Por Rafael Barifouse.
Os chamados “coletivos” já eram comuns em áreas como produção cultural e ativismo social, e começaram a conquistar espaço na política nas eleições de 2016. Neste ano, ganharam mais força, com mais de 30 candidaturas aos Legislativos estaduais e federal, e a eleição destes grupos para dois cargos de deputado estadual, em São Paulo e Pernambuco.
São pessoas que se reuniram informalmente em torno de uma única candidatura e se apresentaram aos eleitores como uma espécie de comitê que cuidará de um mesmo mandato – uma alternativa de atuação política pensada para dar voz a quem não se vê representado pelo sistema atual. Mas há quem questione a legalidade desse tipo de iniciativa.
É assim que, há dois anos, cinco pessoas são “um vereador” em Alto Paraíso, em Goiás. E duas vereadoras de Belo Horizonte, em Minas Gerais, uniram seus gabinetes, física e simbolicamente, para formar o Gabinetona e atuarem juntas.
Nesta eleição, foi a vez da Bancada Ativista, em São Paulo, que tem nove integrantes, e da Juntas, em Pernambuco, formada por cinco mulheres, se elegerem para suas respectivas Assembleias – em ambos os casos pelo PSOL.
“Nós já nos conhecíamos de alguma forma, da militância nas ruas. Seria mais potente juntar nove pessoas para pleitear um lugar na Assembleia, em vez de forma isolada. Inovar para fazer com que a política saia dos seus moldes, se repense”, diz a estudante transgênero Erika Hilton, de 26 anos, da Bancada Ativista.
“Falta representatividade. As mulheres são 10% do Legislativo no Brasil. Pensamos que, no coletivo, a gente poderia chegar mais longe e reinventar a política a partir de dentro dela”, afirma a jornalista Carolina Vergolino, de 40 anos, da Juntas.
Mas não eram nem de Erika, nem de Carolina as fotos que apareciam na urna quando o eleitor digitava o número de suas candidaturas.
A Legislação eleitoral trata toda forma de candidatura como um ato individual. Não veta expressamente as candidaturas coletivas, mas também não prevê essa possibilidade.
Então, foi necessário que uma das integrantes da Juntas e da Bancada Ativista assumisse a linha de frente. Na prática, se elegeram a jornalista Monica Seixas, de 32 anos, pela Bancada Ativista, e a ambulante Jô Cavalcanti, de 35 anos, pela Juntas.
Estrutura diferente
Elas serão as deputadas de fato, com direito a voto e ao salário, enquanto os outros passam a integrar os gabinetes. Mas os coletivos políticos afirmam que todos terão o mesmo papel e peso na atuação legislativa, como codeputados.
“Os eleitores elegeram nove pessoas para um único mandato, não uma pessoa que tem oito assessores. Todos vamos cumprir esse dever”, diz Erika.
Mônica diz que muitos eleitores da Bancada já entenderam essa proposta, mas o público em geral, ainda não. “As pessoas ainda vêm em nossa página me dar parabéns, chamam as outras pelo meu nome. Agora, precisamos construir esse entendimento para o mundo e para nossos colegas deputados.”
No entanto, para o jurista Dalmo Dallari, o exercício coletivo de um mandato é “absolutamente inconstitucional”.
“O direito de se candidatar está previsto na Constituição entre os direitos individuais e não entre os coletivos ou sociais. Não há no sistema jurídico brasileiro uma forma de representação parlamentar coletiva”, afirma Dallari.
“É pura fantasia, simplesmente um jogo eleitoral, uma forma de angariar votos. Você pode dizer que vai ouvir os outros, trocar uma ideia, mas isso não é um mandato coletivo. Não há nenhuma obrigação de ouvir os demais integrantes do grupo. Se não fizer isso, não há qualquer consequência, porque, legalmente, o mandato é individual. Não há, deste ponto de vista, um reconhecimento dessa coletividade.”
Mas existe uma iniciativa para tentar mudar isso. A Prosposta de Emenda à Constituição 379/2017, apresentada em novembro do ano passado pela deputada federal Renata Abreu (Podemos-SP), busca viabilizar o exercício coletivo de um mandato. Atualmente, o projeto está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Consultado pela BBC News Brasil, o TSE esclarece que o mandato é “personalíssimo e intransferível”. “Somente a pessoa eleita é que poderá exercer os atos privativos do seu cargo como, por exemplo, subscrever projetos de lei apresentados nas casas legislativas ou, ainda, assinar decretos e demais atos administrativos privativos de detentores de cargos no Poder Executivo”, informou o tribunal.
