Edição genética: empresas usam atalho legal para liberar produtos

Regra criada por comissão governamental com histórico a favor dos transgênicos é usada para evitar etapas previstas na Lei de Biossegurança. Pesquisadores questionam atalho para produtos que podem representar riscos aos humanos e ao meio ambiente

Imagem: O Joio e O Trigo

Por Adriana Amâncio, especial para o Joio.

Duas décadas atrás, sementes transgênicas trazidas ilegalmente da Argentina foram semeadas no Sul do país. Lula, em seu primeiro mandato, tinha duas opções: proibir o plantio e a comercialização, ou autorizar que o fato consumado se tornasse legal. Como se sabe, o presidente foi pela segunda via, e hoje sementes geneticamente modificadas dominam o cenário do agronegócio.

A política do fato consumado é novamente o expediente utilizado para disseminar, no Brasil, produtos fruto de edição genética. Até junho de 2023, já havia autorização para 49 variedades obtidas pelas chamadas Técnicas de Melhoramento de Precisão (Timp). Com a diferença de que, dessa vez, as inovações não se restringem ao cenário agrícola: até mesmo cosméticos podem se valer das Timp.

Como fruto da introdução ilegal da transgenia, em 2005 o país criou a Lei 11.105, Lei de Biossegurança, para regulamentar a aprovação de organismos geneticamente modificados, os OGMs. Dentre outros critérios, essa lei estabelecia o princípio da precaução, que deve ser aplicado nos casos em que não há dados suficientes sobre riscos aos seres humanos e ao meio ambiente. Além disso, os produtos liberados deveriam passar por análise de risco e serem rotulados – o famoso T maiúsculo, em um triângulo amarelo, presente em produtos com mais de 1% de ingredientes transgênicos na composição.

Curiosamente, é a própria Lei de Biossegurança que agora está sendo driblada. Em 15 de janeiro de 2018, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) adotou a Resolução Normativa n.16, que dispensa esses produtos de todos os ritos da lei. A alegação é de que, ao contrário dos transgênicos, que podem receber genes externos, esses produtos sofrem edição na própria estrutura do DNA e nem sempre recebem genes de outras espécies.

“Eles não são transgênicos, mas são organismos geneticamente modificados, que ganham outra estrutura, outras características, a partir da edição genética”, explica o geneticista Rubens Nodari, pesquisador e professor do Departamento de Fitotecnia do Programa de Pós-graduação em Recursos Genéticos Vegetais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

A análise dos produtos é feita com base em uma carta-consulta apresentada pelas empresas desenvolvedoras do produto. Com base na RN 16, a CTNBio afirma se se trata ou não de um organismo geneticamente modificado.

A primeira grande questão é que essa resolução normativa analisa os produtos com base no resultado final – e não na técnica empregada. O Artigo 1º, Inciso 3º, da resolução afirma que são considerados Timp os produtos que, dentre outras características, possuam “produto final com ausência comprovada de ADN e ARN recombinante, obtido por técnica que emprega OGM como parental”.

Na prática, ADN e ARN recombinante são moléculas formadas em laboratório, que contêm material genético de diversas fontes. As demais características que constam no documento também se referem ao produto final, e não à técnica empregada.

No entanto, de acordo com a Lei 11.105, inspirada no Protocolo de Cartagena, criado para orientar a forma de tratamento dos OGMs, organismo geneticamente modificado é aquele cujo “material genético – ADN/ARN tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética”.

A advogada socioambiental Larissa Packer, doutoranda em Sociologia Rural pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRJ) e associada à Grain, organização Internacional de pesquisa e apoio a pequenos agricultores, afirma que a maioria dos países que assinaram o Protocolo de Cartagena considera o OGM pelo processo, e não pelo resultado final.

“Por isso, a RN 16 viola diretamente a definição de OGM estabelecida pelo Protocolo de Cartagena e viola diretamente a Lei de Biossegurança”, explica.  Quem adota o conceito de OGM por produto, e não por conceito, são os Estados Unidos e o Canadá, que não são signatários do Protocolo de Cartagena.

Portanto, um produto que contém insumos ou que foi editado geneticamente não terá nenhuma informação no rótulo que o identifique. “As pessoas que adotam essa forma de promover esses produtos [de edição genética] por meio da fraude legal e uso de critérios políticos ao invés de científicos deveriam ser responsabilizadas civil e criminalmente”, critica, de forma categórica, o pesquisador Rubens Nodari.

