Eduardo Galeano e eu

Galeano Porto AlegrePor Urda Alice Klueger.

Foi em Porto Alegre, num dos Foruns Sociais Mundiais, no mesmo dia em que conheci Aleida Guevara, que também conheci Eduardo Galeano. Dizer que o conheci é bobagem – ele já entrara na minha vida fazia tempo, um longo tempo, desde que travara conhecimento com “As veias abertas da América Latina”.

Vinha eu de gentes da classe trabalhadora que fora forjada pela realidade da Segunda Guerra Mundial, e levava muito a sério generais e coisas correlatas.

Fora um longo trabalho eu emergir dali, um trabalho que, não devo esquecer, começou com a leitura de “Seara Vermelha”, de Jorge Amado, ainda no começo da adolescência, aquele livro que me fizera vacilar pela vez primeira dentro da realidade que era a minha família, os meus parentes, a minha rua.

Meio às cegas, fui emergindo do jeito que dava, e o fato de ter me tornado bancária e de ter um sindicato por perto ajudou um bocado, diria que foi básico – mas foi o encontro com “As veias abertas da América Latina” quem me puxou de vez para fora das areias movediças da falta de conhecimento, ainda mais que na altura da sua leitura eu já andara aventurando umas primeiras viagens por esta minha América tão amada.

Eu já andara para cima e para baixo pela Bolívia quando me deparei com aquele dado: oito milhões de índios mortos apenas nas minas de Potosí, por fome e maus tratos! Se eu fora diletante turista até aí, mesmo assombrada com a riqueza cultural e os vestígios arqueológicos dos nossos vizinhos, a partir daquilo tudo mudava – agora era o tempo de conhecer a História, e não a História pré-colonial, mas a porrada que fora na América a invasão europeia que começara no século XV.  Devo a Galeano esse primeiro empurrão, e aquele detalhe dos oito milhões de índios mortos em Potosí e todos os outros desdobramentos que aquilo trazia, a tal ponto que até hoje tenho dentro de mim, muito vivos, aqueles oito milhões de índios que o Capital pensara que matara para sempre.

Galeano me ensinou muito, quanto, tanto que nem sei escrever aqui.  Ele por tudo andou e tudo observou, e na sua pena ágil coisas que teriam passado desapercebidas se transformaram em verdades capazes de orientar uma vida, e nunca esqueço de uma frase que ele “captou” numa reunião de trabalhadores, na Bolívia, e que como que deu novo curso à minha vida.

Foi numa assembleia de operários que uma mulher chamada Domitila Barrios se levantou e fez todos se calarem.

“- Quero lhes dizer isto: nosso inimigo principal não é o imperialismo, nem a burguesia, nem a burocracia. Nosso inimigo principal é o medo, e o levamos dentro de nós”.

Se Galeano não estivesse ali, naquele momento, e não tivesse a percepção que tinha das coisas, talvez eu nunca tivesse ficado sabendo de Domitila Barrios e nem tivesse mudado minha vida pela verdade saíra da sua boca.

Então, naquele dia lá em Porto Alegre, quando o vi pela primeira (e única) vez, era como encontrar com um velho amigo, alguém que fora tão forte, mas tão forte na minha vida!

Falo algumas coisas aqui no passado, porque hoje há como que se dar uma parada na vida, é um dia em que estou a sentir, a pesar e a pensar em tudo o que esse homem genial representou e representa para mim, pois hoje ele partiu. Tinha só 74 anos, tão cedo ainda, mas se foi. Quer dizer, foi-se fisicamente, porque aqui dentro de mim ele está e continua tão vivo quanto aqueles oito milhões de índios de Potosí e quanto a coragem de Domitila Barrios.

Penso que nas ramblas de Montevidéo, no Uruguai inteiro se chora, como estou chorando aqui, como tanta gente chora em torno do mundo. Eduardo Galeano é daquelas pessoas que nunca irá se acabar.

 Blumenau, 13 de abril de 2015.

Urda Alice Klueger é escritora e doutora em Geografia.

Foto: Captura de tela, Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, 2001.

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