Por Juliana Gragnani.
Agora são 31. Marielle, quinta vereadora mais votada da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, pelo PSOL, foi assassinada na noite desta quarta, 14.
Marielle foi também a única mulher declarada preta a ser eleita como vereadora do Rio de Janeiro, a quinta mais votada da Câmara Municipal da cidade. Uma mulher autodeclarada parda, Tânia Bastos (PRB), também foi eleita. Eram duas mulheres em um total de 51 vereadores. As classificações “preta” e “parda” são adotadas pelo IBGE, que não utiliza a categoria “negra”.
Para especialistas, o assassinato de Marielle representa um revés no combate à subrepresentatividade racial e de gênero na política brasileira e, portanto, dizem, também à democracia.
“Somos menos democráticos quando temos uma representação racial homogênea na política”, diz Rosane Borges, pós-doutora em Ciência da Comunicação e professora do Celac (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP, observando que é preciso inserir nos espaços de poder “a pluralidade que é intrínseca à democracia” – e à sociedade brasileira.
As mulheres negras no Brasil correspondem a cerca de um quarto do total da população, segundo dados do IBGE. Mesmo assim, em todas os municípios brasileiros, foram eleitas para câmaras municipais 2.874 mulheres negras -elas não chegam a 5% do total de vereadores, 57,8 mil. Os dados sobre sexo e cor dos vereadores eleitos foram retirados do site do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e consideram a cor autodeclarada pelo candidato, informada no pedido de registro à Justiça Eleitoral.
Para Bruna Cristina Jaquetto Pereira, doutora em sociologia pela Universidade de Brasília que estuda a violência contra a mulher negra, “a maior parte dos movimentos de base no Brasil são compostos por mulheres negras”. “Tem-se a falsa ideia de que as mulheres negras não participam da política, mas elas são as que lidam diretamente com os problemas estruturais da sociedade brasileira. Elas se mobilizam no nível mais básico, fazendo a política do cotidiano, desde a participação em associações de bairro até a mobilização em grupos contra a violência de jovens negros assassinados, seus filhos.”
Mas o problema, aponta, é que, embora façam a política de cotidiano, as mulheres negras não são reconhecidas como parte da política e, por isso, não são alçadas para o lugar de representantes.
Na opinião de Cristiano Rodrigues, professor do departamento de Ciência Política da UFMG que estuda a participação política de negros no Brasil, “Marielle e Áurea Carolina [vereadora do PSOL mais votada para a Câmara de Belo Horizonte], entre outras poucas, são infelizmente a exceção da exceção da exceção”.
Importância
Existem duas principais correntes que discutem a representação na política, explica Rodrigues. A primeira fala em “representação substantiva”, em que os políticos não necessariamente se “autorepresentam”, podendo apresentar ideias que interessam a grupos distintos aos seus.
A segunda corrente, com a qual concorda, diz ele, é a de “representação adscritiva”, “de que, na ausência de mulheres ou minorias nas legislaturas, os temas que são importantes para eles acabam sendo votados por um viés não condizente com seus interesses”.
O pesquisador cita como exemplo o debate sobre o aborto na Câmara dos Deputados. No fim do ano passado, 18 deputados votaram a favor de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que restringiria o aborto em casos já permitidos pela legislação brasileira. A única mulher presente na comissão, a deputada Erika Kokay (PT-DF), votou contra.
“Mulheres negras na política democratizam seus próprios partidos, apresentando pautas que não foram pensadas anteriormente, que foram invisibilizadas, porque elas não estavam lá. E influenciam na ação política como um todo”, afirma Rodrigues.
Causa
Para Rosane Borges, da USP, a incongruência da representatividade feminina negra em relação à demografia brasileira “se explica pelo machismo e pelo preconceito racial”.
“Desde as dificuldades que as mulheres têm de financiamento, de apoio da própria legenda – e muitas vezes as mulheres trazem pautas incômodas até para os próprios partidos – até o imaginário que existe sobre quem deve nos representar”, diz Borges, dando como exemplo um pensamento recorrente: “‘Eu delego o poder a quem eu acho que tem o poder.’ E normalmente essa pessoa é o homem branco, rico e hetero.”
“Infelizmente, ainda pensamos a representatividade a partir do lugar de poder, de quem pode, em tese, nos ajudar. E uma mulher negra é vista como uma pessoa ‘faltante’. Pensa-se: ‘O que ela pode fazer por mim, se ela é alguém a quem tudo falta?'”
