Por Maíra Mathias e Raquel Torres.
FLÁVIO INDICOU O MINISTRO
O cardiologista Marcelo Queiroga será o quarto ministro da saúde do Brasil na pandemia. Jair Bolsonaro anunciou sua escolha ontem, pouco depois da reunião que teve com o médico no Palácio do Planalto. A notícia foi dada após assessores do presidente espalharem para a imprensa que mais postulantes ao cargo seriam recebidos ao longo da semana, o que sempre tem o condão de fazer os jornalistas parecerem pouco confiáveis.
Também foi de forma fiel ao seu estilo que Bolsonaro divulgou a decisão: em conversa com apoiadores plantados no Palácio da Alvorada, transmitida pelo canal bolsonarista no YouTube Foco do Brasil. Afirmou que Marcelo Queiroga “tem tudo para fazer um bom trabalho”. De que forma? “Dando prosseguimento em tudo o que o Pazuello fez até hoje.” Pois é.
No figurino de ministro, Queiroga foi bem menos contundente do que havia sido na véspera, quando concedeu entrevista à Folha. No domingo, ele disse que não era favorável ao uso da cloroquina para o tratamento da covid-19 – e destacou que a Sociedade Brasileira de Cardiologia, entidade que até então presidia, não recomendava a prescrição. Depois da conversa com Bolsonaro, saiu-se com essa, em entrevista à CNN Brasil: “Existem determinadas medicações que são usadas, cuja evidência científica não está comprovada, mas, mesmo assim, médicos têm autonomia para prescrever”, afirmou, emendando que se deve chegar a “um ponto comum”.
Sobre lockdowns, Queiroga disse que não podem ser “política de governo” e há “outros aspectos da economia para serem olhados”. Segundo o colunista Beto Bombig, alguns secretários estaduais de saúde e governadores estão esperando o apoio do novo ministro às quarentenas. Já a colunista Camila Mattoso ouviu de secretários a avaliação de que Queiroga é “um gente boa”.
Marcelo Queiroga fez campanha para Jair Bolsonaro em 2018. Depois do resultado do primeiro turno, elogiou o então candidato nas redes sociais: “patriota, homem simples, espirituoso e acessível”. Meses antes, havia tomado café da manhã com ele e seu filho mais velho, Flávio Bolsonaro, ocasião na qual colheu essas impressões. “Sobre a classe médica e suas demandas, o Jair diz que sempre votou a favor da categoria e que frearia a abertura indiscriminada de escolas médicas e a importação ilegítima de ‘médicos’ cubanos“, escreveu. O entusiasmo lhe rende um lugar na equipe de transição do governo e, mais tarde, uma indicação para a diretoria da ANS, que não foi concretizada por conta da pandemia.
O senador pelo Republicanos teve uma boa dose de influência na escolha do sucessor de Pazuello. Segundo o Estadão, tanto Queiroga quanto a concorrente, Ludhmila Hajjar, dividem a diretoria da Sociedade Brasileira de Cardiologia com o sogro de Flávio: Hélio Roque Figueira.
Sobre a sucessão em si, restam muitas dúvidas sobre as bases em que vai ocorrer. Queiroga é bolsonarista, disso não há dúvida. Mas será que estará disposto a se queimar para cumprir o script negacionista do presidente? Será que será tutelado, como foi Nelson Teich? Por enquanto, ele encontrará um ministério sob ocupação militar.
Na entrevista coletiva na qual admitiu que estava de saída do cargo, Eduardo Pazuello abusou das imagens de guerra para vender a ideia de que uma substituição completa terá consequências. “A manobra mais difícil que temos de planejamento militar é substituição em posição, que é quando você está com sua tropa posicionada ou no ataque ou na defesa e você precisa substituir aquela tropa sem perder a impulsão ou sem perder a capacidade de defender”.
