Por Heloisa Villela.
A variedade de programas de espionagem e a real dimensão dessa indústria, nos Estados Unidos, escapam ao poder de análise dos melhores especialistas.
PRISM é o programa secreto de monitoramento de chamadas telefônicas e trânsito na internet denunciado pelo ex-funcionário terceirizado da Agência Nacional de Segurança (NSA), Edward Snowden. BLARNEY foi o projeto no qual Mark Kein, ex-funcionário da empresa de telefonia ATT tropeçou e também trouxe a público. Já o ECHELON preocupa a Europa há mais de uma década. Também administrado pela NSA, ele se encarrega de interceptar as conversas de indivíduos e representantes de empresas há anos. Funciona sob segredo absoluto.
Em 1999 o Parlamento Europeu encomendou um estudo e em julho de 2001 publicou todo o levantamento e as conclusões em um documento de 194 páginas.
Primeiro, confirmou que o ECHELON não era uma teoria de conspiração. Deixou claro, também, o relatório, que o programa não tem apenas interesses militares ou de segurança: “a prioridade é interceptar comunicações particulares e comerciais e não militares”.
Gestado durante a guerra fria, para espionar a União Soviética e os países do Leste Europeu, o ECHELON é uma acordo para coleta e análise de informações fechado, em 1948, por cinco países: Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Por que a inclusão destes aliados na arapongagem? Para cobrir toda a área do globo terrestre. O ECHELON usa satélites espiões e estações terrestres de captação para interceptar “qualquer mensagem enviada por telefone, fax, internet ou e-mail, por qualquer indivíduo, e inspecionar seu conteúdo”, segundo o relatório do Parlamento Europeu.
Com o passar dos anos, o propósito inicial ficou para trás. No lugar de escutar as conversas dos ex-inimigos comunistas, o programa se dedicou mais e mais à espionagem industrial.
O estudo cita o caso da concorrência para a compra de um sistema de satélite para monitorar a Amazônia. Em 94, o Brasil se decidiu por uma empresa francesa, a Thomson-Alcatel.
Na época o então Presidente Bill Clinton reclamou. Disse que a empresa havia dado propina para conseguir o negócio e conseguiu reverter a situação.
O contrato acabou nas mãos da americana Raytheon, a mesma que fornece equipamentos para Sugar Grove, na Virgínia Ocidental, a principal estação do programa ECHELON nos Estados Unidos. É o aparato de segurança cada vez mais a serviço dos interesses econômicos do país, uma simbiose que só se aprofunda.
O Parlamento Europeu ouviu testemunhas, como o ex-funcionário da NSA, Wayne Madsen. Ele confirmou a existência do ECHELON e disse acreditar que a prioridade do programa passou a ser levantar informações relevantes para a economia dos Estados Unidos, para favorecer as empresas do país. Ele também afirmou que a NSA tinha um arquivo com mais de 1.000 páginas sobre a Princesa Diana, porque ela fazia campanha contra as minas terrestres, o que contrariava os interesses dos Estados Unidos.
Fred Stock também deu depoimento. Ele trabalhou para o Serviço Secreto Canadense de onde disse ter sido expulso, em 1993, porque criticou a ênfase do trabalho na chamada inteligência econômica e no fato de muitos alvos da espionagem serem civis. Ele disse que na época eram interceptadas muitas informações a respeito de trocas comerciais, inclusive das negociações do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), além das compras chinesas de grãos e a venda de armas da França.
Mas como um programa só não dá conta de tanta sede de informação, vamos a outros.
Mark Klein foi funcionário da ATT por mais de 20 anos. Depois do onze de setembro de 2001, reparou uma movimentação estranha na sede da empresa em São Francisco. Uma sala secreta à qual apenas um funcionário tinha acesso. Notou a visita surpreendente de um representante da Agência Nacional de Segurança. Tudo muito estranho…
Ele acabou descobrindo do que se tratava: com a conivência da ATT, a NSA instalou um “spliter” na fibra ótica da empresa em São Francisco para reproduzir toda a informação transportada por ela para uma segunda fibra, que desemboca nos computadores da NSA instalados na tal sala secreta.