Organizações da sociedade civil pressionam por mudanças. Segundo artigo divulgado pela Agência Bori, pesquisadores, agricultores, membros de organizações não governamentais ligados à Assembleia Cidadã Brasileira cobram da Comissão Nacional de Biossegurança (CTNBio) mais transparência na análise de produtos agrícolas obtidos por edição genética.

Através de nota técnica, lançada no último dia 13, o grupo exige divulgação pública de dados, capacitação de agricultores, sanções por danos ambientais e um plano de reversão genética. O grupo pretende se reunir com parlamentares e associações científicas para discutir a adoção de dispositivos legais que possam garantir transparência e segurança à análise dos produtos de edição genética. De imediato, a cobrança é pela suspensão da Resolução Normativa n.16.

Joio ouviu o biólogo e coordenador da Secretaria Executiva da CTNBio, Rubens Nascimento, sobre as questões citadas aqui. Em relação à avaliação com base no produto final, e não na técnica, ele informou que “no aspecto experimental, a CRISPR pode se enquadrar como biotecnologia ou engenharia genética e está tutelada pela CTNBio. No entanto, o seu produto final pode não apresentar as características de um OGM”.

Já sobre a aplicação do princípio de precaução na análise desses produtos, o biólogo falou que tais conceitos são “anteriores à Lei 11.105 e que para que ela pudesse ser aplicada nestes casos teria que ser feita uma revisão”. Ele completou dizendo que “os dados apresentados à CTNBio permitem aos membros avaliarem se há riscos em enquadrar o produto pela RN 16 ou não”.

Ao adotar a Resolução Normativa n. 16, o Brasil segue na contramão dos demais países signatários do Protocolo de Cartagena e atua como os Estados Unidos e Canadá, que não assinam o documento.

Análise e complexidade da técnica não são condizentes

A partir da apresentação da carta-consulta por uma empresa interessada em liberar um produto, um dos membros da CTNBio é responsável por elaborar o relatório e o parecer final para análise como OGM.

No passo seguinte, o parecer será encaminhado a uma das Subcomissões Setoriais Permanentes, que envolvem desde as áreas de saúde humana até saúde ambiental. O critério para decidir qual subcomissão é o tipo do organismo parental e o uso proposto da técnica escolhida.

A mesma resolução prevê que apenas um dos membros da comissão analise os produtos de tecnologia de alta complexidade, podendo encaminhar para uma das comissões temáticas. Repare que aí há um problema: com o produto sendo analisado por apenas uma comissão temática, outros impactos na área ambiental, de soberania e segurança alimentar não serão analisados.

Mas esse não é o único problema. O prazo para a análise de um produto de edição genética é de 90 dias, que pode ser dobrado, caso haja requerimento. O biólogo Paulo Brack, professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ex-membro da CTNBio, atribui a falta de rigor no processo de análise a conflitos de interesse.

“A CTNBio tem conflitos de interesse, a maior parte dos membros são pessoas que trabalham com biotecnologias ligadas ao avanço da transgenia e, agora, da edição gênica, e que recebem apoio dessas empresas. É um processo que está na mão das grandes corporações, que têm o seu interesse no patenteamento, e que beneficia também as grandes monoculturas”, explica .

Um dos argumentos usados para considerar os produtos de edição genética organismos não geneticamente modificados é que o resultado obtido poderia ocorrer por meio de cruzamento entre espécies, ou seja, de forma natural. No entanto, no caso das Timp, o resultado foi obtido em laboratório, a partir de uma ação humana na estrutura do DNA.

A pesquisadora Sarah Agapito explica que essa analogia é descabida, pois não é possível comparar dois organismos muito diferentes apenas porque possuam semelhança em uma pequena parte.

“Um carro popular 1.0 é a mesma coisa que um carro 2.0 de luxo só porque usa o pneu da mesma marca? A mutação no alvo pode ser exatamente igual à mutação da planta selvagem, mas a gente aprova o organismo inteiro e esse genoma é diferente. Essa mutação no organismo geneticamente modificado vai entrar em um contexto genômico completamente diferente de uma espécie selvagem. Essa análise está comparando o resultado com base na mutação intencional”, explica.

“Hoje a gente não tem instrumentos analíticos que mostrem a diferença entre uma mutação que tem origem natural e uma mutação que tem origem sintética. Os sequenciadores vão dar o mesmo resultado. Pode ser que daqui a dez anos a gente consiga ver”, reforça.

Ao longo dessa apuração, lemos algumas atas de assembleias da CTNBio. Nos documentos, que relatam objetivamente cada momento da reunião, muitos dos processos de Timp estão sob sigilo, o que não nos permite entender alguns detalhes da tecnologia, cujos pareceres foram, ali, aprovados.