“Precisamos ver qual é a equipe que vai montar e se o governo lhe dará espaço e apoio”, resumiu uma figurinha conhecida nos meios empresariais da saúde, Francisco Balestrin, ao Valor. Outros médicos ouvidos pela Folha acreditam que Queiroga vai seguir as ordens de Bolsonaro – e colocam em dúvida inclusive sua afirmação de que não é favorável ao uso de cloroquina. “O dr. Marcelo sempre foi bolsonarista, defensor da hidroxicloroquina e vai fazer tudo o que Bolsonaro mandar”, disse um cardiologista de São Paulo. “Nada muda. Assim como Pazuello, Queiroga não tem preparo para a função e vai seguir a cartilha de Bolsonaro“, afirmou outro especialista.
ARMAS, ABORTO E ELEIÇÕES
Ontem, surgiram mais detalhes sobre a interlocução de Jair Bolsonaro com a outra candidata ao Ministério da Saúde, Ludhmila Hajjar. A reunião realizada no domingo parece ter sido um daqueles lances em que a falta de institucionalidade brilhou. O relato é do Poder 360:
“A médica foi sabatinada pelo presidente e seu filho. Eduardo Bolsonaro quis saber o que ela achava de dois temas: aborto e armas. (…) Num determinado momento, Bolsonaro quis saber o que a médica achava da cloroquina. Ludhmila disse que não iria desdizer o presidente eventualmente no Ministério da Saúde, mas que essa fase já havia passado. Que era necessário olhar para a frente. O presidente insistiu. Disse que ninguém sabe ainda o que funciona ou não para tratar a covid-19. E que os médicos têm o direito de prescrever o que quiserem. (…) O presidente perguntou também sobre medidas que restringem a circulação da população para frear os contágios pelo coronavírus. Disse ser contra o fechamento de negócios e a adoção de toque de recolher, casos de São Paulo e Brasília, por exemplo. ‘Você não vai fazer lockdown no Nordeste para me foder e eu depois perder a eleição, né?’”. Essa última afirmação foi negada pelo Planalto.
ao total, foram mais de três horas disso. Detalhe: com a presença de Eduardo Pazuello, que defendeu sua gestão o tempo inteiro e, a certa altura, teria insinuado que os governadores manipulam os números de ocupação dos leitos de UTI.
Ontem, Hajjar deu entrevistas à CNN Brasil e a GloboNews que irritaram bastante o Planalto e, para alguns analistas, apressaram ainda mais a substituição do general. Na primeira, ela afirmou que “não é o momento para assumir o Ministério da Saúde, principalmente por motivos técnicos”, as divergências de sempre com o script presidencial contra o isolamento social e inventor do “tratamento precoce” da covid-19. Para a GloboNews, ela pesou mais a mão: “Acho que o cenário é bastante sombrio. O Brasil vai chegar rapidamente em 500 mil, 600 mil mortes e não só isso, mas todo o impacto que esta doença terá em longo prazo, sequelas e consequências que não estão sendo pensadas.
Parte da irritação também ficou por conta da narrativa de Hajjar, que disse que não aceitou o convite para comandar a pasta. O governo nega que o convite tenha sido efetivamente feito. Nessa disputa de versões, auxiliares do presidente também fizeram chegar à imprensa o relato de que a médica teria adotado um discurso sob medida para o presidente em relação ao lockdown, ao contrário do que disse na TV.
A médica foi alvo de ataques de bolsonaristas nas redes sociais com direito a dossiê e, segundo ela, seu número de celular foi divulgado em grupos de WhatsApp. “Recebi ataques, ameaças de morte que duraram a noite, tentativas de invasão em hotel que eu estava, fui agredida, [enviaram] áudio e vídeo falsos com perfis, mas estou firme aqui e vou voltar para São Paulo para continuar minha missão, que é ser médica.” A informação sobre a tentativa de invasão foi desmentida pelo B Hotel, onde ela estava hospedada.
E O CENTRÃO?
