Fernanda Canofre.
A primeira vez que a aldeia mbya-guarani da Lomba do Pinheiro, na zona sul de Porto Alegre, recebeu alguém que concorre em uma eleição presidencial, a conversa começou com uma saudação em guarani. “Mba’?ichapa neko’?”, disse Sonia Guajajara ao abrir sua fala, na manhã desta terça-feira (8). Uma espécie de bom dia na língua indígena. Do outro lado da mesa, decorada com artesanato feito ali, indígenas guarani e kaingang, vindos de outras aldeias da região assistiam o momento histórico.
“É tão bom ser acolhida no sul, porque a ideia que nos passam é de que o sul é um Brasil à parte”, seguiu Sonia, contando sobre as andanças que tem feito na pré-campanha, visitando além de tribos indígenas, povos quilombolas e ribeirinhos. “Esse é o maior sentido da nossa jornada, neste momento. Ter um programa que alcance toda a diversidade do país”.
A pré-candidatura dela como vice-presidente de Guilherme Boulos, pelo PSOL, é a primeira de uma pessoa indígena em 128 anos de República Federativa do Brasil em uma eleição presidencial. Antes de Sonia, o marco mais alto de indígenas na política institucional havia sido com a eleição de Mário Juruna, pelo PDT do Rio de Janeiro, em 1983.
Este ano, porém, eles pretendem alterar essa narrativa. Uma frente integrada por cem povos indígenas já se articula para ter ao menos um candidato eleito em cada um dos 26 estados da federação e no Distrito Federal. Um levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organização coordenada por Sonia Guajajara, citado em uma reportagem do El País de abril, aponta que o país teria pelo menos 36 pré-candidatos a cargos do Legislativo que se auto-identificavam como índios. As filiações vão desde o PSOL de Guajajara até o PSL de Jair Bolsonaro.
Na avaliação de Sonia, isso mostra a diversidade de opiniões também entre os povos indígenas. Ela diz que a prioridade, no momento, é fortalecer a ideia da frente para garantir mais espaço aos candidatos dela.
“Queremos mostrar que a gente tem todas as condições de estar nessa disputa de igual para igual, que não é uma luta secundária, que não somos incapazes, como dizia o próprio Estatuto do Índio de 1974. Não só a Constituição de 1988 superou isso, re-escreveu, mas a gente está mostrando na prática que temos todas as condições de falar por nós mesmos e estarmos ocupando a política institucional”, diz ela.
O Brasil tem hoje uma população de 896 mil indígenas. Embora não se tenha os números exatos de quantos habitavam essas terras antes da chegada dos colonizadores, a estimativa é de que aqui viviam entre 4 e 5 milhões de índios antes de 1500. Depois de anos de políticas eugenistas, a Constituição de 1988 deu um primeiro passo em direção à reparação. Porém, pouco se cumpriu. Passados 30 anos desde a Carta, a pergunta é por que demorou tanto para ter um indígena em uma chapa presidencial?
“Não foi falta de tentativa. Ao longo desses anos todos, as candidaturas indígenas têm sido apresentadas, não com muito êxito, mas a gente sempre acredita, porque não comunga com essa forma de fazer política na atualidade. A gente quer entrar e fazer uma disputa justa e ética. Não tem sentido entrar e continuar fazendo o que os outros fazem de errado. E queremos que as pessoas votem por consciência”, avalia Sonia.
Representatividade
A maioria do público acompanhando a fala de Sonia na aldeia, em Porto Alegre, era composta de jovens. Muitos deles usando roupas comuns de qualquer adolescente – calças jeans, camisetas com estampas escritas em inglês – complementadas com a pintura tradicional dos guaranis no rosto.
A aldeia da Lomba do Pinheiro é um exemplo dos efeitos que os desmontes na Fundação Nacional do Índio (Funai) tem trazido para a vida dos indígenas nas comunidades. A terra onde hoje fica a aldeia foi comprada por um projeto de padres franciscanos e doada aos índios há 40 anos. Há pouco anos, a prefeitura de Porto Alegre adquiriu e anexou mais um pedaço de terreno a eles. No local, deveria funcionar um Grupo de Trabalho de Identificação e Delimitação. Porém, com os congelamentos da Funai, ele foi parado sem previsão de retomada.
