Por Roberto Antonio Liebgott. Em ano eleitoral as barganhas políticas são as regras. Nada deve comprometer os acordos, conchavos, apoios e os financiamentos públicos e privados para as candidaturas políticas. Essa estrutura é tão perversa que inviabiliza as possibilidades de que pessoas sérias e comprometidas com as causas sociais disputem eleições. A regra, portanto, impõe o atrelamento de questões econômicas e sociais à politicagem. Nesse sentido, a presidente da República Dilma Rousseff – juntamente com seu partido político – optou por paralisar os procedimentos de demarcação das terras indígenas e quilombolas, e o fez para não desagradar certos setores a ela articulados, que também “apadrinham” sua candidatura à reeleição. Assim, a presidente vem mostrando concreta e inegavelmente quais são as suas prioridades ao governar.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) comandada por uma presidente interina há mais de um ano, acatou a determinação da chefe do poder Executivo e, ao longo de quase dois anos, não demarcou nenhuma terra. Talvez seja por interina e comandar o órgão indigenista oficial de modo provisório, a presidente da Funai não manifesta descontentamento, não se compromete com os povos indígenas e aceita a estagnação como regra. A Funai, que deveria demarcar as terras indígenas, protegê-las e fiscalizá-las, permanece alheia aos graves conflitos de que são vítimas os povos indígenas de diferentes regiões brasileiras. O mesmo ocorre com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no tocante aos territórios quilombolas, ou seja, a política de omissão vigora, mesmo com as garantias legais e as responsabilidades atribuídas a este órgão oficial.
A determinação de paralisar as demarcações está em sintonia com outros tantos aspectos nefastos da política indigenista executada ao longo dos 12 anos de governos petistas (oito anos de governo Lula e quatro de Dilma), destacamos alguns pontos destes governos: as violações aos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas, a manutenção de comunidades às margens das estradas; a falta de compromisso com a vida e com a dignidade de tantas famílias que permanecem sem terra, sem alimentos, sem água potável, sem saneamento básico; a manutenção de uma situação indigna de confinamento de grandes contingentes populacionais em áreas exíguas, a continuidade de uma política de omissão que gera, em muitas comunidades indígenas, os mais altos índices de mortalidade infantil de desnutrição, de morbidade, de suicídio; às constantes ameaças de morte e agressões a indígenas que lutam por seus direitos assegurados na Constituição Federal.
Em Mato Grosso do Sul especialmente as comunidades Guarani, Kaiowá e Terena enfrentam essas adversidades de forma mais intensa e direta, pois lá as terras foram disponibilizadas para o agronegócio – cria-se boi, planta-se soja, milho e cana-de-açúcar, afirma-se que só um modelo de produção em larga escala justificaria a posse da terra e conduziria o Brasil à sua vocação para ser uma grande nação. Neste e em outros estados da federação, os investimentos públicos têm a finalidade de assegurar que o agronegócio mantenha sua “vitalidade” independentemente da localização geográfica, fundiária e sua condição jurídica – terras públicas, terras indígenas, terras quilombolas, terras griladas, terras tituladas, terras arrendadas estão à disposição desse setor da economia. Demarcar as terras indígenas seria ir de encontro aos interesses imediatos daqueles que tem dado as cartas do jogo no atual governo; significaria o estabelecimento de um confronto (político e econômico) que a presidente Dilma já demonstrou não estar disposta a enfrentar.
A opção política da presidente da República em governar a partir de alianças eleitoreiras e mercantilistas impuseram aos povos indígenas e quilombolas o esvaziamento do alcance dos seus direitos constitucionais. Mais grave ainda é o processo de negociação destes direitos, chegando ao cúmulo de o ministro da Justiça anunciar publicamente que os direitos dos indígenas precisam ser ajustados (ajustados, logicamente, aos interesses daqueles que efetivamente tem a máquina pública sob seus domínios).
Com essa nova concepção “dos ajustes de direitos”, o governo propõe que os povos e comunidades indígenas renunciem ao direito sobre terras já demarcadas, como ocorreu em Mato Preto, terra tradicional Mbya Guarani, de 4.230 hectares, que o governo pretende reduzir para 650 hectares e em Passo Grande de Rio Forquilha, terra do povo Kaingang, ambas no Rio Grande do Sul.
Além disso, com o intuito de dificultar os procedimentos de demarcação especialmente aqueles que estavam em fase de conclusão – o ministro da Justiça, no ano de 2013, estabeleceu que as demarcações de terras fossem discutidas em mesas de diálogos – compostas por agentes do governo, indígenas e setores diretamente interessados nas terras em questão.
