Eleições municipais no Brasil, coalizões e ideologia

Por Amílcar Salas Oroño.*

Sem realizar juízos demasiado ambiciosos ou definitivos, algumas observações a respeito das recentes eleições municipais brasileiras podem também ser precisas para uma compreensão geral das dialéticas latino-americanas da última década. Os resultados, ainda que provisórios, permitem registrar dois tipos de fenômenos que, embora apareçam nos outros sistemas políticos, apresentam, no caso brasileiro, uma manifestação um pouco mais nítida: por um lado, a complexidade que supõem as coalizões governamentais (amplas), com os giros e movimentos que costumam realizar algumas de suas forças internas e, por outro, a singularidade dos processos de socialização e subjetivação política que se materializaram nestes anos nos grandes conglomerados urbanos, as grandes cidades.

II

Do ponto de vista federal, o Partido dos Trabalhadores (PT) recebeu um forte respaldo como opção representativa: foi o partido que obteve mais votos em todo o país, aumentou em 12% o número de prefeituras – índice que seguramente aumentará no segundo turno de 28 de outubro – e aumentou em 24% o número de vereadores; êxitos que, diferentemente do resto dos atores partidários, ocorreram com uma distribuição mais ou menos equitativa ao longo de todo o território.

Como projeto político, conseguiu expandir sua capilaridade e consolidar sua presença em termos de correlação de forças; um avanço que também se verifica na coalização governamental em geral, sobretudo se se considera o crescimento do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e as prefeituras que ainda controla, apesar de sua diminuição nesta eleição, o principal aliado do PT, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).

No entanto, é este crescimento e a própria natureza da coalizão governamental que merecem um comentário em particular. Em várias cidades, as principais disputas ocorreram entre estas forças aliadas em nível federal, impactando a organicidade do discurso político do projeto do governo.

III

É preciso levar em conta que, de forma tendencial e até este ano, a coalizão governamental sempre foi aumentando: se, em 2002, na eleição que consagra Lula Presidente, o PT dirigia uma frente com outros quatro partidos, considerados menores, na eleição de 2010, que coloca Dilma Rousseff na Presidência, a frente eleitoral é composta por dez partidos, com a presença de partidos de maior peso, como o PMDB.

Sob a influência do lulismo, um fenômeno de identificação fundamental para compreender as particularidades brasileiras, o espaço político do governo foi se ampliando de forma crescente. Se é certo que toda ampliação traz consigo asincronias, estas se manifestam, com maior exposição, quando os partidos têm que comunicar suas “visões de mundo” diretamente para a cidadania, no momento do sufrágio.

O paradoxal nestas eleições municipais brasileiras é que um número eloquente das disputas se deu entre partidos do mesmo espaço político nacional, em uma mescla e superposição de discursos que, segundo o caso, gerou, pelo menos, desorientação. O princípio ativo desta circunstância está nas próprias idiossincrasias das cidades em questão, nas mutações que sofreram, as mudanças singulares que se sucederam como efeitos de um intenso e sustentado crescimento econômico.

Esses anos foram, sensivelmente, de fortes alterações nas paisagens urbanas: os principais centros populacionais sofreram profundas mudanças em seus fluxos de mercadorias, seus sistemas de ações, suas famílias de ideias, em um ritmo vertiginoso, por vezes caótico. O curioso é que, em seus desenvolvimentos, deram consistência a discursos políticos contrários a quem, em definitivo, é o agente central das transformações: a intervenção estatal dos governos federais.

IV

Trata-se de um problema geral das grandes cidades latino-americanas, em contextos de crescimento. Durante o ciclo político que já dura quase uma década, no Brasil e em outros países latino-americanos, os progressos foram indiscutíveis, tracionados principalmente por essa regulação e socialização promovida a partir do Estado. Mas, de forma paralela, também ocorreu uma socialização a partir do mercado, por meio do consumo, que colocou seus ingredientes nos imaginários coletivos, nas características das classes sociais, nas suas identidades.

Neste sentido, cabe advertir que, à maneira de um efeito indireto e não desejado destes tempos, uma contemporânea “ideologia do mercado” – autorreferencial, privatizadora das relações sociais, assimilando a noção de cidadão a de consumidor – conseguiu enraizar-se nas cidades de maior porte, pela própria propensão deste tipo de espaços e, em certos casos, pela promoção explícita de algumas forças políticas, como o PRO em Buenos Aires ou figuras como J. Nebot em Guayaquil.

Estas metropolitanas “ideologias do mercado” se baseiam sobre movimentos reais, é certo, mas extraem e exprimem dos signos da época seus elementos menos gratos, menos solidários e mais individualistas. A particularidade brasileira é que forças internas da própria coalizão governamental assumiram, em certas regiões, essas características.

V
Apesar de que os recentes resultados municipais podem ser interpretados como um avanço para o PT, é preciso levar em conta que, das 83 cidades consideradas grandes, com mais de 200 mil habitantes, o partido só conquistou, até aqui, oito prefeituras. Tem possibilidade de ganhar prefeituras em outras 22 cidades no segundo turno, sendo que, em onze delas, disputa com forças políticas de sua própria base (PMDB, PSB, PDT).

Assim como ocorre com outros governos da região, a elaboração de uma interpretação específica das metamorfoses vivenciadas nestes anos nas grandes cidades não tem sido uma tarefa simples para o PT. Pelas características próprias dos circuitos capitalistas que ali se reatualizaram, e dado o maior tráfego e desordem em seus processos de subjetivação política, trata-se de localizações espaço-temporais complexas, contraditórias.

A amplitude da coalizão governamental permitiu uma divisão do trabalho, não sem custos: oscilando discursivamente entre o projeto político do governo e a “ideologia do mercado”, os aliados, na maioria dos casos, definiram seus posicionamentos programáticos abraçando esse segundo perfil. Um triunfo do PT em São Paulo no segundo turno, como tudo parece indicar, talvez permita corrigir o sentido das tendências: por um lado, reforçaria a “fronteira política” do governo no interior de sua própria coalizão, neutralizando o avanço da “ideologia do mercado” e, por outro, poderia brindar elementos e perspectivas – em uma futura administração petista – que sirvam de inspiração para os dilemas urbanos de outros governos, em sintonia com a rica tradição partidária sobre questões locais.

(*) Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe (Universidade de Buenos Aires).

Tradução: Katarina Peixoto.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/

 

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