
Por Rodrigo Guéron.
Dirigindo-se ao público antes de começar o espetáculo o diretor João Velho dá a senha: — Isso é teatro, tudo que acontece aí fora interfere aqui dentro: o celular toca, na rua rola uma roda de samba com som ampliado, alguém tosse na plateia… Muitos tempos e um só tempo.
Eles não usam Black Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, é uma peça escrita em 1958, no contexto de um teatro político, ativista, para ser apresentado ao povo nas praças ou a preços populares, forjado por autores e atores que logo em seguida criariam Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Um teatro que buscava colocar a população diante de sua própria realidade social e política, num ato ao mesmo tempo de identificação, desvendamento e força.
A peça conta a história de uma greve que se prepara em uma metalúrgica, sob a liderança de Otávio, sindicalista e antigo militante comunista que estivera preso durante quatro anos num passado recente. Mas o problema é que Tião, filho de Otávio e de Dona Romana — e que acabou de saber que sua namorada Maria está grávida, resolvendo se casar às pressas –, ambiciona um posto melhor na fábrica ou fora dela, e pensa em furar a greve.
Corajosos, e sem esperar muitos apoios institucionais, a não ser o de terem um mês na programação do belo Teatro Dulcina, no Centro do Rio, reformado e (bem) administrado pela Funarte, Velho colocou dez atores da sua Única Companhia em cena, muito bem escolhidos e dirigidos. De fato, cada um dos atores mereceria uma menção, encontrando com criatividade seus personagens e os defendendo com força no palco. Mas Laura Campos como Dona Romana e Pedro Rocha como Otávio têm uma impressionante atuação. Ela talvez seja a que mais tempo fica em cena, incorporando a dureza da vida de uma mulher trabalhadora, pobre, que lava roupa para complementar o orçamento familiar e ainda tem que cuidar de marido e filhos. No tom da peça, Laura circula do drama à comédia, vive os dois em um só movimento, enquanto a sua personagem mostra com verdade que, se os trabalhadores são explorados, entre eles a exploração das mulheres é a maior de todas. Pedro Rocha, por sua vez, atrai o público para si com uma presença em cena segura, uma voz muito bem colocada, dando grande força ao personagem de Otávio, um homem sonhador e corajoso, admirado entre os seus, que foge da ignorância e da miséria na leitura e na militância, mas não dispensa uma festa e uma cachaça da boa.
E se o povo somos nós, o público, a peça passou na prova dos nove: com alegria e todas as emoções que vêm com ela, inclusive a tristeza. O espetáculo é perfeitamente atual na atenção da plateia, no riso e no choro, e nos aplausos; alguns em cena aberta. É claro que, além do poderoso texto de Guarnieri, isso se deve a uma carpintaria do teatro muito bem montada por Velho e sua trupe, a Única Companhia; ou talvez uma engenharia, porque a máquina funciona muito bem azeitada. Mas toda essa hábil construção-criação teatral mobiliza e é mobilizada pela atualidade dos temas da peça: muitos tempos em um só tempo. Tempos que, como na fórmula de Eisenstein para o cinema, colidem no espetáculo, empurrando-o para a frente, produzindo sentidos e efeitos: tempo presente, atual. Por exemplo, muitos como eu chegaram ao teatro com a memória da magnífica adaptação do texto de Guarnieri que foi feita para o cinema por Leon Hirszman: filme de 1981 que levou o Leão de Ouro no Festival de Veneza.
Em uma lógica cronológica, o tempo do filme, e com ele o seu local, era outro: no final dos anos 1970, início dos 80, no ABC paulista conflagrado, balançando a ditadura militar, sua violência e sua política econômica. A peça, por sua vez, se passa no final dos anos 1950, numa favela dos subúrbios cariocas da Região da Leopoldina.
E assim, descobrimos na montagem da Única Companhia, Guarnieri mostrando intimidade com um teatro popular que encheu os teatros do centro do Rio até meados do século passado: a comédia carioca, sua crônica social engraçada, seus tipos às vezes caricatos. Uma peça criada, não por um acaso, no mesmo núcleo que fundou o CPC, onde estava Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, autor do clássico “Rasga Coração”, conhecido televisivamente pela “Grande Família”, e um dos atores de Black Tie nas primeiras montagens. João Velho e sua companhia espremem o texto e tiram dele muito bem esse suco. Mas a peça não é (só) uma comédia, circula desta ao drama, entra sem medo no realismo, sem deixar de fazer acenos a Brecht e seus afastamentos, assumindo, e até celebrando: — Isso é teatro.
Não estamos falando, no entanto, de alguma colcha de retalhos de estilos: os atores entram num perfeito acordo com o tempo do ritmo e do instante. E assim descobrimos que há uma relação possível entre o teatro e a greve, e esta tem a ver exatamente com outras experiências do tempo. Seria superficial dizer que a greve “para” ou “interrompe” o tempo, na verdade ela rompe um tempo hegemônico para produzir outro. A dramaturga, poeta e filósofa Leda Maria Martins no seu belo livro A Performance do Tempo Espiralar (Cobogó, 2024) vem aqui em nossa ajuda: há um tempo colonial, triunfante, que sujeita corpos e almas a produzir para o capital. Esse tempo ela identifica como a “tirania de Chronos”, como se denunciasse o sequestro que o trágico Deus grego sofreu, primeiro da filosofia europeia e depois, e com cumplicidade desta, do capitalismo.
