Por Bruno Nomura e Paulo Malvezzi, para Agência Diadorim.
Desde 2019, deputados estaduais de todo o Brasil já apresentaram ao menos 122 projetos de lei que atacam direitos da população LGBTI+. Dessas propostas, 108 seguem em tramitação, 12 foram arquivadas e duas foram aprovadas nas Assembleias Legislativas.
Especialistas avaliam que a apresentação dessas propostas é articulada por redes de grupos conservadores como parte de seu projeto de tomada do poder.
A reportagem buscou os PLs nos sites de cada assembleia estadual. Não foram localizados textos relacionados aos quatro temas no Piauí, em Roraima e Sergipe. Rio Grande do Norte e Tocantins não têm sistemas de busca em funcionamento nos seus sites.
O Rio de Janeiro lidera com o maior número de PLs anti-LGBTI+ apresentados: 13, ao todo. Em seguida estão Paraná e São Paulo (empatados com 11) e Pernambuco (10). Sudeste e Sul são as regiões com o maior número de projetos em relação à quantidade de estados, com médias de 9,5 e 6,6 em cada um deles, respectivamente.
Deputados atualmente filiados ao PL — partido pelo qual o presidente Jair Bolsonaro vai disputar a reeleição — protocolaram 51 dos 122 projetos, seguidos por representantes do Republicanos (25) e do União Brasil (11).
Número de projetos por partido
PL — 51 projetos
Republicanos — 25 projetos
União Brasil — 11 projetos
PSD — 9 projetos
PTB — 6 projetos
MDB — 5 projetos
PP — 5 projetos
Patriota — 3 projetos
Solidariedade — 3 projetos
DC — 2 projetos
PSDB — 2 projetos
Fonte: Assembleias legislativas/Diadorim
Pânico moral
Os principais ataques legislativos partem de parlamentares ligados às chamadas bancadas da família e da Bíblia. São majoritariamente políticos cristãos, sobretudo evangélicos, e seus projetos de lei induzem que a população LGBTI+ é uma ameaça à sociedade.
Segundo Thiago Coacci, doutor em Ciência Política e integrante da Comissão de Diversidade Sexual da OAB-MG, esses projetos são construídos mobilizando o “pânico moral” da sociedade. “Cria-se uma imagem de que nós somos ameaçadores, que estamos destruindo a infância e a família tradicional”, analisa.
É o caso das propostas para impedir que pessoas trans usem o banheiro de acordo com sua identidade de gênero. “Quem garante que pessoas de má fé, ou simplesmente confusas com a própria identidade, não possam se aproveitar de alguns ‘direitos’ como forma de violar a privacidade de meninas e mulheres, se passando por ‘transgêneros’?”, questionou o deputado pastor Tom (Solidariedade) em texto protocolado em 20 de fevereiro de 2019, na Assembleia Legislativa da Bahia. Foi o primeiro desse tipo.
Com esse mesmo raciocínio, o ano de 2019 também foi dominado pelos projetos que estabelecem o sexo biológico como o “único critério para definição do gênero” de atletas em competições esportivas. Em março daquele ano, o caso da jogadora de vôlei Tifanny Abreu, que é uma mulher trans, voltou à tona após o vazamento de um comentário transfóbico dirigido à atleta durante uma partida da Superliga Feminina. Do mês seguinte até março de 2020, parlamentares protocolaram 13 dos 16 PLs sobre o assunto.
O movimento foi iniciado com a apresentação do projeto do deputado Altair Moraes (Republicanos) na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). O texto tem apenas seis linhas e prevê multa de até 50 salários mínimos (R$ 65 mil, atualmente) a federações ou clubes que não adotem o sexo biológico como definidor de gênero. Uma semana depois, outras cinco propostas semelhantes — algumas com textos idênticos (confira nas imagens abaixo) — já haviam sido protocoladas no Rio de Janeiro, Bahia, Paraná, Amazonas e Pará.
Em outubro de 2019, o PL de Moraes passou a tramitar em regime de urgência e chegou a ter votação aberta no plenário da Casa, que acabou sendo adiada por falta de quorum. Desde o fim daquele ano, o texto não retornou à pauta.
Articulação conservadora
Com o início dos casos de covid-19 no país, em março de 2020, a apresentação de PLs anti-LGBTI+ entrou em uma pausa de quase cinco meses. Eles só voltaram à baila a partir de agosto daquele ano, quando surgiram os primeiros projetos de proibição à publicidade que faça “alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual”, como dizem três textos de diferentes deputados de São Paulo, Pernambuco e Paraíba.
