‘El abrazo de la serpiente’ é um filme violento e psicodélico sobre a colonização da Amazônia

Por Camilo Salas.

No começo do século 20, o etnólogo Theodor Koch-Grünberg chegou a Amazônia pretendendo estudar seus povos indígenas. Algumas dezenas de anos depois, o biólogo norte-americano Richard Evan Schultes entrou na selva para estudar plantas usadas por essas mesmas populações indígenas. Essas duas histórias reais são o ponto de partida para El abrazo de la serpiente, um filme do diretor colombiano de 34 anos Ciro Guerra. Usando esses dois cientistas como enquadramento, Guerra ficcionalizou a história de uma comunidade indígena esquecida e como o último membro da tribo embarcou numa importante jornada, primeiro em sua juventude com Koch-Grünberg e depois muito mais velho com Schultes.

O filme, que ganhou o grande prêmio da Quinzena dos Diretores de Cannes e deixou os críticos norte-americanossemfôlego, transmite o mesmo espírito da selva do clássico Fitzcarraldo de Werner Herzog, mas dessa vez contando a história da perspectiva indígena. É um filme em constante movimento pela selva vasta e sagrada – uma viagem psicodélica de canoa – e lida com a história da opressão colonial, religião e loucura. O que torna o filme de Guerra tão emocionante e único é como ele capturou a imensidão da floresta e as vidas incríveis das pessoas que já estavam lá há séculos. Falei com Guerra por Skype enquanto ele se preparava para viajar da Colômbia para o Sundance, para apresentar El abrazo de la serpiente lá antes da estreia do filme nos EUA.

VICE: Como você descobriu a história desses dois cientistas?
Ciro Guerra: Fiquei curioso com a Amazônia. Fazer um filme lá era algo que sempre quis fazer. Mas sabemos pouco sobre a floresta – pelo menos os colombianos sabem muito pouco sobre isso – então comecei a investigar. Um amigo me disse que um bom começo seria ler os diários dos primeiros exploradores que entraram na Amazônia Colombiana 100 anos atrás. Não faz tanto tempo assim porque essa área era completamente inexplorada. Encontrei uma história incrível que ainda não tinha sido contada. Minha primeira abordagem foi através desses exploradores, porque eles eram homens que tinham deixado tudo para trás – suas vidas, suas famílias, suas casas, seus países – para penetrar no desconhecido por dois, três ou até 19 anos, como no caso de Schultes. Me identifiquei muito com isso. Isso me pareceu similar ao que acontece quando você faz um filme: você segue por uma estrada escura e não sabe onde ela vai te levar ou quanto tempo vai demorar para ver a luz novamente.

Como foi o processo investigativo para os costumes nativos, personagens e locações? Foi tudo baseado nesses diários?
Me baseei nos diários dos exploradores inicialmente, mas quando fui para a Amazônia, isso era completamente diferente do que eles documentaram. Não temos uma memória coletiva desse tempo como sociedade. É uma época perdida. A ideia era voltar a isso, trazer isso de volta mesmo que isso não existisse mais. Isso existiria novamente no filme.

Então comecei a seguir a trilha deles e a tentar ouvir seus ecos. Mais tarde comecei a trabalhar com as comunidades indígenas. As abordei e falei com elas sobre o que queríamos fazer. Trabalhando com elas, percebi que faríamos algo muito especial e único. Iríamos contornar a história e contá-la de uma perspectiva diferente do padrão – não a do aventureiro, do viajante – mas do ponto de vista indígena. Faríamos deles os protagonistas. Essa é a parte da história que não foi contada. Trocar a perspectiva e colocar o público no lugar deles me pareceu muito interessante. É realmente um filme nunca visto. Mas atingir essa perspectiva indígena, essa maneira de ver o mundo, era difícil. Levou tempo. É muito difícil mudar seu pensamento assim.