A criação das tais meses, em essência, teve o intuito de protelar as demarcações; desgastar o movimento indígena em luta pela terra; acirrar as disputas entre indígenas e os ocupantes de suas terras. É importante destacar que muitos ocupantes de terras indígenas reconheciam a legitimidade das demarcações e aguardavam o pagamento das indenizações (justas e devidas). No entanto, depois das tais mesas de negociações, passaram a contestar as demarcações e articular formas de resistência a elas, inclusive com o uso da violência e da discriminação étnica.
A situação fundiária é inegavelmente o centro dos conflitos – demarcação e regularização das terras – e todos os demais aspectos da política assistencial (a ser prestada aos povos indígenas) estão condicionados às demandas fundiárias. Ou seja, quando o governo negligencia o direito a terra, acaba fragmentando e fragilizando o alcance das demais normas legais que assegurariam uma política diferenciada e específica para as populações indígenas. Essa concepção de política indigenista posta em prática no Brasil impõe aos povos indígenas a pecha de que eles são um “estorvo” e, como tal, precisam ser removidos ou excluídos.
A política de assistência à saúde indígena que vem sendo executada no Brasil é um bom exemplo para demonstrar como, na prática, os povos e comunidades são colocados ou relegados a exclusão. O governo, por força de lei e pela pressão do movimento indígena, criou o Subsistema de Atenção à Saúde com base em distritos sanitários especiais indígenas e desde 2010 vem tentado organizar uma Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) – gestora do subsistema. No entanto, não se verifica – apesar da lei e das estruturas criadas – melhorias nas condições de saúde das populações indígenas porque a prioridade dada a política são para assegurar a manutenção da máquina administrativa – recursos, contratos, fornecedores e servidores – e a perspectiva da terceirização de serviços e o esvaziamento das ações nas comunidades, especialmente as que deveriam ser duradouras como a prevenção e formação. Dentro dessa concepção os servidores públicos e os funcionários terceirizados vinculam-se a uma política assistencial descolada das pessoas e desvinculada da realidade.
Os povos indígenas de Mato Grosso do Sul denunciam que nas aldeias e acampamentos dos Guarani e Kaiowá, os agentes e servidores da saúde – médicos, enfermeiros – fazem visitas às comunidades mas não vão nas casas, nos barracos, não conversam com as famílias e, o que é pior, atendem as pessoas de dentro dos veículos – ou seja, sequer saem do carro para realizar os “atendimentos”. A foto a seguir é demonstrativa do procedimento médico na área Ñhanderu Laranjeira, no município de Rio Brilhante-MS. As pessoas fazem uma fila ao lado do veículo da saúde e o médico, sentado no banco dianteiro, examina os pacientes e depois os encaminha para um agente de saúde a fim de que este lhes entregue ou administre algum medicamento. Essa cena se vê em praticamente todos os atendimentos nas aldeias em Mato Grosso do Sul.
Há também reclamações das comunidades Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul acerca da falta de alimentação. As comunidades, a grande maioria, vivem fora de suas terras e, portanto não tem de onde retirar o sustento e tornam-se dependentes de cestas básicas. Atualmente a fome assola muitas comunidades, pois as cestas básicas que deveriam ser entregues pela Funai estão atrasadas há meses. Essa dependência conjugada com o atraso na entrega dos alimentos compromete as condições de vida, especialmente de crianças, as que mais sofrem com a fome. Alguns relatos de lideranças sobre a falta de comida em Kurusu Ambá, Pindo Roky e Guaiviri são impactantes. “Já faz mais de mês que não chega à cesta básica aqui. Não aguentamos mais comer só mandioca e batata. Não temos mais nada para comer, nossas crianças só comem quando vão à escola. “Hoje não sabemos o que vamos comer, enquanto nossas crianças vão para a escola, nos vamos para as ruas pedir alimentos”. “Nós, os adultos, comemos uma vez no dia para deixar um pouco de comida para nossos filhos”.
A política indigenista do governo federal tem, ao que parece, a intenção de manter os povos indígenas numa situação de exclusão, pois cotidianamente lhes nega os direitos fundamentais à vida, a terra, ao alimento e a cidadania. E, num contexto de disputas eleitorais, essa política torna-se anuncio, sem constrangimento, indicando do lado de quem o governo pretende ficar.
Porto Alegre, RS, 05 de agosto de 2014.
Foto: Reprodução/CIMI
Fonte: CIMI