Odirlei Kaingang, 35 anos, agente de defesa ambiental, defende que essas são algumas das razões para que os povos indígenas se unam agora em torno do voto de um representante. Pergunto porque ele acha que não apareceram candidatos locais antes. “Eu acredito que seja o nosso desconhecimento mesmo quanto à política. Nós não curtimos política, mas somos obrigados a entrar nesse campo, a fazer parte desse sistema”, analisa. “É a primeira vez que a gente tem a oportunidade de votar em alguém que é do nosso povo mesmo. Nós, indígenas, temos que abraçar essa chance juntos e acabar com essa coisa de deixar que os outros lutem por nós”.
O cineasta Jorge Murinico, 26 anos, conta que achou “emocionante” ver “pela primeira vez na História, um indígena entrar na chapa de presidente”. Diretor de três filmes sobre a realidade indígena no Rio Grande do Sul, todos na plataforma Vídeo nas Aldeias, do cineasta e antropólogo Vincent Carelli, ele defende que há diferenças entre ter um candidato indígena e um candidato que seja apenas apoiador das causas.
“É muito diferente, porque [a Sonia] sabe a situação do Brasil de hoje. Ela sabe porque vive dentro da aldeia e conhece a situação. Demorou porque a gente acreditava na política. Pensava que escolhendo um branco, poderia também mudar, que seria um bom governo, mas nos enganamos”, diz.
Andréia Jaxuka, 29 anos, artesã conta que as crianças da aldeia “ficaram felizes” com a “novidade”, quando souberam da visita de Sonia. E ela, mulher guarani, jovem, também.
“Para nós é um privilégio ver uma pessoa indígena candidata. Ela representa todo mundo e está mostrando que mulher indígena também pode ser valorizada”, afirma ela. Andréia lembra que ter a presença pessoal da candidata também é algo que a aldeia nunca viveu. “Eles lembram que existe índios que podem votar, quando chega no ano da eleição. Eles não nos representam e a gente fica meio assim…Mas tendo uma candidata como ela, a gente vê que ela representa o Brasil inteiro”.
Demandas
Para Odirlei, há causas básicas, das quais uma candidatura de alguém de etnia indígena não pode se afastar: “Demarcação, lutar por uma saúde melhor, que está em colapso, educação, coisas básicas. Demarcação, principalmente, porque ela é essencial para manutenção da nossa cultura”.
Vivendo o governo que paralisou por completo demarcações de terras indígenas e quilombolas e sob a ameaça do marco temporal, que coloca em risco reverter processos já demarcados, Sonia falou ainda sobre o ponto principal de contraposição de sua candidatura. Hoje, diz ela, o Brasil tem “um passivo gigante de terras a serem regularizadas. Boa parte delas está no sul, no nordeste, no Mato Grosso do Sul”.
“Quando a gente coloca essas questões, perguntam se vamos ter mais 13% das terras (percentagem de terras já demarcadas no território nacional)? Os ruralistas colocam isso como um número grande, dizem que essas terras precisam ter função. Mas falam sempre em função econômica, nunca de vida. Nossa luta não é só porque índio quer mais terra, mas porque o Brasil precisa entender que temos um modo de vida que depende de território. Quando o agronegócio diz que eles alimentam o país, eles colocam essa bandeira como secundária”, definiu Sonia.
Depois do encontro na Lomba do Pinheiro, ela seguiu viagem para a região noroeste do estado. Lugar de cidades conflitos recentes pela demarcação e que tem servido de pauta para a causa de ruralistas como Luiz Carlos Heinze (PP), há anos. O Rio Grande do Sul tinha uma população de 38.718 indígenas, segundo o Censo do IBGE de 2000. Dez anos depois, o número caiu para 32.989.