As iniciativas políticas do grupo poderão ser discutidas conjuntamente, mas só serão efetivadas se devidamente chanceladas pelo verdadeiro titular do mandato.
“Quaisquer divergências surgidas entre os membros do grupo sequer poderão ser discutidas no Poder Judiciário. No caso de morte do candidato já empossado, os demais membros do grupo não poderão sucedê-lo, a não ser que constem como seu vice, no caso de cargos do Poder Executivo, ou como seus suplentes, no caso de mandatos legislativos.”
No entanto, o TSE esclarece que “a não ser que se infrinjam as regras de propaganda eleitoral, não há previsão de punição para candidaturas ‘coletivas’, desde que o eleitor seja orientado em qual dos membros do grupo deverá votar”.
Quem são a Bancada Ativista e a Juntas?
A Bancada Ativista surgiu em 2016 para dar apoio a oito candidaturas a vereador de São Paulo, entre elas a de Sâmia Bonfim (PSOL), eleita na ocasião e que, agora, conseguiu uma vaga na Câmara dos Deputados paulista.
O grupo se reformulou desde então, com a saída e entrada de integrantes, enquanto ao mesmo tempo cogitava disputar estas eleições.
Além de Erika e Mônica, o grupo é formado pela artista Anne Rammi, de 38 anos, a pedagoga indígena Chirley Pankará, de 44 anos, a professora Paula Aparecida, de 33 anos, o produtor cultural Jesus dos Santos, de 33 anos, o educador Fernando Ferrari, de 41 anos, a ambientalista Claudia Visoni, de 52 anos, e a sanitarista Raquel Marques, de 41 anos.
“A gente brincava dizendo que, se um ganhasse, o outro ia estar no mandato. Mas a gente é pessimista e pensava: somos pobres, da periferia, ninguém vai ganhar. Mas e se nos uníssemos em uma única campanha? Talvez fosse possível”, conta Mônica.
E foi: a Bancada Ativista recebeu 149.844 votos, o segundo melhor desempenho do PSOL em São Paulo e o décimo entre todos os deputados estaduais eleitos.
Para se elegerem, gastaram R$ 72 mil em sua campanha, paga inteiramente por fundos arrecadados por meio de campanhas de financiamento coletivo pela internet.
Nem todos os integrantes da bancada são do partido, no entanto. Claudia é filiada à Rede, e Anne não é ligada a nenhuma legenda. A Bancada diz ter firmado com o PSOL um acordo para atuar de forma independente, sem ter a obrigação de seguir a orientação partidária em seus votos.
Uma vez no cargo, seus membros atuarão em conjunto para defender bandeiras tão diversas quanto educação pública de qualidade, direitos de animais, agricultura urbana, direitos de negros, mulheres e LGBTIs, demarcação de terras indígenas e mobilidade urbana.
“A produção legislativa é frenética e não tem como uma pessoa ler centenas de leis sozinha. Estaremos divididos em áreas. Se o projeto for de educação, a Paula vai analisar. Se for meio ambiente, será da Claudia. E elas posicionam o grupo”, diz Mônica.
As decisões serão tomadas em reuniões para buscar um consenso, explica a codeputada. Ela diz que a experiência da campanha mostrou que eventuais divergências podem ser resolvidas.
“Já passamos um ano convivendo e pensando política e, ainda que sejamos de ativismos diferentes, a visão de mundo é a mesma. Estamos unidos.”
Será a primeira vez que haverá um mandato coletivo na Assembleia paulista – assim como será inédita a experiência em Pernambuco.
A Juntas é formada por filiadas ao PSOL que se conheceram por meio do ativismo e se candidataram inspiradas pela Bancada Ativista e pelo Muitas, movimento que levou à eleição das vereadoras do Gabinetona, Áurea Carolina e Cida Falabella, em Belo Horizonte.
Os 39.175 votos que receberam foi a maior votação do PSOL em Pernambuco e a única candidatura do partido a se eleger. Sua campanha custou R$ 55,2 mil, dos quais R$ 24,6 mil vieram do fundo partidário e o restante, de doações.
A advogada transgênero Robeyoncé Lima, de 29 anos, a professora Kátia Cunha, de 43 anos, e a estudante Joelma Carla, de 20 anos, exercerão o mandato junto com Carolina Vergolino e Jô Cavalcanti.