Chronos tinha lá a sua potência, afirmando o trágico da finitude, do tempo que vai se abatendo sobre nossos corpos mas que, exatamente por ter um fim no horizonte, nos lança desejantes na possibilidade de sempre poder criar o novo enquanto estivermos vivos ou, para alguns, vivos no tempo da finitude. Foi essa possibilidade criativa que o capital extraiu de corpos e almas nos últimos séculos. É como se Chronos tivesse sido comprado para furar a greve, como Tião foi: a produção não pode parar, numa sucessividade incessante, numerada, uma hora depois da outra, um dia depois do outro, medição cartesiana de tudo, quantidades abstratas em forma de moeda… E assim caímos na competição de todos contra todos, na obsessão individual por sucesso, produzir por produzir sem nenhuma identidade com o que se produz, trabalho extenuante para outrem, produção infinita de lucro e mais valia. O capital nos arrastou na sua máquina de tempo cronológico, como Charles Chaplin automatizado na linha de montagem de Tempos Modernos.
É nesse sentido que a greve tem uma positividade: ela instaura a possibilidade de outros tempos, abre a vida para os acontecimentos, para os encontros, quando rompe com um tempo hegemônico. Filosófica e politicamente a greve é uma questão e um ato no tempo, abrindo a perspectiva da invenção política de outros mundos possíveis em alguma encruzilhada onde os tempos se encontram. Por isso é tão importante que Leda Maria evoque conceitos vindos das filosofias africanas, cuja a escrita é muitas vezes performada no movimento dos corpos, na dança, no canto, na voz e, porque não dizer, uma escrita que tem a sua gênese em um teatro. Em oposição ao tempo cronológico, ela nos sugere, por exemplo, o encontro de muitos tempos em uma encruzilhada e a circularidade entre presentes, passados e futuros em um tempo espiralar. É como se Exu (para ficar apenas no exemplo Iorubá) barrasse, no piquete de greve, a entrada de Chronos na fábrica: na máquina de produção capitalista.
Antes mesmo de começar a greve, a peça de Guarnieri já no apresenta um pouco destes encontros, de outros tempos possíveis, numa favela da Região da Leopoldina, subúrbio ferroviário carioca, morada dos operários da fábrica onde se preparava o movimento; pequenas resistências à dureza cotidiana: uma piada, umas doses de cachaça com os amigos, um namoro, uma criança que vai nascer, uma festa, um sambinha, mas também brigas, broncas, gritos, desabafos de raiva e protesto.
E então estamos diante de uma aproximação entre o teatro e a greve. Mesmo que uma peça tenha uma história linear, as coisas são como Velho lembrou antes do espetáculo: tudo o que está fora interfere dentro, os acontecimentos de vários tempos na memória do público, o que está acontecendo agora na cidade e no mundo. No locus dramático da peça, na casa de Otávio, Romana, Tião e Chiquinho na favela — e na fábrica, ainda que por evocação –, passados, presentes e futuros se encontram na encruzilhada, numa colisão criativa que não é apenas dialética, mas múltipla.
É como se Guarnieri tivesse encontrado naquele morro na Leopoldina o que Abdias do Nascimento estava nomeando, mais ou menos naquela época, de “quilombismo”; conceito que só nos últimos anos explodiu com a sua justa força designando aquilo que o diretor do CPC percebera sem saber o nome. De fato, ele foi de encontro à classe trabalhadora, e a encontrou, mas encontrou também no coração dela as velhas estratégias de resistência negra, de passagem da sobrevida à vida, na favela: a construção de uma comunidade, suas redes de solidariedade e afetos, suas produções coletivas: das casas que sobem o morro, ao samba e à escola de samba.
Mas o tempo segue espiralando e traz um outro presente do passado. A peça nos lembra que os subúrbios do Rio eram industriais e que a favela era, e ainda é, a morada da classe trabalhadora. E assim uma das principais tentativas de apagamento atuais é revertida na gira do teatro: a luta de classe e a experiência coletiva construída nessa luta. E ela estava ali, pouco dias antes, rondando o Teatro Dulcina em duas rodas na greve dos trabalhadores de aplicativos. No coração das maiores vítimas da falácia do empreendedorismo e da livre concorrência, os entregadores interpelavam os colegas que hesitavam em aderir à greve pela cidade: — Não seja otário, você não vai conseguir nada sozinho, se junte aos seus. Piquetes em circulação.
E assim se recupera o tempo da construção coletiva, da solidariedade e do agenciamento: a greve, a mobilização política, o mutirão da favela, a festa na casa de Romana e Otávio, o Teatro.
Rodrigo Géron é autor de “Capitalismo, Desejo e Política. Deleuze e Guattari leem Marx” e “A Vingança dos Capatazes. O bolsonarismo como fascismo”. Ambos pela Nau Editora. Também é filósofo e professor associado na UERJ.
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