Rodrigues, da UFMG, diz que há dois elementos que alçam uma candidatura: a capacidade de mobilização financeira e a insersão de atores políticos em famílias políticas. Considerando isso, as mulheres negras enfrentam múltiplos problemas: “Estando na base da população brasileira, recebendo menos que o homem negro, menos que a mulher branca e, por fim, menos que o homem branco, têm dificuldade de mobilização de recursos”, diz. Além disso, “os partidos tendem a valorizar e investir mais financeiramente nas candidaturas masculinas.” E, ainda, mulheres negras não pertencem a famílias políticas – pelo contrário, representam uma renovação na política.
‘Nossa voz incomoda’
“Não é só chegar lá, mas ter condições de permanecer”, diz Gabriela Vallim, jovem negra de 23 anos. “Nossa voz incomoda.”
Aos 21 anos, Vallim foi coordenadora de Políticas para Juventude da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, durante a gestão Fernando Haddad (PT). Criada em Itaquera, bairro periférico da zona leste de São Paulo, e filha de professora da rede pública que completou o ensino superior depois dos 40 anos, conta que sempre ouviu da mãe: “As coisas sempre vão ser mais difíceis para você porque você é uma mulher negra”.
Vallim diz que o sentimento geral entre ela e várias jovens lideranças que conhece, depois que souberam do assassinato de Marielle Franco, é de desesperança. “A luta pela representatividade e inserção nos espaços de poder é muito grande. Fazemos parte de uma população que ficou muito tempo afastada desses ambientes”, observa. “Quando começamos a ocupar esses espaços, muitas vezes nos falta preparo técnico – não íamos visitar as empresas dos nossos pais depois da escola, por exemplo. Também nos falta dinheiro.”
“Normalmente, não temos opção de voto em gente que se parece com a gente. E é um super trabalho chegar lá. E aí, quando chegarmos lá, podemos morrer?”, questiona ela.
Vallim liderou a área de políticas para juventude de São Paulo depois de anos engajada em temas relacionados à educação e segurança de jovens da periferia. Aos 21, representou o Brasil na Conferência Geral da ONU sobre os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável. Quando voltou, foi nomeada para o cargo da prefeitura.
Mas um acontecimento inesperado fez com que ela desistisse de ocupar cargos públicos.
“Eu era uma das únicas da secretaria que moravam na periferia. Fiz um acordo para que pudesse voltar para casa de carro oficial depois de comparecer a eventos e debates que terminassem tarde da noite. Uma noite, disseram que eu não poderia voltar de carro oficial. Chegando em casa, a pé, fui assaltada. Foi traumático. Pensei: ‘preciso conseguir cuidar da minha vida para cuidar da vida das outras pessoas’.”
Hoje, ela trabalha na iniciativa privada.
Soluções
Para aumentar o número de mulheres negras representantes na democracia brasileira, especialistas sugerem algumas medidas.
Hoje, as coligações são obrigadas a reservar 30% de suas candidaturas a mulheres. Mas isso nem sempre ocorre – e, para cumprir a cota, há casos de “candidatos fantasmas”, que não recebem votos nem deles mesmos. Segundo Rodrigues, da UFMG, “90% desses candidatos fantasmas são mulheres”.
Uma das propostas discutidas além da cota para candidaturas é a reserva de assentos para mulheres eleitas, não só candidatas. Rodrigues aponta que há regras assim em alguns países da América Latina, como a Bolívia e a Argentina.
Outra é a divisão do financiamento de cada partido de maneira igualitária para todos os candidatos.
Uma terceira via é o voto em lista fechada (proposta em que o eleitor vota na legenda e o total de votos é distribuído aos candidatos na ordem da lista) que tenha alternância de gênero. Assim, explica Rodrigues, “se um partido consegue coeficiente eleitoral que lhe permita eleger quatro candidatos, dois serão homens e duas serão mulheres”. Para contemplar mulheres e homens negros, essa ideia também propõe que o número de candidatos negros seja proporcional à população negra da localidade.
Apesar da baixa representatividade das mulheres negras nos espaços de poder no Brasil, Rosane Borges, da USP, defende que o país tem melhorado no quesito, embora sempre com tensões. “Temos muitas conquistas e avanços. Mas esses avanços são acompanhados por retrocessos, confisco de direitos. Não é um caminho linear, evolutivo, progressivo”, diz.
Para Bruna Pereira, da UNB, “ter representação de minorias aumenta a qualidade da democracia”. “As pessoas negras não querem mais ser representadas pelos brancos. Queremos nós mesmos representar.”