É mentira que agronegócio produza alimentos para erradicar fome, diz biólogo

Cultivo de melão, na Chapada do Apodi no Rio Grande do Norte
Cultivo de melão, na Chapada do Apodi no Rio Grande do Norte

Foto: Otávio Nogueira / Flickr

Por Patricia Fachin e Andriolli Costa.*

Fernando Carneiro, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, comenta paradigmas em disputa: ‘agricultura familiar alimenta 70% dos brasileiros; produção brasileira em larga escala tem servido para alimentar animais na China e nos EUA’

A nova composição do Congresso Nacional e a chegada de Kátia Abreu ao Ministério da Agricultura estão deixando alguns pesquisadores da área da saúde e do meio ambiente “preocupadíssimos”. Entre eles, Fernando Carneiro, da Associação de Saúde Coletiva – Abrasco, que atualmente coordena o GT de Saúde e Meio Ambiente da instituição. Segundo ele, as recentes mudanças no quadro político indicam que “as perspectivas de uma desregulamentação na legislação dos agrotóxicos são enormes”. Entre as alterações prováveis, ele menciona a possibilidade de “que se quebre todo o marco regulatório para favorecer a entrada de agrotóxicos no Brasil” e “de que se retire o papel da Anvisa e do Ibama para concentrá-los no Ministério da Agricultura, que já tem o comando do agronegócio”.

Fernando Carneiro possui experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em saúde e ambiente e saúde no campo, atuando principalmente junto aos movimentos sociais na luta por melhores condições de vida. Foi consultor do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Saúde. Atualmente Coordena o GT Saúde e Ambiente da Abrasco e o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas (OBTEIA), e é pós-doutorando do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal.

Na entrevista a seguir, Carneiro comenta as reações de resistência da sociedade civil ao uso de agrotóxicos no país. De acordo com ele, “a resistência mais organizada está se dando através da Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e pela Vida. Trata-se de uma resistência interessante, uma grande novidade, porque além de reunir movimentos sociais, reúne ONGs e órgãos de Estado como a Fiocruz e o Incra. Essa é uma grande força em termos de uma grande campanha da sociedade civil”.

Existe resistência da sociedade civil aos agrotóxicos? Ela é representativa?

Fernando Carneiro: Existe uma resistência que é histórica do movimento de agricultura alternativa, que foi bastante representativa nos anos 1980, e que gerou a lei de agrotóxico do Brasil, considerada moderna para os parâmetros atuais. A resistência mais organizada está se dando através da Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e pela Vida, que foi lançada no Dia Mundial da Saúde há três anos, e reúne mais de 200 entidades. Trata-se de uma resistência interessante, uma grande novidade, porque além de reunir movimentos sociais, reúne ONGs e órgãos de Estado como a Fiocruz e o Incra. Essa é uma grande novidade em termos de uma grande campanha da sociedade civil.

Por que, mesmo com tal resistência, o país permanece líder no consumo de agrotóxicos?

Existe uma escolha por parte dos últimos governos, principalmente dos federais, pela opção do agronegócio. Na medida em que prioriza que a balança comercial seja equilibrada pela exportação de commodities, o governo acaba fazendo uma opção pela reprimarização da economia. Isso aconteceu e vem crescendo desde o fim do governo Fernando Henrique e nos governos Lula e Dilma. Esse é um processo muito perigoso, porque há uma desindustrialização e um incentivo a commodities minerais e agrícolas, que têm um valor muito menor na relação de trocas do comércio internacional. Então, o Brasil ficou dependente desse modelo, que é baseado no grande uso de insumos químicos. A própria monocultura é um sistema desequilibrado, que exige muito agrotóxico. Mas muitas pessoas estão ganhando com a implantação desse modelo. Como você pode ver, a presidente da Confederação Nacional da Agricultura hoje é a Ministra da Agricultura. Isso demonstra que pessoas ligadas ao agronegócio já controlam o aparelho do Estado e os financiamentos, e aí fica uma luta entre Davi e Golias.

Como compreender a escolha de Dilma pelo nome de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura?

