Em tempos de afluência, o consumo destrói o Planeta e gera a sociedade da decepção que retroalimenta o consumo

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Por Elissandro dos Santos Santana, Porto Seguro, para Desacato.info.

Caro leitor, permite-se um diálogo rápido e objetivo comigo? Tentarei um papo reto. Escatológico ou exagerado, para alguns, em especial, para aqueles mais contaminados pela afluência, e esclarecedor para outros, principalmente, para aqueles que, mesmo havendo sido contaminados pelo vício do consumo, de alguma forma, tiveram contato com algum antídoto para esse vício/vírus/doença. Mas e que vício/vírus é esse?

Pois bem, explico e nomeio: Afluência [F.: Do lat. affluentia, ae.].

O Aulete Digital traz as seguintes definições para o termo: (a.flu:ên.ci:a) sf. 1. Ação ou resultado de afluir. 2. Movimento (de pessoas) em direção a um lugar; AFLUXO: a afluência dos torcedores ao estádio. 3. Corrente de água volumosa, abundante. 4. Geog. Convergência de (dois ou mais) rios para um mesmo ponto, ou de um rio para outro; o lugar no qual rios convergem ou onde um rio se junta a outro 5. Fig. Condição de prosperidade, riqueza, grande volume de atividade econômica, produção e consumo [F.: Do lat. affluentia, ae.].

A semântica para a discussão aqui é aquela tangente à quinta conceituação que aparece no referido dicionário, tendo em vista que a afluência é um vírus, quis dizer, um vício, letal para as crises ambientais e sociais da pós-modernidade, e, por isso, demanda reflexões em âmbitos diversos.

A afluência possui relação direta com comportamentos e estilos societários no que tange à produção e ao consumo e, segundo Miller e Spoolman (2012), produz efeitos ambientais benéficos e nocivos.

Esse vírus, opa, vício, tem cura? Como surgiu?

Sinceramente, não acredito em cura, pois o consumo está entranhado no homo economicus, pois mesmo em regimes ditos socialistas, mesmo com todo o discurso da inclusão, o ser humano não conseguiu ecologizar os pensamentos e, ainda que menos que o homem capital, também desenvolveu e aparelhou as lógicas de exploração da Terra. A origem desse mal é antiga e possui explicação em campos plurais teóricos, portanto, qualquer tentativa de delimitação específica do surgimento do vício/vírus seria superficial e não abarcaria a verdade dos fatos. Que ele tomou força e formato mais robusto após o nascimento do capitalismo não resta dúvida.

A escola como aparelho ideológico a serviço do Estado tem alimentado o sistema capital, formando os seres especializados, fragmentados, máquinas projetadas para o sucesso e sucesso em um país dominado pela lógica do mercado quer dizer ser humano bem sucedido economicamente. Nesse quesito, nenhum partido político brasileiro imprimiu mudanças significativas para novos rumos mais sustentáveis e nem existe nenhum partido atual capaz de dialogar com a lógica do desenvolvimento distante do capital, pois nem a esquerda que deveria ser ecológica, sem exceção, escapa à dialética do jogo capital.

Conforme Miller e Spoolman (2012), os efeitos ambientais nocivos da afluência são dramáticos e, para explicarem isso, valem-se do fato de que na população dos EUA, de apenas aproximadamente um quarto da população indiana, um estadunidense médio consome cerca de 30 vezes mais do que o indiano médio e 100 vezes a média por pessoa nos países mais pobres do mundo. Continuam dizendo que por conta desse alto valor de consumo, a pegada ecológica, por pessoa, nos Estados Unidos, é muito maior do que aquela medida nos países menos desenvolvidos.

A informação acima encontra apoio e suporte no que afirma o Living Planet Report, do World Wildlife Fund, de 2006, que trouxe estimativas em torno dos Estados Unidos como sendo os responsáveis por quase metade da pegada ecológica de todo o planeta.

No livro Ecologia e sustentabilidade, Miller e Spoolman (2012) apontam como principais causas para os problemas ambientais os seguintes fatores: crescimento populacional, o uso não sustentável dos recursos naturais, pobreza e não inclusão dos custos ambientais nos preços de mercado, sendo que eu resumo esses quatro problemas em um: em como os ricos destroem o planeta.

 A pobreza, sem ser simplista, ainda que possa parecer aos mais dados ao sonho de riqueza algo sem ligação com a riqueza, é consequência direta da exploração daqueles que se apossaram de latifúndios, dos meios de produção e de outras questões nesse âmbito.

As sociedades capitais confundem desenvolvimento com crescimento econômico, e, mergulhadas na ânsia do crescimento do PIB como receita para se tornarem potências econômicas, depredam até o futuro e, mesmo aquelas economias que se dizem verde, em algum momento no eixo de crescimento, são sociedades de carbono.

Particularmente, visualizo mais efeitos nocivos na afluência e discordo da possibilidade de alguma benfeitoria desse mal que assola a humanidade, que é o consumo.

Pensando a sociedade do consumo, de imediato, retomo leituras em torno do grande filósofo da esperança, pelo menos, para mim, Lipovetsky, com obras como: O império do efêmero, A era do vazio e a Sociedade da decepção, para apresentar noções mais profundas e alargadas acerca do consumo e da ilusão da felicidade nas construções sociais hodiernas.

