Na Unidade Básica de Saúde do centro de São Cristóvão, crianças, jovens e idosos aguardam pacientemente para serem atendidos pela médica Sandra Glaucia da Conceição. Muitos dos que esperam fazem questão de serem examinados apenas por ela, que chegou ao município sergipano em 2013 pelo programa Mais Médicos.
Desde então, Sandra, de 39 anos, trabalha na Unidade Básica de Saúde Jânio Teixeira de Jesus, numa região carente do município, o quarto a ser fundado no Brasil. Ela se formou em Cuba e morava na Argentina quando viu no Mais Médicos a oportunidade de voltar a sua terra natal.
De origem humilde, Sandra conhecia bem a realidade que encontrou em São Cristóvão. “Fiz parte desta população, fui da periferia, minha família usava o SUS. Poder estar aqui mostra que realmente podemos chegar a essa posição. Fazer esse trabalho é maravilhoso. A população já me conhece. Sou médica da cidade”, afirma.
A médica trata os pacientes com muito carinho e atenção. Nenhum detalhe passa despercebido por Sandra, que, além de cuidar da saúde, também reforça a importância da educação a jovens e crianças e os incentiva sempre a continuar na escola.
As primeiras perguntas que faz aos novos pacientes são se sabem ler e onde vivem. Segundo a médica, ambos os questionamentos são fundamentais para a prescrição de medicamentos na comunidade onde ela trabalha. No município, as taxas de analfabetismo entre maiores de 15 anos passam de 12%, segundo o Censo de 2010.
“Se o paciente não sabe ler, preciso prescrever o medicamento de uma forma que ele entenda. Além disso, alguns pacientes não têm como comprar muitas das medicações, por isso, preciso indicar um tratamento de acordo com sua condição econômica. Essa visão mais humana de entender as necessidades do paciente e suas possibilidades de cumprir um tratamento aprendi em Cuba”, diz Sandra.
Com sua dedicação e carisma, Sandra conquistou não somente os pacientes, mas sua equipe e também autoridades de saúde municipais e estaduais. Elogios ao trabalho da médica são uma unanimidade.
Atualmente, Sandra é um exemplo para seus pacientes, principalmente para crianças e jovens do bairro carente. Mas seu caminho para cursar medicina e conquistar o reconhecimento na profissão não foi fácil.
Nascida em 1979 em Aracaju, ela cresceu num bairro da periferia da cidade. Sua mãe trabalhava como cozinheira para sustentar os quatro filhos. O pai nunca se interessou pela família. Aos 17 anos, um tio, que era agente de saúde, a apresentou ao Movimento Negro Unificado. O engajamento lhe abriria, alguns anos mais tarde, as portas para realizar o sonho de estudar medicina.
Mas antes de realizar esse sonho, sua família conseguiu conquistar uma moradia digna. Morando de favor na casa da avó, Sandra, sua mãe e irmãos se juntaram a outras 167 famílias, em 1999, e ocuparam o condomínio 5 de agosto, que estava sendo construído com recursos públicos. Dez anos depois, a ocupação foi regularizada, e os moradores conseguiram o devido financiamento para pagar pelo imóvel.
Devido ao seu envolvimento nos movimentos sociais, em 2000, a ativista ganhou uma bolsa para estudar medicina na Escola Latino-Americana de Medicina (Elam), em Havana, voltada para a formação de estrangeiros no curso, cujo país é referência mundial.
“Em Cuba, não só aprendemos a medicina, mas também como tratar o paciente da forma mais humana possível e como se colocar no lugar do outro”, destaca Sandra.
No fim dos estudos, em 2006, a médica retornou a Aracaju cheia de disposição para pôr em prática o conhecimento adquirido em Cuba. O pontapé inicial na profissão, no entanto, foi mais difícil do que o imaginado. “Voltei com o diploma embaixo do braço, mas continuava sendo pobre, preta e da periferia”, lembra.
Sua experiência no exterior não foi somente fundamental profissionalmente, mas também para sua vida pessoal. Em Cuba, Sandra conheceu o marido, um jornalista da Argentina. Sem condições financeiras para revalidar o diploma no Brasil, resolveu tentar seguir a carreira na Argentina.
No país sul-americano também teve um pouco de dificuldade para revalidar o diploma, porém, conseguiu trabalhar inicialmente na Missão Milagro, criada em 2004 numa parceria dos governos de Cuba e Venezuela que proporcionava em território venezuelano operações na visão a pacientes de diversos países latino-americano.
Durante quatro anos foi coordenadora clínica da missão na Argentina. Depois de revalidar o diploma, Sandra começou a fazer residência em pediatria. Em 2013, quando surgiu o Mais Médico viu a oportunidade que tanto esperava para voltar ao Brasil. “Tinha que fazer o que aprendemos em Cuba, que era estudar lá e voltar para trabalhar na nossa comunidade”, conta.
Escolhida para atuar em São Cristóvão, Sandra chegou ao Brasil com a primeira turma de médicos do programa. Apesar de estar apreensiva, devido às manifestações da categoria contra o Mais Médicos, foi recebida de braços abertos no país.
Mesmo com a calorosa recepção, Sandra foi vítima de preconceito. Em São Cristóvão, a primeira reação da secretária de Saúde na época, ao conhecer a médica, foi criticar o sistema de cotas e afirmar que ela teria o “perfil ideal” para trabalhar na comunidade carente para a qual foi enviada. Porém, quando Sandra a questionou sobre o perfil, ela não soube explicar qual seria.
Sandra contou ainda que, por ser negra, muitas vezes não é reconhecida como médica. “Pela comunidade fui bem recebida, apesar de muitos acharem que eu era cubana, porque eles não veem um médico negro como brasileiro. Acontecia muito essa discriminação”, ressalta. “Muitos pacientes ainda têm um impacto ao ver a doutora. Mas é gratificante ver que as crianças daqui se reconhecem com o médico. Por sermos iguais, muitos se sentem mais confortável no atendimento”, acrescenta.
Em 2015, Sandra passou no Revalida, a prova para a revalidação do diploma de medicina no Brasil. Ao completar os três anos no Mais Médicos, renovou por mais três anos o contrato, que vencerá em 2019.
No futuro, Sandra gostaria de continuar trabalhando em São Cristóvão pelo programa, apesar de todas as dificuldades enfrentadas com relação às condições de trabalho.
“A fixação do médico na comunidade melhorou o controle de doenças crônicas e o acompanhamento de gestantes. Não temos todas as condições necessárias, mas se eu não tivesse aqui seria pior para a população”, diz Sandra.