Assista com exclusividade o trailer norte-americano do filme:

Primeiro me preocupei em ser fiel aos fatos históricos e científicos, mas depois percebi que era mais importante imergir em imaginação, num sonho. Comecei a perder minha lógica ocidental e tentar abraçar outra lógica. Eu queria que o filme parecesse uma história indígena, como o mito amazônico. Mas o mito da Amazônia é, para muitos, quase incompreensível. A lógica da narrativa é absolutamente oposta à nossa.

Outra protagonista, fora os nativos e os cientistas, é a própria floresta, essa entidade viva gigantesca que se comunica, que diz coisas.
Essa é a perspectiva que eles têm da floresta. Fizemos uma coisa muito particular. Escrevemos a floresta como uma personagem feminina, em parte porque não há personagens femininas no filme. Na história real não havia como colocar uma personagem feminina, mas aí comecei a entender que a floresta tem essa conotação para eles. Comecei a fazer algo que sempre quis fazer: criar um personagem com o ambiente. Fizemos a floresta feminina porque eles a veem assim. Isso é incompreensível na nossa tradição narrativa, mas faz todo sentido no mundo do mito amazônico.

Há fantasia no filme? O último membro da tribo, a busca pela flor, isso se baseia na realidade?
Isso se baseia numa coisa real, mas modificamos isso por várias razões. Se eu fosse dar um nome real para o grupo nativo, o filme teria que ser uma extensiva investigação antropológica. Eu não tinha o direito de fazer isso, mas a ficção me deu a permissão. Os povos indígenas não se sentem confortáveis em falar sobre plantas reais, mitos reais, canções reais, porque essas coisas são sagradas. Mas com a ficção você pode modificar isso. Queríamos chegar à verdade mais profunda, não à verdade superficial dos dados antropológicos.

A parte do filme envolvendo o messias é chocante. Qual a história aí?
Quando mostramos o filme em várias comunidades indígenas da Amazônia, as pessoas ficaram gratas por termos abordados os missionários. Esse é um tema tabu lá. Tudo que aconteceu o indivíduo deve deixar no passado, mas isso é algo que eles se lembram, isso tem sido parte da vida deles.

Mais tarde nos diários, aparece a história de um mestiço chamado Niceto. Quando ele chegou à fronteira da Colômbia com o Brasil, em Yavarate, no final do século 19, ele se proclamou o messias. Ele tinha quase 2 mil seguidores e eles faziam coisas loucas e dementes, muito mais do que aparece no filme. Esse grupo se tornou instável e o exército brasileiro teve que removê-lo à força. Isso ficou fora de controle. Vinte anos depois, alguém chamado Venancio também se proclamou o messias e tinha centenas de seguidores. Isso acabou num suicídio coletivo. Esse é um fenômeno que continua se repetindo hoje. Mesmo agora, na fronteira entre Colômbia e Equador, há os israelitas amazônicos. É um fenômeno relacionado com o fato de que a Amazônia é um lugar espiritual. Quando a espiritualidade é removida pela força, isso cria um vácuo onde o fundamentalismo e a loucura crescem.

O diretor Ciro Guerra

O uso da linguagem é muito particular no filme. O messias fala um tipo de português, ele fala espanhol, podemos ouvir alemão, há dialetos locais. Como você decidiu fazer um filme de várias línguas em vez de usar apenas uma?
Isso tem a ver com a região. Na área onde filmamos eles falam 17 línguas indígenas diferentes. Você encontra povos indígenas que falam 108 línguas indígenas sem problemas – e não são línguas parecidas. Você tem que reconhecer que o mundo todo veio até a Amazônia. Todo mundo veio procurando riqueza, recursos ou expandir a consciência. É uma história que vem sendo contada por alemães, franceses, austríacos, norte-americanos, além de portugueses e espanhóis. A Amazônia é a Torre de Babel. Queríamos refletir isso.