A maior repercussão do tema, no entanto, ocorreu em abril de 2021, quando um desses PLs anti-LGBTI+, de autoria da deputada Marta Costa (PSD), entrou em tramitação de urgência na Alesp e foi à votação no plenário.
Integrante da Assembleia de Deus, Costa usou a “defesa das crianças” como argumento de seu PL. Para ela, as campanhas causariam uma “inadequada influência na formação de jovens e crianças”. Uma emenda apresentada por Erica Malunguinho (PSOL) mudando o foco do texto, contudo, ganhou o apoio de colegas, forçando o retorno da pauta às comissões. Naquela época também, um movimento de agências de publicidade pressionou os parlamentares contra a proposta de Costa.
Entrevistados pela Diadorim veem uma articulação orquestrada entre parlamentares conservadores, que inclui a cópia fiel de textos até mesmo entre partidos diferentes mas alinhados ideologicamente. Essa movimentação está sempre ligada a alguma situação de repercussão pública.
Um desses exemplos é o fenômeno da rápida difusão de PLs contra banheiros multigênero, que voltou a se repetir entre outubro e dezembro de 2021. Em novembro, o vídeo de uma cliente criticando banheiros multigênero em uma unidade do McDonald’s de Bauru (SP) viralizou nas redes sociais. Em cerca de três meses, foram 23 textos apresentados em 12 unidades da federação.
“É mais do que uma mera coincidência de um ‘copia e cola’, mas uma articulação de redes que organizam essa ofensiva antigênero”, afirma Thiago Coacci. Segundo o pesquisador, a apresentação de PLs faz parte de um fenômeno internacional, mas que vem ocorrendo nos últimos anos com mais intensidade na América Latina.
“Trata-se de um consórcio de grupos, denominações religiosas e políticos que, por meio do combate aos direitos LGBTI+, têm buscado resultados políticos — tanto no sentido da destituição desses direitos, mas também no sentido político-eleitoral”, corrobora o antropólogo Lucas Bulgarelli, diretor executivo do Instituto Matizes. “Não se trata simplesmente de uma disputa de versões de mundo, mas de um projeto de poder.”
Argumento esvaziado
Para mobilizar a base de apoiadores, os parlamentares autores de PLs anti-LGBTI+ usam em seus textos, inclusive, informações e dados não comprovados.
Em Santa Catarina, a deputada Ana Campagnolo (PL) ressaltou que o número de estudantes que se identificam como transexuais tem crescido exponencialmente nos Estados Unidos. Indiretamente, ela relaciona uma suposta “corrida pelo uso de hormônios bloqueadores de puberdade” à “manipulação dos hábitos” promovida pela propaganda. “É nossa intenção limitar a veiculação de publicidade que incentive o consumidor do nosso Estado a práticas danosas”, registra a parlamentar.
Nos PLs sobre a proibição da linguagem neutra, o que parece incomodar muitos parlamentares é a possibilidade de que uma pessoa não se identifique nem com o gênero masculino, nem com o feminino.
“A referida prática perverte o uso da língua portuguesa para convertê-la em instrumento de disseminação de uma ideologia manifestamente controversa, pois pretende apagar a distinção entre homem e mulher, que está na essência da constituição biológica e psíquica da pessoa”, diz o deputado gaúcho Mateus Wesp (PSDB), ressuscitando o fantasma da teoria conspiratória da “ideologia de gênero”.
Há até quem sugira que a linguagem neutra tem o poder de “converter” pessoas em homossexuais ou transexuais. É o caso do deputado Iolando (MDB), do Distrito Federal. “Isso significa perverter e confundir algo natural e ensinar isto a crianças é um crime monstruoso”, alertou.
Para o cientista político Thiago Coacci, os PLs sobre linguagem neutra são os sucessores das propostas da “escola sem partido”, consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “A discussão nunca foi sobre linguagem, mas sobre a criação de mecanismos institucionais de intervenção, de monitoramento ideológico na escola”, explica.
No caso dos PLs que buscam impedir atletas trans de competirem com o gênero com o qual se identificam, a ameaça alegada é à “paridade de armas” no esporte. Os textos defendem que essas mulheres passaram pela puberdade com níveis de testosterona muito mais elevados em comparação com mulheres cis e, portanto, teriam vantagens de estrutura corporal.
