Em vídeo com trabalhadores, Samarco faz o que não deve ser feito: escárnio

Por Alceu Luís Castilho. 

Bastaram cem dias após a catástrofe socioambiental em Mariana para a Samarco (Vale, BHP Billiinton) apostar na falta de memória e subestimar a capacidade de inteligência de cada brasileiro, em uma série de vídeos com trabalhadores que participam da recuperação – ou do que a empresa quer que a gente acredite que seja um esforço de recuperação – do Rio Doce. As peças publicitárias, veiculadas em TV aberta, revistas e jornais de grande circulação, assustam pela alta dose de escárnio.

Em um deles [ver acima], o pescador Zé de Sabino tem sua imagem utilizada para que a mineradora minimize a poluição do rio. Ele aparece em Regência (ES), no início de dezembro, dizendo as seguintes palavras: “Não tem nenhum tipo de poluição na água, porque os peixes estão todos vivos. Não existem coisas ruins como o pessoal anda dizendo”. Ao fundo, o rio enlameado de resíduos da barragem. (O que o cineasta contratado pela Samarco pensa que somos? Cegos?)

Em um segundo vídeo, um engenheiro olha desolado para as águas poluídas em Barra Longa (MS). Em seguida engata uma adversativa: “Mas…” Mas agora é hora de defender a empresa. Seguir o script. E então ele fala do quanto já está íntimo da comunidade. Pois até chama o vendedor de equipamentos de pesca de Seu Nô e a dona da loja de móveis, Maria do Carmo, de Cacá. (O que a Samarco acredita que sejamos? Completos idiotas?)

Mas tomemos um terceiro vídeo. Sempre com o slogan da Samarco ao final: “Fazer o que deve ser feito”. Neste, a empresa diz que os empregados de Barra Longa trabalham no “restabelecimento do agronegócio“. Um engenheiro admite que as pastagens foram perdidas para a lama. E conta que a empresa doa, além de ração e água, cercas – porque o gado estava ficando atolado. (Sintomático que se fale do agronegócio. Porque o cotidiano dos camponeses de Bento Rodrigues foi simplesmente arrebentado, sem direito à retomada.)

O leitor quer ver ainda um quarto vídeo? Tape o nariz e tente tomar como algo aceitável a informação de que os alunos da comunidade “retornaram às aulas uma semana após o acidente“. Salvo aqueles que morreram soterrados, claro. Uma diretora diz que a escola é o lugar onde as crianças mais gostam de estar. “Todos os dias tinha gente da Samarco aqui”, completa a outra. Mas quem da Samarco? Psicólogos. (A mineradora da Vale e da BHP não se importa em se referir a crianças traumatizadas para tentar salvar sua pele.)

Outro vídeo conta que as famílias de Mariana foram levadas para hotéis 24 horas após o acidente. Com direito à fala do gerente de um hotel chamado Previdência. (“Foi mal aí, destruímos a vida de vocês, depois a gente faz um vídeo sobre o hotel”.) Outro traz relato de uma técnica de laboratório em Mariana, que ajuda no aluguel para os desabrigados e fala do sorriso de uma funcionária terceirizada que vai ajudar na limpeza das casas. (A do rio vai demorar bem mais.) Outro fala da criação de 167 pontos no Rio Doce para monitoramento diário da água. (Mas se o Seu Zé garante que não está poluída, por quê?)

EM TEMPO

1) Os trabalhadores que tiveram a imagem utilizada pela Samarco não têm nenhuma culpa por esse espetáculo de cinismo. Eles são contratados da empresa. O triste é que a empresa projete em faces constrangidas falas que seus diretores engravatados não teriam coragem de dizer, com todas as letras, diante de repórteres treinados. Pode-se entender até certo ponto algum esforço de marketing. A partir de certo ponto, ele ultrapassa os limites do bom senso. E ofende a memória dos brasileiros mortos e do povoado inteiramente destruído pela lama da empresa por causa de uma barragem obsoleta.

2) A empresa pediu à Justiça o adiamento do pagamento de R$ 2 bilhões, que deveria ter sido feito no dia 3 de fevereiro, para um fundo destinado à recuperação social e ambiental da bacia do Rio Doce. E não informa quanto gastou com a produção dos vídeos e com a compra do espaço publicitário nos principais jornais, revistas e TVs do país. Em outras palavras: o marketing está acima das multas.

3) Este blog surgiu, coincidentemente, quatro dias após a catástrofe em Mariana. Até hoje o texto mais lido é o primeiro deles: “A lama da Samarco e o jornalismo que não dá nome aos bois“. O mais compartilhado também tratava do tema, nas semanas seguintes: “E se fosse a lama da Petrobras na Praia de Ipanema?” Mais dois textos entre os dez mais lidos abordam algum aspecto – político ou econômico – do crime ambiental. Por isso avisa: não é possível esquecer o que aconteceu. Nem aceitar que se atenue, minimize, distorça.

Que o Ministério Público e a Justiça façam o que deve ser feito.

(@alceucastilho)

Fonte: Outras Palavras.

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