Mesmo desmembrada aos poucos, desde FHC, é a maior empresa de energia da América Latina. Gera lucros, todos os anos. Em suas 47 usinas está 52% da água armazenada no país. Se vendida, será desnacionalizada. É o que planeja Guedes
Um dos pré-requisitos do desenvolvimento econômico de qualquer país é a sua capacidade de suprir logística e energia para o desenvolvimento da produção, com segurança e regularidade. Sem fontes de energia, não existe nação. Em boa parte, os golpes que os EUA têm realizado na América Latina visam a garantia, de um ponto de vista estratégico, de fontes de minerais e de energia. O golpe de 2016 no Brasil, no aspecto econômico, decorreu principalmente para a obtenção de acesso privilegiado a fontes de petróleo. O golpe na Bolívia, no ano passado, teve como uma das principais motivações o lítio, também conhecido como o Petróleo Branco, cujas reservas, em 60% ou 70% se encontram no país vizinho.
O governo Bolsonaro está querendo entregar a Eletrobrás, privatizando o que restou de patrimônio público federal no setor elétrico brasileiro. Energia elétrica tem peso fundamental na matriz energética nacional, com 17%, ficando atrás apenas de petróleo e seus derivados. O setor elétrico no Brasil já é majoritariamente privado. A iniciativa privada detém 60% da geração de energia instalada no país, 39% da transmissão (que interliga o sistema) e 71% da distribuição (que entrega a energia ao consumidor final). A privatização da área de energia começou nas empresas de distribuição, a partir de 1997, no governo de Fernando Henrique Cardoso, que, assim como Paulo Guedes, queria “privatizar tudo”. Na época, a forte resistência, principalmente dos trabalhadores das empresas públicas inviabilizaram imediatamente a privatização das usinas de geração, que era a intenção também. Mas hoje a geração já é 60% privada.
Algumas distribuidoras também se mantiveram públicas, em boa parte graças à luta dos trabalhadores, que impediu a entrega total das empresas para o setor privado. Os trabalhadores da Celesc, por exemplo, em Santa Catarina, têm uma bela história de resistência e tenacidade. Não fosse sua organização e combatividade, a maior empresa pública catarinense, e uma das 10 maiores estaduais no geral, já teria sido entregue há muito tempo para o setor privado.
A expansão da geração na última década ocorreu com leilões à iniciativa privada. A maioria teve como vencedores grupos locais como Odebrecht e Camargo Corrêa. Só que essas empresas foram praticamente destroçadas pela Operação Lava Jato (tramada no Departamento de Estado dos EUA). A Lava Jato, como se sabe, foi uma operação montada para atingir essencialmente a Petrobrás (como as denúncias recentes vão deixando cada vez mais evidente). Porém, à medida que o processo foi se desenvolvendo, os conspiradores, liderados pelo Departamento de Estado norte-americano, perceberam que podiam aproveitar a operação para liquidar também empresas do setor privado do Brasil, que concorriam diretamente com as empresas estadunidenses.
Apesar do Brasil reunir condições naturais que lhe assegura uma produção de energia elétrica com baixíssimos custos de produção (grandes rios de planalto, alimentados por chuvas tropicais abundantes), a tarifa média brasileira de energia elétrica é superior à praticada em outros países. Segundo o ranking de tarifas do Global Petrol Prices de 2019, o Brasil possui a 37ª tarifa elétrica mais alta do mundo, numa lista de 110 países. Não é uma boa colocação considerando as ótimas condições do Brasil para produção de energia elétrica barata. Segundo os especialistas, a energia elétrica tem fonte predominante hidroelétrica (61%), mas o preço cobrado ao consumidor, dá a impressão de que toda a produção de energia elétrica no Brasil é à base de carvão, petróleo ou gás natural. Como acontece, de fato, na maioria dos países, que não dispõem de recursos naturais abundantes como o Brasil.
O resultado disso é, dentre outras coisas, um excessivo peso do gasto com energia elétrica, sobre o orçamento dos mais pobres. Segundo a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), o custo médio da tarifa residencial, nos primeiros seis meses de 2020, ficou em R$ 135,05 no Brasil. Este custo médio do preço da energia residencial, representa 10% do rendimento mensal domiciliar per capita no Brasil, que, segundo o IBGE, é de R$ 1.337 em 2018 (última informação disponível). Aquele custo da eletricidade não seria tão importante, não fosse o povo brasileiro, uma população tão “esmagada” economicamente: 57,6% dos rendimentos domiciliares per capita observados
em 2018 ainda eram iguais ou inferiores ao valor do salário mínimo vigente nesse mesmo ano. Isso significa que mais da metade das pessoas possuíam rendimento domiciliar per capita de até R$ 954,00 (um salário mínimo). Portanto, o valor da energia elétrica pesa muito na balança orçamentária da maioria das famílias brasileiras.