Traduzindo em português claro, o governo duplicou a fibra para copiar o fluxo de informação e jogar tudo em computadores para armazenar e analisar. O que a fibra carrega? Toda a movimentação dos usuários da ATT na internet, na região de São Francisco. Mais adiante, Klein descobriu que o mesmo já acontecia em sedes da empresa em outras cidades do país.
Klein ficou calado alguns anos. Mas, eventualmente, e com muito esforço, trouxe o programa chamado BLARNEY à tona. Não foi fácil porque políticos e jornalistas queriam distância do assunto.
Nos bastidores, o governo Bush pressionava os diretores dos meios de comunicação e Klein quase foi parar na cadeia. O processo contra ele terminou em 2009 e ele não foi preso porque nunca divulgou documentos secretos. Apenas relatou o que viu pessoalmente. À PBS, rede pública de televisão, ele explicou porque se recusou a ser mero espectador dos acontecimentos.
“Eu me lembro da última vez em que isso aconteceu… Eu participei das passeatas contra a guerra (do Vietnã) quando elas eram ativas nos anos 60, e me lembro das violações e transgressões que o governo cometeu em nome de uma guerra que depois ficou provado que era errada, e muitos inocentes morreram. Estou vendo isso tudo acontecer novamente. Quando a NSA foi flagrada, nos anos 70, fazendo espionagem doméstica, foi um grande escândalo e por isso o Congresso passou a FISA (Ato de Monitoramento de Inteligência Internacional), lei que supostamente cuida disso”.
O FISA foi consequência dos desmandos do governo Richard Nixon, que usou o serviço de inteligência do país para espionar grupos políticos e ativistas de direitos civis, como o reverendo Martin Luther King, violando a emenda 14 da Constituição dos Estados Unidos. O FISA dá ao Congresso e ao Judiciário o poder de supervisionar as atividades de espionagem de líderes mundiais e de cidadãos norte-americanos. Por isso, o aparato de segurança é obrigado a informar os comitês de inteligência do Congresso, em sessões privadas, a respeito dos programas em andamento.
O avanço e a sofisticação da tecnologia, a promoção da paranoia pós-onze de setembro e o crescimento desenfreado do complexo serviço de espionagem desembocaram nos programas denunciados por Klein e Snowden. A revista Wired revelou que a NSA está construindo um grande centro de processamento de dados em Bluffdale, estado de Utah, para armazenar as informações coletadas pelo programa secreto BLARNEY.
Outro que não conseguiu se calar? William Binney. Ex-agente da NSA, onde trabalhou durante quatro décadas, ele pediu demissão em 2001 quando testemunhou, de perto, o que estava acontecendo. A desculpa de que era preciso usar todo e qualquer meio para combater o terrorismo justificou, segundo Binney, a construção de um sistema massivo para monitorar e gravar as comunicações via telefone e internet, dos cidadãos norte-americanos e de pessoas em todo o mundo. Ele diz que o serviço de inteligência justifica esse desrespeito às leis argumentando, junto ao governo e ao Congresso, que esta espionagem ampla é a única maneira viável de enfrentar e desbaratar grupos terroristas.
Em entrevista ao programa DemocracyNow, em 2012, ele foi bem claro. “É um argumento falso. Existe uma maneira simples de fazer isso, protegendo a privacidade das pessoas. Se você sabe de um terrorista e ele liga para alguém nos Estados Unidos, aí você tem um alvo e colhe informações e também investiga a pessoa nos Estados Unidos e as pessoas com quem ela se comunica”. A proposta dele é de uma investigação com um mínimo de inteligência e não uma coleta generalizada de dados.
O presidente Barack Obama defendeu o programa PRISM, denunciado por Edward Snowden, com a justificativa de sempre: é preciso abrir mão de parte da privacidade em nome da segurança. Garantiu que o governo não está ouvindo as conversas de ninguém. Pode ser. Mas está gravando e guardando. Pode ouvir a qualquer momento, por qualquer motivo.
Fonte: Viomundo