A troca no Ministério da Saúde não saiu de acordo com os planos do Progressistas. O presidente da Câmara, Arthur Lira, acabou sendo desprestigiado publicamente depois de oferecer seu apoio à indicação de Ludhmila Hajjar – e ver os três nomes do seu partido, Doutor Luizinho (RJ), Hiran Gonçalves (RR) e Ricardo Barros (PR), serem preteridos sem direito a convite para sabatina no Planalto.
A situação acendeu no Centrão, ou em pelo menos parte dele, a velha chama da chantagem. “Um influente político do Centrão resume: Bolsonaro quis escolher um nome sozinho. Não tem problema. Mas terá que acertar na seleção do seu quarto ministro da Saúde porque, caso seja necessário fazer uma nova troca, o país não vai parar para discutir quem será o quinto, mas sim o próximo presidente da República. Na versão de um deputado, ninguém mais ficará brincando de escolher ministro”, apurou o Estadão.
NADA É COM ELE
Eduardo Pazuello credita unicamente ao Centrão sua queda. De acordo com relatos colhidos de gente que conversou com o general ainda no domingo, ele estava indignado com a iminente defenestração da pasta. “O ministro afirma que é honesto, conhece os números e está fazendo uma boa gestão na Saúde, que vive uma crise sem precedentes por causa da epidemia do novo coronavírus. E reforçou: está sendo ‘fritado’ porque não abriu a porteira para políticos”. Ontem, em público, o general também minimizou as sucessivas alterações no cronograma da vacinação, fator que teria servido de gota d´água para a pressão por sua saída: “É para ser alterado“, disse. Na mesma entrevista, ele ainda questionou sua responsabilização na crise de Manaus. “O que o Ministério da Saúde tem a ver com produção, o transporte e a logística de oxigênio?”
CONTRA OS “EXTREMOS”
Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) disseram ontem que não defendem um lockdown nacional porque essa é uma medida muito “extrema”. “Não me parece racional lockdown absoluto no país nesse momento”, disse Pacheco. Já Lira afirmou que “todos os extremos, nesse momento, são muito complicados”, e que esse tipo de possibilidade deve ser pensado caso a caso, para cidades ou regiões que estejam em um “momento de mais dificuldade”. As declarações foram dadas durante uma videoconferência para os jornais Valor e O Globo.
Pois é… O problema é o seguinte: segundo o último boletim da Fiocruz, 19 estados mais o Distrito Federal têm mais de 80% das vagas de UTI para covid-19 ocupadas, e em 13 dessas unidades a taxa é maior que 90%. Das 27 capitais brasileiras, 25 estão com mais de 80% de ocupação, e 16 já ultrapassaram os 90%. Ontem foram registradas mas 1.223 mortes e, pelo 17º dia consecutivo, um recorde na média móvel de óbitos: 1.855.
Se esse não é um “momento de mais dificuldade” generalizado, então o que seria?
Pernambuco, onde a taxa de ocupação das UTIs superou os 95%, decretou lockdown por 15 dias – tentou-se um toque de recolher desde o fim de fevereiro, mas, aparentemente, não adiantou. A região metropolitana de Belém fez o mesmo, com hospitais públicos e privados completamente cheios. Em Santa Catarina, mais de 100 pacientes morreram na fila entre fevereiro e março. O Mato Grosso está com as UTIs lotadas há uma semana.
Já no Rio, o número de pedidos de internação é o maior em toda a pandemia.
Em São Paulo, um em cada dez municípios está com as UTIs 100% cheias e o estado deve abrir um novo hospital de campanha até o fim do mês. Mas, apesar da tentativa de João Doria (PSDB) de se contrapor à imagem anti-ciência de Jair Bolsonaro, o governador ainda não partiu para o lockdown. O que entrou em vigor ontem foi a chamada fase emergencial.