É uma escolha parecida com a que Lula fez quando escolheu seu primeiro ministro, Roberto Rodrigues. A diferença é que Kátia Abreu é uma liderança com um trânsito político e ela tem projetos que passam desde a privatização da Embrapa até a negação da reforma agrária como pauta para o país. À medida que temos uma ministra que tem colunas em jornais, ela passa a ter uma capacidade de influência maior do que tinha o ministro anterior, que também era ligado ao mesmo setor. Nos últimos anos a agricultura no Brasil tem sido atrelada ao agronegócio, mas agora chegou ao poder a representante mais poderosa do agronegócio no Brasil.

Ainda há falta de informação sobre os danos causados pelos agrotóxicos, que levam a uma maior disposição a aceitar os riscos de seu uso tanto por produtores quanto por consumidores? Como as campanhas agem para resistir ao agrotóxico?

Circula pouca informação sobre os riscos que os agrotóxicos podem causar. O máximo que já vi na televisão foram orientações sobre lavar as frutas e verduras antes de consumi-las. Mas sabemos que existem agrotóxicos que são sistêmicos e somente a lavagem dos vegetais não é suficiente para eliminar as substâncias tóxicas.

Não há, em contrapartida, por parte do Estado brasileiro, um investimento em campanhas de informação. Quando chega o carnaval, há uma série de campanhas sobre os riscos da Aids, mas nunca existiu uma campanha sobre os riscos do uso de alimentos contaminados por agrotóxicos pelo Ministério da Saúde.

A novidade para este ano é o lançamento de uma cartilha informativa sobre os riscos dos agrotóxicos. Acabei de participar da revisão técnica dessa cartilha do Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos. Esse programa faz parte do Plano Nacional de Agroecologia e quem está conduzindo a elaboração da cartilha é a Articulação Nacional de Agroecologia. A Abrasco e a Fiocruz também estão apoiando esse processo de divulgação da cartilha, que será amplamente distribuída no país.

A cartilha será divulgada para toda a população, ou somente entre agricultores?

Inicialmente a tiragem é da ordem de dez mil cartilhas, e o público inicial serão os agricultores, mas acreditamos que posteriormente ela possa ser distribuída para os profissionais de saúde. À medida que conseguirmos mais apoio, pretendemos ampliar a distribuição.

Por que o governo, e especialmente a Anvisa, demoram e resistem tanto para banir substâncias que já são proibidas em outros países?

Essa situação deixa qualquer cientista indignado. As patentes recebem um registro que é eterno, e mesmo quando começam a se levantar evidências de que os agrotóxicos podem causar danos à saúde, as empresas criam dificuldades para dificultar o processo de reavaliação dos produtos. Quando a Anvisa proíbe o uso de alguma substância, as empresas entram na Justiça contra o órgão, ou seja, judicializam os processos, o que os torna ainda mais morosos. Essa tem sido a postura das empresas, o que tem dificultado o trabalho de órgãos como a Anvisa.

Para você ter uma ideia, depois que a Anvisa proíbe o uso de agrotóxicos, o órgão ainda tem de dar um tempo para as empresas acabarem com o estoque dos produtos no Brasil. É um contrassenso: se o agrotóxico foi proibido, como é possível permitir que ele ainda seja utilizado no país durante um tempo?

A produção brasileira em larga escala tem servido para alimentar animais na China e nos EUA
A produção brasileira do agronegocio tem servido para alimentar animais na China e nos EUA

Foto: Marilze Venturelli / Flickr

Recentemente você declarou que a produção ecológica tem condições de alimentar a população com qualidade. Ao afirmar isso, quer dizer também em quantidade? Em termos de produtividade, o sistema convencional poderia ser plenamente substituído pelo agroecológico?

Atualmente os eventos nacionais da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) reúnem anualmente mais de 4.000 pesquisadores que mostram as evidências da capacidade produtiva da agroecologia. Na verdade estamos falando de uma mudança de paradigma, e não apenas de uma questão técnica; estamos falando de uma mudança de modelo que não só não usa veneno, como também distribui melhor a renda e, portanto, promove a equidade social. Se fizermos uma análise como um todo, a agroecologia acaba sendo mais eficiente, porque o agronegócio, para funcionar, precisa, de fato, de financiamentos públicos, e usa uma quantidade enorme de insumos que são responsáveis por 30 ou 40% dos gastos da produção.

