Por Zara Figueiredo Tripodi.
Como será o mundo pós-pandemia? Como as relações sociais, políticas ou econômicas serão estruturadas em um cenário de recuo do novo coronavírus? Estas têm sido algumas das questões que vêm povoando o circuito de debates, dentro e fora da academia. À infinidade de interrogações corresponde uma miríade de respostas que sugerem alterações desde as lógicas de mercado e de produção até as formas de relacionamentos sociais.
Nesse conjunto de apostas e exercícios de futurologia, alguns arriscam na reestruturação produtiva estratégica, tendo em vista o lugar que a China vem ocupando como o grande produtor de insumos para enfrentar a pandemia que, por ironia, por lá teve início. Outros vão além e apostam na pandemia como a variável interveniente a incidir sobre o neoliberalismo, levando-o ao seu ocaso.
Em que pesem os raros discursos em contrário, a tendência apontada por diversas análises vai no sentido da impossibilidade de retorno a uma condição pré-pandemia. E não me parecem despropositadas algumas das conclusões que se dirigem neste sentido, do não retorno a um (E)estado denominado de “normalidade”. Diante, portanto, desse suposto consenso, a questão que me parece importante ser respondida a esta altura é “o que se está chamando de ‘normalidade’?” Até que ponto, ela é desejável?
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Obviamente, essas indagações podem ser respondidas sob diversas lentes analíticas, mas a minha proposta é examiná-las, nos limites deste texto, na perspectiva da educação pública, seja básica ou superior. Afinal, o que significa volta à normalidade, ou a um ponto pré-pandemia nas políticas educacionais?
Defender acriticamente que a educação volte a uma “normalidade” parece padecer da mesma miopia analítica daqueles que defendiam, tempo atrás, um padrão FIFA para as escolas públicas brasileiras. Obviamente que conclusões desta ordem resultam de um caldo de cultura engrossado pela crença generalizada de que todo mundo entende de educação, enquanto política pública.
Se normalidade pressupõe voltar à situação que precede à suspensão das aulas devido ao isolamento social, em educação isso significa assumir, por contiguidade, o retorno a uma disfuncionalidade política do governo federal em responder às demandas da área, sem precedentes.
Defender a volta da educação em sua normalidade supõe aceitar, nestes termos, as inúmeras desigualdades já amiúde apontadas por pesquisas, mas deliberadamente potencializadas pelo chefe da atual pasta da educação, que, por sua vez, seguindo o toque da boiada, move-se muito mais por questões que parecem ser da ordem do ego e menos de uma polis.
Dentro da normalidade a que muitos defendem o pronto restabelecimento, encontra-se, no âmbito do ensino superior, a nova lógica de distribuição de bolsas de pesquisas, pela CAPES, que penaliza as pesquisas desenvolvidas por Programas de Pós-Graduação pequenos, jovens, em consolidação, haja vista que boa parte do fomento lhe foi retirada, exatamente por serem jovens e não terem, por isso, alcançado notas 6 ou 7, que situam os Programas como aqueles de excelência.
Já na educação básica, o FUNDEB, que representa para muitos municípios mais de 80% dos recursos disponíveis para a educação, termina em dezembro de 2020. A nova proposta de Fundo, para substituir o atual, demandaria um aumento da participação da União na sua composição de modo a reduzir as desigualdades do custo-aluno entre os entes federados.
Contudo, somente com muito esforço a nova proposta de FUNDEB em tramitação no Congresso pode ser considerada uma política redistributiva da União, isso porque a suposta ampliação do aporte do governo federal para 20% ao fundo passará a ser custeada, na verdade, por parte de recursos já circunscritos ao orçamento da educação, e que diz respeito à cota estadual e municipal do salário-educação.
Entre estes dois estratos (educação básica/FUNDEB e ensino superior/CAPES), está a decisão do ministro da educação de que “Vai ter Enem”, desconsiderando o aprofundamento das desigualdades que uma decisão dessa natureza pode provocar, já que boa parte dos alunos da rede pública encontra-se sem aulas, em decorrência, em larga medida, das condições de infraestrutura das redes municipais e estaduais.
Afinal, a maioria esmagadora dos nossos alunos da educação básica, mais de 39 milhões, encontra-se matriculada em um dos 141.298 estabelecimentos do país, sendo que apenas 60,2% deles contam com o recurso de internet banda larga, como mostra o Anuário da Educação Brasileira, de 2019.
Por outro lado, alunos cujo nível socioeconômico já é mais alto que seus pares da rede pública e já trazem de casa e das práticas familiares um capital cultural maior não lidaram com os efeitos da suspensão de aula pelo fato de, tanto as escolas, quanto os discentes, possuírem os insumos necessários para manutenção das atividades de modo remoto.
Àqueles, como o próprio ministro, que se adiantam para responder que educação básica pública é de responsabilidade de municípios e estados e que, portanto, “os governadores devem planejar o retorno das aulas, tirar as nádegas da cadeira e REBOLAR atrás do prejuízo!”, devo lembrar que o artigo 23, parágrafo único, da Constituição Federal disciplina a cooperação interfederativa.
Não é preciso muito esforço intelectual ou dominar conceitos como política redistributiva ou justiça social, para concluir o óbvio: dá-se mais a quem tem mais, premia-se o mérito. Assim, todos esses elementos que conformavam o cenário educacional no momento pré-pandemia acolhem e reforçam as desigualdades já bastante evidentes dentro do sistema. Ou como define a profunda sabedoria sertaneja, “o rio corre para o mar”.
Resta saber se estamos dispostos a continuar a nadar nesta direção, como fazíamos na “normalidade”, ou construiremos, a partir de agora, uma outra educação pública que se afaste, em definitivo, deste (E) estado de coisas que nada tem de normal.
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Zara Figueiredo Tripodi – Doutora em Educação pela USP, com estágio pós-doutoral realizado no CEM/USP. É Professora do Departamento de Educação da UFOP e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação.
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