Os dois protagonistas indígenas são da Amazônia?
Sim, eles são da região. Os encontramos quando estávamos filmando. Foi difícil achar floresta virgem, porque a área foi muito afetada pela agricultura, pecuária, comércio e turismo. Quando encontramos isso, começamos a andar pela região, passando pelas comunidades e convidando todo mundo para se juntar a nós. Eles ficaram entusiasmados. Todo mundo queria participar. Eles foram muito atenciosos. Eles não perguntaram o que queríamos fazer. Eles só pediram que tudo fosse transparente e sem segundas intenções. Essas pessoas participaram sem questionar. Quando achamos esses atores indígenas, tivemos três meses para ensiná-los como atuar. Apesar de muitos deles nunca terem tido contato com isso – com cinema, filmes, nada do tipo – eles têm uma forte tradição oral que persiste há milhares de anos, algo que eles passam de geração para geração, e isso dá a eles a capacidade de ouvir. Eles realmente sabem ouvir, o que é difícil de encontrar num ator.

O processo de filmagem foi difícil?
Estávamos preparados para o pior. Ouvimos histórias de filmagens que viraram um pesadelo. O que fizemos foi nos aproximar das comunidades e pedir a ajuda e a colaboração delas. Os convidamos para participar em frente e atrás das câmeras. Eles me ensinaram como trabalhar com o ambiente, com a floresta, a pedir permissão para ela. Eles realizaram rituais pedindo proteção espiritual. Eles explicaram à floresta o que queríamos fazer. Isso significou que a filmagem foi ótima. Não tivemos doenças nem acidentes. O clima ajudou. Se começava a chover quando parávamos para o almoço, a chuva parava logo antes de voltarmos ao trabalho. A filmagem foi trabalhosa para todos, mas também uma aventura profundamente espiritual e que nos tornou mais humildes.

Quanto tempo isso levou?
O processo de pré-produção e de filmagem levou três meses e envolveu mais ou menos 40 pessoas de fora da Amazônia, e mais umas 60 de comunidades indígenas.

O que aconteceu com a indústria de borracha na região? É algo que está no filme, a selvageria disso.
A indústria da borracha foi a responsável pelo maior genocídio da Colômbia. O último romance de Mario Vargas Llosa, O Sonho do Celta, é a história de um irlandês que denunciou a indústria da borracha por seu papel no extermínio brutal de centenas de milhares de índios. Além do desaparecimento de muito do conhecimento deles, muitas comunidades sumiram completamente. Centenas de milhares de pessoas foram escravizadas e exploradas da pior maneira para tornar a borracha a grande indústria que isso foi. Por cem anos isso era como o petróleo. Manaus, no Brasil, era como Dubai, a cidade mais rica do mundo na época. Tudo isso veio ao custo de uma exploração selvagem que só depois foi denunciada.

Para o filme, isso não era algo que me interessava no começo. Eu não queria transformar isso num filme sobre genocídio. Eu estava mais interessado em fazer um filme sobre consciência.

A cena onde atores são desmembrados é muito poderosa.
Tentamos sintetizar toda a dor naquela cena. A verdade foi muito mais horrível. Se a cena chega perto disso, a verdade foi infinitamente pior.

Por que você decidiu fazer o filme em preto e branco?
As fotografias dos exploradores foram a principal influência, imagens em preto e branco, quase daguerreótipos. O que você vê na Amazônia é completamente diferente do que eles sabiam. Você vê toda o exotismo, toda a exuberância. Parece outro mundo, outro tempo. Lá percebi que não era possível reproduzir com fidelidade a cor da Amazônia. Não há filtro ou câmera que consiga reproduzir sua significância. Senti que fazer isso em preto e branco, tirar as cores, ativaria a imaginação do público. Os espectadores acrescentariam as cores em suas mentes e essas cores imaginárias seriam muito mais reais do que o que conseguiríamos fazer. Essa Amazônia imaginária é mais real que a Amazônia verdadeira.

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Tradução do inglês por Marina Schnoor.

Fonte: Vice.

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