“Não entrarmos sozinhas na Assembleia é muito importante, especialmente hoje, quando existe a ideia de que há um único salvador da pátria. A política não tem de ser feita dessa forma”, diz Jô.
Elas explicam que terão um conselho político formado por cidadãos para ajudar na tomada de decisões. “Queremos que as pessoas opinem, participem para além do voto, que venham construir nossa ‘mandata’ com a gente”, diz Robeyoncé, que, assim como outras do grupo, prefere usar no feminino alguns termos que aparecem com mais frequência no masculino na política – como “partida”, em vez de partido.
“Vamos ter uma prestação de contas constante do que fazemos, como gastamos o dinheiro que recebemos, e o convite para uma sexta pessoa fazer parte do grupo estará sempre aberto.”
O Gabinetona vai para Brasília
Ao mesmo tempo, em Belo Horizonte, uma das integrantes do Gabinetona foi eleita para o Congresso Nacional. Áurea Carolina foi a quinta deputada federal mais votada, com 162.740 votos, a maior votação do PSOL no Estado nesta eleição.
Ela se tornou vereadora em 2016 junto com Cida Falabella, ambas lançadas pelo movimento Muitas, do qual saíram 12 candidaturas de mulheres.
A maioria das que não se elegeram hoje trabalham entre as 40 pessoas do Gabinetona, onde as equipes de Cida e Áurea ocupam um único espaço comum na Câmara Municipal de Belo Horizonte.
Elas são duas das quatro mulheres entre os 41 vereadores. “Somos uma minoria aqui dentro, temos de nos fortalecer”, explica Áurea sobre a decisão de atuar de forma conjunta.
“O sistema atual não representa quase ninguém de fato, mas isso não pode virar uma negação da política, como está acontecendo, e dizer que ninguém presta. Temos que assumir a responsabilidade de fazer política de forma mais responsável.”
Os membros de suas equipes trabalham divididos em núcleos, como comunicação, jurídico, gestão, assessoria e demandas da população. Áurea explica que cada um tem certa autonomia para decidir em suas áreas, e as decisões mais importantes são feitas por toda a equipe.
“Nunca votamos nada internamente. Fazemos reuniões de avaliação e de tomada de posição. Quando há divergências sérias, elas são tratadas coletivamente. Não tem isso de alguém decidir e pronto, acabou”, explica Áurea.
Ela diz que sua eleição para deputada federal não compromete o projeto, pelo contrário: será uma expansão do Gabinetona, junto com a eleição de Andreia de Jesus (PSOL) para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
“Só me candidatei porque não se trata de um projeto individual ou personalista. Nosso sonho era ter o Gabinetona nas três esferas do Legislativo”, afirma.
“Agora, nós quatro – eu, Andreia, a Cida e minha suplente, a Bella Gonçalves, que assume em meu lugar – vamos coordenar nosso trabalho. Queremos montar uma casa coletiva para abrigar nossos escritórios e atuarmos de forma integrada para direcionar projetos para a esfera mais adequada.”
O que esses mandatos coletivos representam?
Um levantamento realizado pela BBC News Brasil, com o auxílio da socióloga Sabrina Fernandes, professora da Universidade de Brasília (UnB), identificou ao menos 31 candidaturas que propunham um exercício coletivo de mandatos nestas eleições em São Paulo, no Paraná, em Pernambuco, no Mato Grosso do Sul e no Distrito Federal.
Vão desde grupos que se lançaram em uma candidatura única a candidaturas individuais que, uma vez eleitas, prometiam atuar em conjunto.
“O mandato em Alto Paraíso foi pioneiro, mas hoje não é mais o único modelo. Há iniciativas com diferentes formatos, que surgem de forma autônoma e acabam trocando experiências e ideias entre si”, diz Fernandes, que estuda o tema e apoiou a construção de uma candidatura coletiva no Distrito Federal.
“Elas surgem da crise de representação que passamos, fruto da corrupção e do distanciamento dos parlamentares do povo. A democracia deve ser participativa, mas o nosso sistema vem falhando neste aspecto, não tem sido de fato plural.”
Glauco Peres, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), considera as candidaturas e mandatos coletivos uma “maneira inovadora” de minorias buscarem um espaço na política.