Hoje, todas as dores, angústias e perdas são supridas pelo vírus do consumo, ou seja, da afluência. Em todos os pontos nos quais o capitalismo se imprimiu como estilo de produzir e “viver”, essa doença se instalou e se alastrou. Comprar virou mais que status, transformou-se em regra de vida, de poder para além do poder. A afluência, como vírus social para o consumo, desestabilizou consciências e revelou uma sociedade que vive o carpe diem, consumindo presente-futuro e negando aos filhos, que virão depois, a oportunidade de usufruírem do capital natural que ainda nos resta. Desta forma, pode-se dizer que a afluência anula a possibilidade de uma vida sustentável no agora e no futuro, já que o hoje é feito de consumo.

Para Miller e Spoolman (2012), o estilo de vida de muitos consumidores em países mais e menos desenvolvidos, tais como a Índia e a China, é construído sobre uma crescente afluência, o que resulta também em elevados níveis de consumo e desperdício desnecessário de recursos. Tal afluência é lastreada principalmente no pressuposto – alimentado pela publicidade de massa – de que a contínua compra de bens materiais traz satisfação e felicidade.

Também a partir de Miller e Spoolman (2012), tem-se que alguns analistas dizem que muitos consumidores ricos nos Estados Unidos e em outros países mais desenvolvidos estão acometidos por aflluenza, um vício inevitavelmente insustentável de comprar cada vez mais. Argumentam que esse tipo de vício atualmente alimenta nosso uso insustentável de recursos, apesar de inúmeros estudos mostrarem que, depois de atingir certo nível, mais consumo não aumenta a felicidade.

Os dois teóricos mencionados acima não apresentam somente os pontos nocivos da riqueza, pois também mostram os nuances positivos dela, mencionando que a riqueza pode prover melhor educação, que pode levar as pessoas a se tornarem mais preocupadas com a qualidade ambiental. Também fornece dinheiro para o desenvolvimento de tecnologias para reduzir a poluição, a degradação ambiental e o desperdício de recursos.

Com toda franqueza, não sei até que ponto a riqueza provoca desenvolvimento socioambiental, pois, capitalizada, a sociedade pode fazer melhorias ambientais sim, através do desenvolvimento tecnológico, mas isso alcança a todos, ou somente às sociedades mais ricas economicamente? Os países da periferia sempre ficarão à deriva nesses processos injustos de geração e de exploração do capital. Esse é um fato que não precisa mais de provas, pois elas já estão dadas há muito tempo.

Ao pensar essa questão levantada por Miller e Spoolman, não há como não fazer ponte com os vazios operados pelo consumo criador da sociedade da decepção. A esse respeito, direciono-me ao que nos apresenta Lipovetsky (1983): que erro haver pregado precipitadamente o fim da sociedade do consumo, quando está claro que o processo de personalização não cessa de ampliar suas fronteiras. A resseção presente, a crise energética, a consciência ecológica, não anunciam o enterro da era do consumo: estamos destinados a consumir, ainda que de maneira diferente, cada vez mais objetos e informações, deportes e viagens, formação e relações, música e cuidados médicos.

Ainda a partir de Lipovetsky (1983) tem-se que a sociedade pós-moderna é isso, o consumo; não o mais além do consumo, senão sua apoteose, sua extensão até a esfera privada, até na imagem e no devir do ego chamado a conhecer o destino da obsolescência rápida, da mobilidade, da desestabilização. Consumo da própria existência através da proliferação dos mass media, do ócio, das técnicas relacionais, o processo de personalização gera o vazio em tecnicolor, a imprecisão existencial em e pela abundância de modelos, por mais que estejam amenizados à base do convívio, de ecologismo, de psicologismo. Mais exatamente, estamos na segunda fase da sociedade do consumo, cool e já não hot, consumo que digeriu a crítica da opulência.

Realmente, acreditar no fim do consumo é infantil, pois a sede humana de ter sempre inventará formas e modos de produzir e consumir. Se no presente até as ideias são consumidas, imagine no futuro o que não será possível consumir.

O vírus do consumo consome as consciências e as sensibilidades da existência. Vive-se hodiernamente, nos vazios do ter para ser, sob o manto da ilusão da felicidade a partir do consumo, uma felicidade paradoxal em pontos diversos.

O pior de tudo, o consumo aniquilou com as nossas esperanças e, talvez, tenha inviabilizado a possibilidade da sustentabilidade que até já virou marketing em muitas organizações, que se dizem sustentáveis, mas que, no fundo, no fundo, continuam depredadoras da Terra. Infelizmente, o mundo inteiro, até os países mais pobres, copiou a lógica capital de nossos irmãos estadunidenses e europeus, os espaços de maior pegada ecológica planetária, e, assim, entramos na era da sobrevivência planetária a crédito, tanto que nossos modos de vida já exigem mais que um planeta para suprir nossas “necessidades de consumo”.

Triste sociedade essa que grita “Vai para Cuba!” como depreciação, sem saber que lá, talvez, encontremos um modelo sustentável de viver mais e melhor nesse mundo que já não comporta o capitalismo consumidor gerador da afluência depredadora da existência.  Vamos todos para Cuba?

Referências para a construção do texto

A era do vazio, obra do grande filósofo Gilles Lipovetsky.

Ecologia e sustentabilidade, obra de G. Tyler Miller e Scott E. Spoolman.

Foto: http://es.footfall.com/

 

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