Nos pareceres técnicos, também reina o sigilo. A nossa reportagem solicitou, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), gravações das assembleias gerais da CTNBio para que possamos conhecer como se dá o processo de discussão e aprovação.

O nosso pedido foi negado, com base na “necessidade de preservar na gravação informações sigilosas sobre os produtos e o direito de personalidade dos presentes na reunião”. O órgão citou a Lei 13.709/18, Lei Geral de Proteção de Dados, como amparo.

Vale dizer que as reuniões da CTNBio são transmitidas publicamente para participantes que se inscreverem previamente, seguindo regras apresentadas pelo próprio órgão no site. Então, por qual razão não podemos ter acesso aos áudios das reuniões?

Segundo o regimento interno do órgão, os 54 integrantes, entre titulares e suplentes, compõem três blocos. Um deles é formado por representantes de vários ministérios do governo federal. O segundo, com 12 membros, é fruto de indicações da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Por último, há as representações da sociedade civil, definidas por meio de convocatória de cada ministério correspondente à área a ser preenchida. Leonardo Melgarejo, ex-representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio, avalia que a composição final do grupo depende da forma como é feita a convocação das organizações e entidades.

“Se os ministérios estimularem a indicação de geneticistas e priorizarem as listas de geneticistas, haverá dominância desta perspectiva científica e descaso ou incapacidade de avaliação adequada para outras visões científicas. A genética é importante, mas as redes bióticas, as implicações legais, também são importantes. A lei não obriga, mas permite privilégios a algumas perspectivas”, analisa Melgarejo.

Para aprovar um produto transgênico ou oriundo de edição genética, são necessários apenas 14 votos. Sendo assim, se os doze representantes da SBPC cravam o voto a favor da aprovação, a aprovação já está praticamente garantida.

“O que a gente tem acompanhado é que esses 12 representantes da academia são mais alinhados às biotecnologias e votam mais favoravelmente pela aprovação, do que pela aplicação do princípio da precaução. Alguns representantes do Ministério da Agricultura, o próprio Ministério da Ciência e Tecnologia, quase sempre, votam a favor dos OGMs”, explica o coordenador do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, Gabriel Fernandes.

Transgênicos também são aprovados pela RN 16

Em um parecer técnico sobre a aplicação da Resolução Normativa n. 16, a pesquisadora Sarah Agapito constatou que há OGMs sendo liberados sem análise de risco.

Como exemplo, ela cita o milho ceroso, desenvolvido pela Du Pont do Brasil – hoje, Corteva Agriscience. Esta variedade de milho apresentou concentração de 100% de amilopectina, graças a um processo de modificação genética

Esta variedade, inicialmente, passou por um processo que envolve a técnica de bombardeamento de partículas e, em seguida, pela CRISPR, que é um tipo de edição genética. O bombardeamento de partículas é uma técnica comum, “inclusive foi utilizada em diversos OGMs já autorizados pela própria CTNBio”, diz o documento, que cita, como exemplos, os “milhos geneticamente modificados resistentes ao herbicida glifosato e a insetos”.

O fato é que, mesmo tendo sido empregada uma técnica de engenharia genética conhecida, o milho ceroso foi definido pela RN 16 como um não OGM. Isso porque se excluiu a primeira técnica e levou-se em consideração apenas a segunda.

O boi sem chifre, um caso emblemático

O Buriµ, boi sem chifre desenvolvido pela Agro Partners Consulting, é resultado de uma técnica de edição genética chamada TALEN. O resultado dessa tecnologia foi publicado na revista científica Nature Biotechnology, conceituada internacionalmente.

Em 2018, a Agropartners submete carta-consulta para a liberação desse animal no Brasil. Usando a RN 16, a CTNBio autoriza o uso comercial do produto. Enquanto isso, nos Estados Unidos, o Food and Drug Administration (FDA) – departamento de alimentação e medicamentos – considerou que se trata de um OGM. Foi o início de uma reviravolta.

Após uma grande repercussão, a AgroPartners recuou da intenção de comercializá-lo nos Estados Unidos, e se viu obrigada a retirar o processo da CTNBio, que, por sua vez, teve de cancelar o parecer técnico.

O caso do boi sem chifres é um exemplo que cai como uma luva para ilustrar o quanto é importante regulamentar os produtos para promover análise de risco que revele os impactos em diversos aspectos.

