, uma empresa israelense do cônsul, como apontou um documento da Dadlaw.
Assim como no Brasil, em Israel é permitido ter offshores, desde que as autoridades fiscais locais sejam informadas. Esses registros, a exemplo do Brasil, não são públicos. Questionado pelo Metrópoles, o cônsul honorário não respondeu se declarou essas empresas às autoridades israelenses.
Como os registros de propriedade e contábeis de offshores em paraísos fiscais são menos transparentes do que as empresas abertas em países com regras de transparência mais rígidas, elas são também mais propícias para crimes financeiros, a exemplo de lavagem de dinheiro, fraudes e corrupção. Em suma, são oportunidades para se esconder dinheiro sujo ou se pagar menos impostos.
Em 2020, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontou que pelo menos US$ 11,3 trilhões em todo o mundo eram mantidos em offshores. Chipre, que abriga todas as offshoews de Eyal Devidas, é um dos destinos dessas empresas discretas. A Tax Justice Network considera o país como um dos 15 mais favoráveis para esconder dinheiro. Segundo o Índice de Sigilo Financeiro da entidade, a legislação bancária de Chipre é mais obscura do que Malta e Luxemburgo, conhecidos paraísos fiscais.
Os negócios do escritório de advocacia Dadlaw também são obscuros. Incluem figuras públicas suspeitas de corrupção, oligarcas russos e empresários que cometeram fraudes. Investigações do Pandora Papers no ano passado revelaram que a empresa colaborou com um banqueiro russo acusado de desviar US$ 3 bilhões. A Dadlaw não respondeu aos questionamentos daquela época. Criada pelo advogado cipriota Demetrios Demetriades, a Dadlaw ajudou dezenas de clientes a transferir ativos para fundos e empresas offshore. O site do próprio escritório chegou a anunciar, em 2002, que ofertava offshores para “planejar e evitar pagar impostos em total anonimato para o proprietário”. A Barone, de Devidas, foi aberta nessa época, em 2005.
O Itamaraty divulgou o e-mail corporativo de Eyal Devidas na Devidas Group como meio de contato para cidadãos brasileiros. A informação está no documento “Como exportar para Israel”, produzido pela embaixada brasileira em Israel no ano passado. O arquivo menciona ainda que o Brasil é o maior parceiro comercial de Israel na América Latina. Também em 2021, Eyal Devidas recebeu a controversa comitiva brasileira que viajou a Israel para comprar um spray nasal anti-Covid. O périplo incluiu o então chanceler, Ernesto Araújo, auxiliares do presidente Jair Bolsonaro e o deputado Eduardo Bolsonaro.
Procurados, Eyal Devidas e a Dadlaw não responderam aos questionamentos da reportagem.
O Ministério das Relações Exteriores afirmou que não sabe de qualquer “conduta desabonadora” do cônsul honorário. “Seu mandato como cônsul-honorário foi renovado em fevereiro de 2022. Por ocasião da renovação dos mandatos dos cônsules-honorários são rotineiramente solicitadas certidões de antecedentes criminais”, explicou o Itamaraty, sem comentar a existência das offshores. “Os cônsules honorários não mantêm vínculo de trabalho com o governo brasileiro. Atuam em caráter estritamente voluntário e têm como objetivo precípuo a defesa dos direitos e a assistência, emergencial ou não, aos membros da comunidade brasileira em sua jurisdição, residentes ou de passagem”, acrescentou o ministério.