Além do impacto significativo no orçamento dos quase 74 milhões de consumidores residenciais das áreas urbanas (especialmente os mais pobres), cerca de 4,5 milhões de agricultores brasileiros também pagam a tarifa absurdamente alta, o que necessariamente implica na elevação dos custos de produção dos alimentos. Ou seja, o custo da energia elétrica acaba encarecendo diretamente o preço da alimentação no país. Segundo Gilberto Cervinski, membro da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens, um cartel formado por 15 grupos empresariais controla toda a indústria da eletricidade no país. Ou seja, controla as unidades de produção, usinas, linhas de transmissão, e as distribuidoras que comercializam e entregam a energia elétrica para quase 80 milhões de unidades consumidoras no Brasil. Segundo Cervinski, que é especialista em energia, estes são os verdadeiros donos das riquezas, bancos privados brasileiros e estrangeiros, bem como fundos de investimentos nacionais e internacionais.
O setor de energia elétrica no Brasil opera com elevadas taxas de lucros. Mesmo com o Brasil enfrentando a maior recessão/estagnação da sua história, o Lucro Líquido da Eletrobrás em 2018 foi R$ 13,348 bilhões; em 2019: R$ 10,7 bilhões e em 2020: R$ 307 milhões, no 1º Trimestre. Em 2020 reduziu o lucro porque o Brasil ingressou numa “tempestade perfeita” na qual reduziu o consumo de energia e aumentou a inadimplência. Mas as taxas históricas de lucro líquido da Empresa são elevadas, por isso desperta a cobiça do capital privado, sedento por ótimos negócios em qualquer parte do mundo.
As grandes aves de rapina que abocanharem as estatais do setor elétrico não precisarão construir absolutamente nada. A Eletrobrás atua nos segmentos de geração e transmissão, tem 47 usinas hidrelétricas responsáveis por 52% de toda a água armazenada no Brasil. Sendo que 70% dessa água são utilizados na irrigação da agricultura. As multinacionais pegarão tudo isso pronto, que será vendido a preço de banana, e ainda serão autorizadas a aumentar as tarifas. As empresas que arrematarem a Eletrobrás pegarão o patrimônio enxuto e com investimentos feitos anteriormente como sempre ocorre nas privatizações. A Eletrobrás, possui entre suas 47 hidrelétricas as melhores geradoras de energia do país, incluindo as de Tucuruí e as da Bacia do São Francisco. Responde por 31% do setor elétrico brasileiro e possui 71.000 Km de linhas de transmissão de energia (quase metade dessa rede no país).
Segundo estudo da FGV, após 2016 houve mais de 15 operações de fusões no setor elétrico, que somaram quase R$ 86,2 bilhões em valor de empresa. Desse total, R$ 80,5 bilhões (mais de 93%) representaram aquisições em que os compradores eram empresas estrangeiras. Este dado mostra a relação direta entre privatização e desnacionalização. Num sistema cada vez mais dominado por capitais estrangeiros, a Aneel, para fiscalizar todo o país, dispõe de 300 funcionários. Nos EUA, somente a agência reguladora do setor (Federal Energy Regulatory Commission), conta com 1,5 mil funcionários, além de cada estado dispor de uma agência do setor elétrico.
Não se vê nos EUA, Alemanha, ou China abertura desse setor para o estrangeiro. A tendência inclusive, no que se refere ao conjunto da economia, é de reestatização dos setores: foram quase 900 reestatizações entre 2009 e 2018. Ao contrário do que ocorre no Brasil, Estados Unidos, China e Canadá mantêm o domínio do setor elétrico. Nos EUA, a maior parte é controlada publicamente e pelo governo federal, em grande parte inclusive pelo próprio exército americano. Lá, o Corpo de Engenheiros do Exército é o maior operador de energia elétrica do país, controlando as grandes barragens de John Day, The Dalles e Bonneville. Na China, a estatal Three Gorges Corporation controla a maior hidrelétrica do mundo, a de Três Gargantas. No Canadá, o setor é controlado por companhias dos governos provinciais, semelhantes aos governos estaduais brasileiros. Privatização e abertura para o estrangeiro, especialmente nos dias atuais, é coisa de país subdesenvolvido, cuja economia está à serviço dos países imperialistas.
José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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