Agora, imagine um modelo de agricultura que elimine esse gasto de 40% com agrotóxicos. Há relatórios da ONU para a alimentação que mostram isso. Outro exemplo que nos ajuda a entender essa questão em termos estatísticos é o censo agropecuário do IBGE, que indica que a agricultura familiar já é responsável por alimentar 70% dos brasileiros. Isso demonstra que a produção de alimentos não está associada à produção em larga escala. Tanto que a produção brasileira em larga escala tem servido para alimentar animais na China e nos EUA. Existe aí um discurso falacioso do agronegócio de que eles produzem alimentos para acabar com a fome. Isso é mentira.

Frequentemente vinculamos o uso de agrotóxicos aos grandes latifúndios, mas os pequenos produtores também são grandes utilizadores destes produtos, o que se reflete na dificuldade de uma produção agroecológica devidamente certificada. O que falta para que o uso de tais produtos seja minimizado em favor de tecnologias sociais?

Imagine um Brasil em que o que se investe no agronegócio via Embrapa fosse investido para desenvolver técnicas para a agroecologia. Um Brasil que ao invés de 150 bilhões de reais para a produção do agronegócio, destinasse esse valor para a agricultura agroecológica. Isso implicaria numa mudança radical dessa situação. Então, o que precisamos é de uma mudança política.

Como evitar que o discurso agroecológico seja dominado pelo marketing verde, justificando preços muito acima da expectativa para o consumidor final?

Esse é um risco: a economia verde. Estamos num sistema capitalista que tenta aproveitar todas as chances para lucrar. Muitas empresas de agrotóxicos já estão se preparando para um novo momento e estão diversificando suas linhas de produção para produzir produtos de controle biológico. Então, é importante que esse processo esteja presente nas discussões dos movimentos sociais com a sociedade e a academia para buscar desenvolver tecnologias que ajudem no empoderamento dos produtores e na situação econômica deles, e não criar formas de deixá-los mais dependentes.

O que as grandes empresas criam são tecnologias que fazem com as pessoas fiquem mais dependentes delas. Essa é a grande armadilha da lógica da economia verde. Temos de romper com essa lógica e fazer uma mudança do modelo. Ao invés de concentrar renda e tecnologia, temos de buscar um modelo de agricultura que distribua renda e que faça com que as tecnologias sejam acessíveis. Esse é o caminho para sair do impasse da economia verde.

Quais as culturas em que há maior uso de agrotóxicos?

Nos últimos levantamentos do Programa de Avaliação de Resíduos de Agrotóxicos e Alimentos da Anvisa, a cultura que tem sido campeã no uso de agrotóxico é o pimentão, que teve quase 90% de contaminação. Estimula-se que as pessoas comam mais frutas e verduras para evitar o câncer, mas frutas e verduras contaminadas também podem ser fatores de risco para o câncer. Então, esse modelo deixa uma encruzilhada para as populações.

Também tem as culturas históricas, como morango, mamão, tomate, que sempre têm níveis elevados de agrotóxico, que vão variando de ano para ano, com os cuidados que são tomados. Esses dados da Anvisa têm uma alta repercussão no país e inclusive o preço desses produtos acaba sendo reduzido por conta dos dados.

Como a legislação que rege os agrotóxicos tende a ser conduzida a partir de agora, com Kátia Abreu no Ministério da Agricultura?

Nós estamos preocupadíssimos. Com o atual Congresso, as perspectivas de uma desregulamentação na legislação são enormes. Ou seja, é possível que se quebre todo o marco regulatório para favorecer a entrada de agrotóxicos no Brasil. Existem mais de 17 propostas nesta direção e, com a nova configuração do Congresso, nos próximos anos essa questão será um grande desafio para a sociedade. O próprio presidente da Câmara já é um grande lobista que tem diversos interesses. Infelizmente os prognósticos não são bons: a tendência é de que se retire o papel da Anvisa e do Ibama para concentrá-los no Ministério da Agricultura, que já tem o comando do agronegócio. São propostas desse nível que poderão renascer.

Atualmente, para uma empresa conseguir um registro de liberação de um determinado agrotóxico, três órgãos devem avaliar o produto: o Ministério da Saúde, o Ministério do Meio Ambiente e a Anvisa. Provavelmente vão querer criar uma agência ou uma comissão como a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), responsável pelos transgênicos, para que a liberação dos agrotóxicos possa ser feita como é feita a liberação dos transgênicos atualmente, ou seja, concentrada num único órgão. A CTNBio é um órgão que em toda a sua história nunca negou a produção e comercialização de transgênicos.

*Entrevista original publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos.

Fonte: Opera Mundi

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