Os parlamentares se esforçam para apresentar falas de especialistas e dados científicos buscando dar um viés biológico a suas teses, mesmo que o tema ainda esteja em discussão no cenário desportivo internacional e não haja respostas definitivas da ciência.
Viés eleitoreiro
Dos 122 PLs anti-LGBTI+ analisados, os únicos dois aprovados estão relacionados à linguagem neutra. Um deles foi na Assembleia de Rondônia, de autoria do deputado Eyder Brasil (PL). Depois de receber dois pareceres favoráveis nas comissões, a matéria foi levada ao plenário da Casa em 21 de setembro de 2021. Na ocasião, a aprovação se deu por votação simbólica em exatos 29 segundos. O governador Marcos Rocha (União Brasil) sancionou a Lei Estadual nº 5.123/2021 em 19 de outubro.
Menos de um mês depois, em 16 de novembro, o ministro Edson Fachin, do STF, suspendeu, de forma provisória, a eficácia da lei a pedido da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino. Fachin entendeu que os deputados rondonienses legislaram sobre normas gerais de ensino, o que é de competência privativa da União.
O ministro considerou ainda que a linguagem neutra busca “combater preconceitos linguísticos, retirando vieses que usualmente subordinam um gênero em relação a outro”, e que o ambiente escolar deve ser participativo, inclusivo, plural e democrático. O tema ainda deve ser analisado pelos demais ministros da Corte.
Em Mato Grosso do Sul, os deputados aprovaram a Lei Estadual nº 5.820/2021, que tinha como autor Marcio Fernandes (MDB). O texto inicial chegou a receber um parecer contrário na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, posteriormente derrubado, alegando que o assunto não era de competência dos deputados estaduais. Em meio às discussões, o projeto ganhou uma nova redação, mais genérica, que cita apenas a obrigatoriedade da utilização da norma culta da língua portuguesa, sem proibir “novas formas de flexão de gênero e de número”.
Além do reduzido número de PLs anti-LGBTI+ aprovados, vários dos que seguem tramitando receberam pareceres contrários nas comissões que, entre outros pontos, indicam a inconstitucionalidade das propostas. Sua aprovação, no entanto, não é a prioridade desses parlamentares, pondera Coacci: “Interessa que você apresentou e levou o debate para a Assembleia, fez algumas falas lá no plenário, filmou e jogou na sua rede social. Interessa pouco a aprovação em si, porque o efeito simbólico disso é muito mais importante”.
“É a utilização do Estado como um alto-falante dessas ideias. Mesmo não virando lei, esses projetos acabam produzindo uma expansão da legitimidade pública sobre essas questões que, até então, não eram consideradas legítimas”, destaca Lucas Bulgarelli.
Tanto para os pesquisadores quanto para ativistas, porém, a falta de diversidade nas Assembleias é o que ajuda a explicar a difusão da LGBTIfobia velada nos PLs. Dos 1.059 deputados estaduais eleitos em 2018, apenas seis são abertamente LGBTI+, aponta um levantamento da organização #VoteLGBT. Isso corresponde a 0,5% do total de cadeiras preenchidas. Os parlamentos nacionais e estaduais continuaram a ser dominados por homens e brancos, em descompasso com o perfil da população brasileira.
De acordo com a presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), Symmy Larrat, enquanto esse cenário continuar no legislativo, o sistema político continuará refletindo apenas uma parcela da sociedade — e não a sua amplitude. Ela defende que a pluralidade seja levada em consideração nas eleições. “Por outro lado, a diversidade em si não basta”, alerta. “O que vai garantir o equilíbrio é a escolha de candidaturas que defendam pautas de maneira interseccional. É importante eleger LGBTIs que favoreçam pautas de acesso a educação e saúde. As áreas sociais são importantes pra superação da violência.”
Larrat acredita que propostas anti-LGBTI+ devem aumentar nas assembleias legislativas com a proximidade das eleições, em outubro. Movimento que, segundo ela, faz parte de uma disputa violenta organizada pela banda conservadora, e que a ABGLT tem monitorado desde 2018 e denunciado internacionalmente. “Estamos pensando estratégias de proteção individual e coletiva pra que a gente consiga passar por tudo. De promover segurança não só pras pessoas candidatas como para os eleitores.”