Questionamos o coordenador da Secretaria Executiva da CTNBio sobre esse caso. Rubens Nascimento afirmou que a comissão “faz a análise de acordo com as informações fornecidas pela empresa, que, na ocasião, não identificou no alvo a presença de sequências indesejadas. Esse erro foi considerado quando uma aluna de doutorado pegou o material para estudar e descobriu o erro. A empresa nos apresentou os novos dados e a CTNBio julgou por bem considerar que aquele produto era geneticamente modificado”.

Em relação ao milho ceroso, Nascimento afirmou que “o uso da tecnologia de bombardeamento de partículas nada mais é do que uma forma de inserção das partículas de DNA nas plantas e que isso não caracteriza o produto como um OGM”.

Inquérito civil investiga possíveis irregularidades

No estado de Santa Catarina, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou, em abril de 2022, um inquérito civil público para investigar a relação entre a Resolução Normativa N. 16 e a Lei 11.105, a Lei de Biossegurança Nacional, a Convenção da Diversidade Biológica e o Protocolo de Cartagena.

De acordo com a assessoria de imprensa do órgão, a investigação avança na obtenção de informações sobre os critérios técnicos que basearam a referida normativa. O caso foi levado ao MPR pelo Fórum Catarinense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos (FCCIAT).

A ideia, ainda segundo o órgão, é entender qual a fundamentação legal para que a avaliação, atualmente, seja feita “desconsiderando a análise técnica usada para a obtenção de organismos geneticamente modificados (OGM) e determinando que a análise de definição do organismo obtido por TIMP (Técnicas Inovadoras de Melhoramento de Precisão) seja realizada a partir do produto final, contrariando, assim, a metodologia adotada pela Lei, pela Convenção e pelo Protocolo retrocitados”, diz o texto.

Responsável pela investigação, a procuradora Ana Lucia de Andrade Hartman, por e-mail, informou que o inquérito se encontra em fase de “apuração e que o prosseguimento e a atuação depende dessa análise. Pode levar ao arquivamento do dossiê, a algum acordo ou recomendação, ou, se necessário, ao ajuizamento de ação”.

Comercialização e patenteamento no Brasil

Ao longo desta apuração, tentamos contato com grande parte das empresas que tiveram produtos considerados não OGMs pela RN 16. Dentre os 49 produtos, segundo apuramos, grande parte se encontra em fase de testes de campo, princípio de registro no Ministério da Agricultura (Mapa) ou em fase final de preparação para chegada ao mercado.

Segundo a pesquisadora da Embrapa Soja, Lilina Hening, os produtos de edição genética autorizados no Brasil ainda não foram comercializados. “Não está definida como será a questão dos royalties e a proteção dos obtentores dos produtos. Por isso, a gente coloca as sequências [informações detalhadas da tecnologia] em sigilo. Se você for ver, muitos produtos foram avaliados pela CTNBio, mas nenhum está sendo comercializado”, explica Liliane.

Se a pesquisadora da Embrapa se refere ao mercado internacional, de fato, a interpretação sobre os produtos de edição genética ainda não foi harmonizada.  Isso se dá, especialmente, porque o Protocolo de Cartagena, do qual diversos países são signatários, recomenda a aplicação do princípio da precaução. O mecanismo assegura o tempo necessário para levantar dados suficientes sobre a técnica e a forma mais segura de regulamentá-la.

Por outro lado, se ela se refere também ao mercado nacional, segundo o coordenador da Secretaria Executiva da CTNBio, Rubens Nascimento, essa perspectiva não procede. “Qualquer produto de edição genética pode ser comercializado no Brasil, desde que obtenha registro junto aos órgãos competentes”, explica. O membro da Comissão ainda exemplifica que, “por exemplo, há umas leveduras usadas para produção de etanol, que não sei se já estão sendo comercializadas. Ali, obviamente, o produto final é o etanol, álcool, não sairá organismo vivo, então, já pode ser comercializada”.

Questionado sobre a transparência no processo de criação e aprovação da Resolução Normativa N. 16, Rubens Nascimento afirmou não enxergar problemas. “Essa resolução normativa, se eu não me engano, foi apresentada através de consulta pública e durante esse momento ouvimos opiniões”. Sobre a plataforma na qual essa consulta foi divulgada, o membro da CTNBio informou que ela se deu “no portal da CTNBio e no Diário Oficial da União.”

Na apuração, aplicamos diversas palavras-chave na sessão de busca do site da CTNBio, mas não encontramos nenhuma consulta pública sobre a RN 16. A fonte também não nos encaminhou essas informações.

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