“Essas pessoas devem avaliar que, ainda que sejam minorias numericamente grandes, há pouca gente que votaria nelas isoladamente e, por isso, se juntam para conseguir votos e fazer com que seus interesses e vozes sejam ouvidos”, diz.
Peres diz ainda que os coletivos políticos são um reflexo do sistema partidário brasileiro, em que um “número excessivo de legendas” formadas por “uma mesma elite” não representa uma parcela expressiva da população.
“Esse tipo de iniciativa mostra a dificuldade que essas pessoas têm enfrentado de obter espaços nos partidos para se colocar e, então, criam alternativas numa tentativa de mudar as regras do sistema atual.”
Não é por acaso que há forte presença feminina neste tipo “absolutamente diferente de fazer campanha política”, diz Marlise Matos, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Os partidos são estruturas masculinas, com regras feitas por homens para privilegiar e dar mais oportunidades a homens. No máximo, criam estruturas separadas para mulheres, que são relegadas a guetos. Então, as mulheres criam uma agenda em comum para acabar com essa invisibilidade”, diz.
“Esse movimento acaba se ampliando e fazendo alianças com pessoas de periferia, indígenas, negros, LGBTIs, segmentos da população que sofrem a mesma exclusão do campo parlamentar.”
Este pode ser um fator importante para entender por que, até o momento, as candidaturas e mandatos coletivos têm sido exclusivamente de esquerda.
“É difícil dizer o motivo, mas podemos especular que seja porque, no Brasil, as minorias tenham encontrado eco na esquerda, ainda que não tenha de ser assim, porque é uma discussão sobre direitos civis e questões de direitos humanos, que não são pautas que têm de ser necessariamente de esquerda.”
Os mandatos serão mesmo coletivos?
Mas o que garante que o mandato será exercido de forma coletiva? O que impede que o eleito de fato assuma exclusivamente para si a tomada de decisões?
“Não há garantias”, explica Peres. “Há várias pautas e perspectivas diferentes. São várias pessoas, mas só uma dará o voto. Será preciso prestar contas. Como o eleitor encarará quando aquele parlamentar que ele elegeu votar contra seus interesses porque foi voto vencido dentro do grupo?”
Marlise Matos destaca que há coletivos que estão registrando compromissos em cartório para garantir que os conflitos serão resolvidos. “Desta forma, os eleitores podem ir lá e cobrar, mas não deveria ser sempre dessa forma?”, questiona.
Matos diz ser necessário aguardar para ver se os eleitores vão aprovar ou reprovar essas iniciativas.
“Hoje, se eu não aprovo um legislador, eu não voto mais nele, mas, com mandatos coletivos, isso é mais complicado, porque esses grupos podem conseguir avançar em uma área defendida por eles e não em outras”, diz.
“É preciso ter coragem para inovar, mas é bom ter um pouco de prudência e cuidado. Esses grupos terão de convencer de que a aposta feita neles está realmente democratizando o espaço da decisão política. Precisa ter mais experiência e vivência para mostrar que funciona e ter legitimidade e não ser tratado como modismo – e esses grupos estão preocupados com isso.”
Fernandes, da UnB, acredita que os grupos eleitos têm uma responsabilidade muito alta e passarão por uma “prova de fogo” ao mostrar que cumprirão a promessa de exercer coletivamente de fato seus mandatos.
“Precisamos ver como a sociedade responde a eles. Se a reação for positiva, podemos esperar que, daqui a dois anos, nas próximas eleições, haja ainda mais candidaturas coletivas, até mesmo para o Executivo”, diz.
“Mas isso depende do sucesso destes mandatos e se eles serão diferentes não só na forma, mas também no conteúdo, com uma efetiva participação dos cidadãos, ouvindo e debatendo as demandas que vierem da população.”
Por sua vez, as deputadas federais da Bancada Ativista e da Juntas rejeitam qualquer possibilidade de sequestrarem seus mandatos e inviabilizarem a participação dos outros integrantes destes grupos no mandato.
“Não vou fazer isso, porque eles sabem onde eu moro”, brinca Mônica, da Bancada Ativista. “É claro que eles estarão na frágil condição de meus assessores e minha caneta pode demiti-los, mas há uma grande confiança entre nós.”
“Isso não existe”, afirma Jô, da Juntas. “Quando você se propõe a atuar no coletivo, precisa deixar a vaidade de lado. Sempre trabalhei dessa forma, não vai ser agora que farei diferente.”