NADA DE CPI
Na mesma videoconferência, Lira e Pacheco falaram também sobre Jair Bolsonaro e sobre possíveis investigações sobre o governo no Congresso. Pacheco, que tem nas mãos a possibilidade de aceitar um pedido de CPI assinado por dezenas de senadores, descartou terminantemente essa hipótese. De acordo com ele, a “solução não virá de uma CPI”, que só deve acontecer depois que (ou se) tudo for resolvido…: “A CPI, se precisar ser instalada, será instalada para apurar fatos pretéritos. Agora, a solução não virá de uma CPI”.
O presidente do Senado ainda criticou a postura de se “achar que nada funciona e que nada anda” e sugeriu deixar todo esse “negativismo” de lado: “Nesse momento o que nós do Congresso Nacional (…) estamos buscando promover é um ambiente de positivismo, de positividade, para que nós possamos valorizar aquilo de bom que nós temos no Brasil”…
“INFLUÊNCIAS MALIGNAS”
Os Estados Unidos, ainda sob o comando de Donald Trump, pressionaram o Brasil a rejeitar a vacina Sputnik V. A informação consta de um relatório do Departamento de Saúde dos EUA, e quem primeiro chamou a atenção para o texto foi a conta da própria Sputnik V no Twitter.
Segundo o documento, tratava-se de “combater influências malignas nas Américas”. Pois é. O relatório afirma que o escritório de assuntos globais da pasta (OGA) “usou suas relações diplomáticas nas Américas para mitigar os esforços de países, incluindo Cuba, Venezuela e Rússia, que estão trabalhando para aumentar sua influência na região em detrimento da segurança e proteção dos Estados Unidos”. A OGA ainda trabalhou para “fortalecer os laços diplomáticos e oferecer serviços técnicos e assistência humanitária para dissuadir os países da região de aceitar ajuda desses Estados mal-intencionados”.
O Brasil é citado nominalmente: “Os exemplos incluem o uso do gabinete do adido de saúde para persuadir o Brasil a rejeitar a vacina russa”. O texto só não explica como isso foi feito… Mas, convenhamos, não era preciso muita coisa para persuadir o governo Bolsonaro a seguir os desejos de Trump.
A propósito: o Fundo Russo de Investimento Direto (que financiou o desenvolvimento da vacina) anunciou ontem acordos de produção da Sputnik V com fábricas da Itália, Espanha, França e Alemanha, ainda sem muitos detalhes. A agência reguladora europeia ainda não autorizou o uso do imunizante.
DISTRIBUIÇÃO INJUSTA
Quem se infecta mais e morre mais por covid-19 no Brasil são as pessoas negras – mas elas estão ficando para trás nas filas da vacinação. A Agência Pública e a Repórter Brasil fizeram um levantamento a partir de dados das primeiras 8,5 milhões de pessoas vacinadas. Viram que 3,2 milhões se declaram brancas, contra 1,7 milhões de negras. A informação só não é mais completa porque um alto percentual dos formulários preenchidos durante a vacinação não informa o quesito cor/raça – o que já é, em si, muito ruim.
Há algumas explicações para o problema, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem. Uma delas é que, por conta de determinantes sociais, há menos negros do que brancos com mais de 90 anos – a primeira faixa etária de idosos a ser imunizada. A diferença continua mesmo para idosos mais jovens: a partir dos 60 anos, havia cerca de 30% a mais de pessoas brancas que negras no último censo do IBGE. Outro problema é a dificuldade de locomoção, que representa uma adversidade extra, ao menos onde as equipes da atenção básica não conseguem fazer a busca ativa de pessoas para vacinar.
Tem mais: uma parte da população negra que poderia estar enquadrada nos grupos prioritários, por estar na linha de frente contra a covid-19, não necessariamente recebeu a vacina. Isso porque, em algumas regiões, trabalhadores da limpeza e segurança dos hospitais não entraram na primeira etapa. “Até estudante de Medicina que não estava na linha de frente acabou passando na frente dos profissionais da limpeza – o que é um absurdo, se a gente for analisar estrategicamente quem vacinar primeiro, quem são as pessoas que precisam estar trabalhando para o serviço de saúde continuar oferecendo tratamento”, aponta a médica Rita Borret, da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade.