Por Serge Marchand e Thierry Meyssan.
As guerras na Ucrânia e em Gaza levaram vários responsáveis políticos de primeiro plano a comparar o período actual com os anos 30 e a evocar a possibilidade de uma Guerra mundial. São estes temores justificados ou trata-se de uma retórica visando criar medo?
Para responder à esta questão, vamos resumir acontecimentos ignorados por todos, muito embora conhecidos pelos especialistas. Faremos isso desapaixonadamente, correndo o risco de parecer indiferentes a esses horrores.
Em primeiro lugar, temos de distinguir os conflitos na Europa Oriental e no Oriente Médio. Eles só têm dois pontos comuns:
Por si mesmos eles não representam nenhum desafio significativo, mas sim uma derrota do cidente que, após o desaire na Síria, marcaria o fim da sua hegemonia sobre o mundo. Eles são alimentados por uma ideologia fascista, a dos ‘nacionalistas integralistas’ ucranianos de Dmytro Dontsov [1] e a dos ‘sionistas revisionistas’ israelenses de Vladimir Ze’ev Jabotinsky [2] ; dois grupos que são aliados desde 1917, mas que passaram à clandestinidade durante a Guerra Fria e hoje em dia são desconhecidos do grande público.
Existe no entanto uma notável diferença entre eles :
Nos dois campos de batalha é visível o mesmo furor, mais os “nacionalistas integralistas” sacrificam os seus próprios concidadãos (já quase não há mais homens aptos com menos de trinta anos na Ucrânia), enquanto os “sionistas revisionistas” sacrificam pessoas que lhes são estranhas, civis árabes.
Há o risco destas guerras se generalizarem?
Essa é a vontade dos dois grupos pré-citados. Os “nacionalistas integralistas” não cessam de atacar a Rússia no interior do seu território e no Sudão, enquanto os “sionistas revisionistas” bombardeiam o Líbano, a Síria e o Irã (mais precisamente o território iraniano na Síria, uma vez que o Consulado em Damasco é extraterritorializado). No entanto, ninguém responde: nem a Rússia, nem o Egipto e os Emirados, no primeiro caso, nem o Hezbolla, nem o Exército árabe sírio, nem os Guardas da Revolução, no segundo caso.
Todos, incluindo a Rússia, desejosos de evitar uma réplica brutal do “Ocidente Colectivo” que conduziria a uma Guerra Mundial, preferem encaixar os golpes e aceitar os seus mortos.
Se houvesse uma generalização da guerra, esta já não seria só convencional, mas sobretudo nuclear.
Se são conhecidas as capacidades convencionais de todos, ignora-se em grande parte as suas capacidades nucleares. No máximo sabe-se que apenas os Estados Unidos utilizaram bombas nucleares estratégicas durante a Segunda Guerra Mundial e que a Rússia afirma dispor de portadores nucleares hipersónicos com os quais nenhuma outra potência pode rivalizar. Contudo, alguns peritos ocidentais põem em dúvida a realidade destes prodigiosos avanços técnicos. No plano de fundo, qual é pois a estratégia das potências nucleares?
Para além dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, também a Índia, o Paquistão, a Coreia do Norte e Israel dispõem de bombas atómicas estratégicas. Todos, salvo Israel, as encaram como meios de dissuasão. A mídia ocidental apresenta igualmente o Irã como uma potência nuclear, o que a Rússia e a China oficialmente desmentem. Durante a guerra do Iêmen, a Arábia Saudita comprou bombas nucleares tácticas a Israel e utilizou-as, mas não parece dispor delas em permanência, nem dominar a sua técnica.
Só a Rússia realiza regularmente exercícios de guerra nuclear. Durante os de outubro passado, ela admitia perder um terço da sua população em poucas horas, depois simulando o combate saía vencedora.
Em última análise, o conjunto das potências nucleares não pensa disparar primeiro, pois isso levaria, sem dúvida nenhuma, à sua destruição. À excepção de Israel que, pelo contrário, parece ter adotado a “Doutrina Sansão” (“Quero morrer com os Filisteus”). Seria, portanto, a única potência a imaginar o sacrifício final, o “Crepúsculo dos Deuses”, tão caro aos nazis.
Duas obras criticas foram consagradas ao átomo militar israelense: The Samson Option : Israel’s Nuclear Arsenal and American Foreign Policy (A Opção Sansão: O Arsenal Nuclear de Israel e a Política Externa Estadunidense-ndT) de Seymour M. Hersh (Random House, 1991) e Israel and the Bomb (Israel e a Bomba-ndT) de Avner Cohen (Columbia University Press, 1998, traduzido em francês pelas edições Demi-Lune) [3].
O átomo militar jamais foi encarado como uma forma de dissuasão clássica, apenas como a garantia que Israel não hesitará em se suicidar para matar os seus inimigos mais do que aceitar ser vencido. Este é o complexo de Massada [4]. Esta maneira de pensar inscreve-se na linha da “Doutrina Hannibal” segundo a qual as FDI devem matar os seus próprios soldados em vez de os deixar cair prisioneiros do inimigo [5].
Durante a Guerra dos Seis Dias, o Primeiro-Ministro israelense, o ucraniano Levi Eshkol, deu ordens preparar uma das duas bombas de que Israel dispunha na altura a fim de a fazer explodir não muito longe de uma base militar egípcia no Monte Sinai. Este plano não foi executado, já que as FDI venceram muito rapidamente esta guerra convencional. Se tal tivesse tido lugar, as repercussões teriam morto grande numero não só egípcios, mas também de israelenses[6].
Durante a Guerra de outubro de 1973 (dita no Ocidente “Guerra do Yom Kippur”), o Ministro da Defesa, o israelense de origem ucraniana Moshe Dayan, e a Primeira-Ministra, a ucraniana Golda Meir, pensaram de novo em utilizar 13 bombas atómicas [7].
Em 1986, um técnico nuclear da Central de Dimona, o marroquino Mordechaï Vanunu, revelou o programa nuclear militar secreto de Israel ao Sunday Times [8]. Ele foi raptado pela Mossad em Roma, a ordens do Primeiro-Ministro israelense e pai da bomba atómica, o bielorusso Shimon Peres. Foi julgado à porta fechada e condenado a 18 anos de prisão, dos quais 11 passados em isolamento total. Ele foi de novo condenado a 6 meses de prisão por ter ousado dar uma entrevista à Rede Voltaire.
Em 2009, Martin van Creveld, o principal estratega de Israel, declarava : “Possuímos várias centenas de ogivas atómicas e de foguetes e podemos atingir os nossos alvos em todos os pontos cardeais, até mesmo Roma. A maior parte das capitais europeias fazem parte dos alvos potenciais da nossa Força Aérea (…) Os palestinos devem ser todos expulsos. As pessoas que lutam com este fim esperam simplesmente a chegada da “pessoa certa na hora certa”. Há apenas dois anos, 7 ou 8 % dos israelenses eram da opinião que essa seria a melhor solução, há dois meses eram 33 % e agora, segundo uma sondagem Gallup, o número é de 44 % a favor.
Assim é razoável pensar que nenhuma potência nuclear, excepto Israel, ousará cometer o irreparável.
Precisamente, foi o que o Ministro do Património, Amichai Eliyahu (Otzma Yehudit/Força Judaica), imaginou na Rádio Kol Berama, em 5 de novembro passado. A propósito da arma atómica contra Gaza, ele declarou: “É uma solução… é uma opção”. Em seguida comparou os residentes da Faixa de Gaza aos “nazis”, garantindo que “não existem não-combatentes em Gaza” e que este território não merece ajuda humanitária. “Não há gente que não esteja implicada em Gaza”.
Estas declarações levantaram a indignação no Ocidente. Mas, apenas Moscou se espantou que a Agência Internacional de Energia Atómica não agisse [9]]].
É muito provável que seja esta a razão que leva Washington a continuar a armar Israel enquanto reclama um cessar-fogo imediato: se os Estados Unidos não fornecerem mais armas a Telavive para massacrar os gazenses, esta poderia recorrer à arma nuclear contra todos os povos do região, israelenses incluídos.
Na Ucrânia, os “nacionalistas integralistas” haviam previsto fazer “dançar” os Estados Unidos com o mesmo argumento: a ameaça nuclear ou, à falta, a das armas biológicas [10]. Em 1994, a Ucrânia, que dispunha de um vasto arsenal de bombas atómicas soviéticas, assinou o Memorando de Budapeste. Os Estados Unidos, o Reino Unido e a Rússia deram-lhe garantias de integridade territorial em troca da transferência de todas as suas armas nucleares para a Rússia e da assinatura do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). No entanto, após o derrube do Presidente eleito, Viktor Yanukovych, em 2014 (EuroMaidan), os “nacionalistas integralistas” trabalharam para voltar à nuclearização do país. Aos seus olhos isso indispensável para erradicar a Rússia da face da Terra.
Em 19 de fevereiro de 2022, o Presidente ucraniano, Voloymyr Zelensky, anunciou durante a Conferência anual de Segurança de Munique que ia por em causa o Memorando de Budapeste, a fim de rearmar o seu país no plano nuclear. Cinco dias depois, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia lançou a sua operação especial contra o governo de Kiev com vista à aplicação da Resolução 2202. Ela colocou como objetivo ultraprioritário tomar o controle das reservas secretas e ilegais da Ucrânia em urânio enriquecido. Após oito dias de combates, a central nuclear civil de Zaporizhia foi ocupada pelo Exército russo.
Segundo o argentino Rafael Grossi, Director da Agência Internacional de Energia Atómica, que se pronunciou três meses mais tarde, em 25 de maio, no Fórum de Davos, a Ucrânia tinha secretamente armazenado 30 toneladas de plutónio e 40 toneladas de urânio em Zaporizhia. A preços de mercado, esse estoque representava, pelo menos, US$ 150 bilhões de dólares. O Presidente russo, Vladimir Putin, declarou : “A única coisa que falta [à Ucrânia] é um sistema de enriquecimento de urânio. Mas é uma questão técnica e para a Ucrânia isso não é um problema insolúvel”. No entanto, o seu Exército havia já retirado uma grande parte desse estoque da Central. Os combates prosseguiram aí durante meses. Se os nacionalistas integralistas ainda as tivessem, teriam feito como os “sionistas revisionistas” hoje : teriam exigido sempre cada vez mais armas e, em caso de recusa, teriam ameaçado utilizá-las, quer dizer, lançar o Armagedão.
Regressemos aos campos de batalha actuais. Que observamos ? Na Ucrânia e na Palestina, os ocidentais continua a fornecer um arsenal impressionante aos “nacionalistas integralistas” e, em menor grau, aos «sionistas revisionistas». No entanto, eles não têm nenhuma esperança razoável de fazer recuar os russos, nem de massacrar a totalidade dos gazenses. Na pior das hipóteses podem levar os aliados a esvaziar os seus arsenais, a sacrificar todos os ucranianos em idade de combater e em isolar diplomaticamente o Estado rufião de Israel. Aliás, era Moshe Dayan que dizia : “Israel deve ser como um cão raivoso, demasiado perigoso para ser controlado”.
Imaginemos que estas consequências, aparentemente catastróficas, sejam na realidade o seu objetivo.
O mundo se veria então dividido em dois como durante a Guerra Fria, exceptuando que Israel se teria tornado um pária. No ocidente, os anglo-saxões continuariam a ser os mestres, tanto mais porque seriam os únicos a dispor de armas, tendo os seus aliados esgotado as suas na Ucrânia. Israel isolado, como no fim dos anos 70 e princípio dos anos 80, quando só era verdadeiramente reconhecido pelo regime do apartheid da África do Sul, cumpriria ainda a missão que lhe foi originalmente confiada: mobilizar, ao serviço do Império, a diáspora judaica que temeria uma nova vaga “antissemita”.
Esta sombria visão é a única que pode permitir aos anglo-saxões não se afundarem e continuar a ter vassalos, mesmo que isto já não tenha maior relação com o seu poderio da época do “mundo global”. É por isso que eles se colocaram na inextricável situação atual. Os “nacionalistas integralistas” e os “sionistas revisionistas” fazem-nos “dançar”, mas eles entendem manipulá-los para dividir o mundo em dois e preservar o que podem da sua supremacia.
Tradução: Alva