Por Paula Adamo Idoeta.
Uma das últimas conversas telefônicas de Enzo, de dois anos e meio, com a tia Daniele Costa foi durante um dos turnos de trabalho dela dentro da ambulância. A técnica de enfermagem trabalhava no atendimento de pacientes no Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) no Rio de Janeiro e em uma unidade de pronto-atendimento (UPA) de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
“Tia, você leva o Enzo para passear de ambulância?”, disse o menino, imitando o barulho da sirene. Daniele prometeu que sim, levaria.
Não houve tempo. A técnica de enfermagem acabou contraindo a covid-19, passou dias hospitalizada e morreu em 27 de abril, deixando um rastro de dor na família. E criando uma grande ausência também na vida de Enzo.
“Eles tinham uma relação muito próxima. O Enzo era o xodó da Daniele, porque ela não teve filhos. Não tinha nada que tirasse eles de perto um do outro. E ele era apaixonado pela tia”, conta Tatiane Costa, irmã de Daniele e mãe do menino.
“Todos os dias que a Daniele vinha para a casa dos meus pais, que divide terreno com a minha, ela gritava o nome do Enzo. Passava para brincar com ele depois do serviço. Ele está sentindo falta e às vezes pergunta da tia. Ele sabe que tem um bichinho (vírus) na rua e por isso precisamos usar máscara e álcool gel. Quando ela faleceu, expliquei que ele não iria mais ver a tia, que ela havia virado uma estrelinha e agora está com o Papai do Céu.”
Com o avanço da pandemia e mais de 11 mil vítimas fatais de coronavírus oficialmente confirmadas no Brasil, conversas difíceis como essa tiveram de virar parte do cotidiano de muitas famílias brasileiras, em um contexto de luto ainda mais triste — já que nem sempre é possível dizer adeus às pessoas queridas ou receber o conforto de amigos, por conta das medidas de distanciamento social.
“Mais gente tem perguntado sobre isso (luto vivido pelas crianças), também pelos agravantes desta pandemia: de não podermos estar juntos, de não podermos nos despedir”, diz Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto (LELu) da PUC-SP e doutora em psicologia.
“Com as crianças, é preciso falar sobre o assunto sendo atento às fases de seu desenvolvimento. Algumas pessoas acham que ‘as crianças não entendem’ (a morte). Elas não entendem como adultos, mas sim, entendem. E é bom conversar sobre isso com elas.”
Nem sempre teremos respostas
Embora seja uma conversa difícil e dolorida, Pereira Franco acha que ela é necessária para não gerar sensação de medo, culpa e isolamento nas crianças, inclusive nas menores, para quem a morte não é algo tão concreto.
“Talvez ela se assuste ou fique temerosa, mas é bom que a gente possa falar sobre a morte, para que a criança saiba o que fazer com o medo que está sentindo e tenha um canal confortável de conversa com um adulto”, diz a psicóloga, defendendo que não se evite a palavra morte, “para não transformar em tabu algo que acontece com todo mundo. É o corpo não funcionando direito”.
A depender de crenças religiosas da família (ou ausência delas), nem sempre haverá respostas para todas as dúvidas das crianças, como o que acontece depois da morte.
“Não há problema algum em dizer à criança: ‘adoraria ter essa resposta, mas não tenho’. Ou então ‘vamos tentar pensar juntos em algo que faça sentido para a gente?’.”
Ao mesmo tempo, a recomendação é falar de modo concreto e cuidar para “não avançar o sinal” e não dar informações em excesso, que acabem gerando ainda mais angústia.
“O adulto pode responder às dúvidas das crianças à medida que elas forem surgindo, mas sem ir além dessas perguntas. Talvez as maiores, com 10 anos ou mais, queiram saber as tecnicalidades de morrer — por que a pessoa não está mais respirando, por exemplo”, diz.
“Metáforas, como ‘ele descansou’, não ajudam. Porque a criança pode achar que em algum momento a pessoa querida vai parar de descansar. É bom, então, usar as palavras reais: assim como o bebê nasce, a pessoa morre. Também não há problema com a pegada religiosa de muitas famílias, mas é preciso que a criança entenda que, para virar uma estrelinha, a pessoa precisa morrer antes.”
Tatiane Costa tem se esforçado para explicar isso a Enzo quando ele pergunta da tia Daniele.
“Toda vez que vê uma estrela, fala o nome dela. (Mas) ele entendeu bem que não vai mais vê-la”, conta. “Tem sido uma dor muito grande. Nos últimos três ou quatro dias de vida (quando a irmã estava hospitalizada), a Daniele não pôde ver nenhum de nós. Meus pais não puderam ver o rosto da filha pela última vez.”
Novos rituais
A dor da família Costa espelha a de muitas outras famílias, que não puderam visitar seus entes queridos nas UTIs e que têm sido forçadas a realizar enterros e velórios apressados, com caixões fechados. Nessas circunstâncias, os próprios adultos estão mais fragilizados e vivendo processos de luto mais difíceis. Diante disso, a psicóloga Maria Helena Pereira Franco sugere a construção de novos rituais de despedida que amenizem a nova realidade.
“Me contaram de um enterro em que os amigos, sem poder participar da cerimônia, fizeram uma fila com seus carros na frente do cemitério e acenderam seus faróis. Como se dissessem ‘não pudemos entrar, mas estamos aqui’.”
Para as crianças, rituais lúdicos também podem ajudar no luto e na despedida, agrega. “Pode ser escrever uma carta à pessoa querida ou fazer uma caixa de memórias. Nesse processo as crianças vão conhecer histórias da sua família.”
Chorar com a criança ou na frente da criança também é parte natural deste momento coletivo tão doloroso, prossegue a psicóloga.
“Chorar é algo que as pessoas tristes fazem. Ao chorar junto, a criança vai entender que (a dor ou saudade) que ela própria está sentindo é compreensível. Às vezes o adulto quer proteger a criança e engole o próprio choro, mas está todo mundo triste e a criança precisa entender isso. É a diferença entre um ambiente que apoia (o processo de luto) ou o esconde”, opina Pereira Franco.
“E não há nada de errado em o adulto dizer ‘hoje estou triste e quero ficar quietinho’ ou ‘hoje não estou legal para conversar, preciso me entender melhor’. É honesto e legítimo. A mensagem é de que a morte é muito desorganizadora, mas temos recursos individuais e coletivos para lidar com ela.”