Por Adom Getachew.
Descolonize esse lugar!” “Descolonize a universidade!” “Descolonize o museu!”
Nos últimos anos, a descolonização ganhou uma nova compreensão política – dentro das fronteiras das antigas potências coloniais. Movimentos indígenas reivindicaram o manto da “descolonização” em protestos como os de Standing Rock contra o gasoduto Acesso Dakota. Estudantes da África do Sul até a Grã Bretanha marcharam com o slogan para desafiar os currículos eurocêntricos. Museus como o Museu de História Nacional em Nova Iorque e o Museu Real da África Central em Bruxelas foram forçados a confrontar sua representação dos povos africanos e indígenas colonizados.
Mas o que é a “descolonização”? O significado da palavra e o que ela demanda têm sido contestados há um século.
Depois da Primeira Guerra Mundial, os administradores coloniais europeus viam a descolonização como o processo no qual eles permitiriam que seus encargos imperiais transicionassem até uma independência seguindo o modelo dos estados europeus. Mas no meio do século 20, ativistas anticoloniais e intelectuais demandaram a independência imediata e se recusaram a modelar suas sociedades segundo os termos estabelecidos pelos imperialistas. Entre 1945 e 1975, enquanto as batalhas por independência eram vencidas na África e na Ásia, o número de membros da ONU cresceu de 51 para 144 países. Naquele período, a descolonização era principalmente política e econômica.
Enquanto mais colônias ganhavam independência, no entanto, a descolonização cultural se tornou mais significativa. A dominação política e econômica europeia coincidiu com o eurocentrismo que valorizava a civilização europeia como o ápice da conquista do homem. Tradições culturais indígenas e sistemas de conhecimento foram menosprezados tidos como ultrapassados e não civilizados. Os colonizados eram tratados como pessoas sem história. A luta contra esse comportamento foi central especialmente em colônias onde a expulsão de instituições indígenas foi mais violenta.
Na África do Sul, onde o reconhecimento com a persistência do regime colonial tomou conta da política nacional, reacenderam os últimos pedidos de descolonização em 2015 com o movimento #RhodesMustFall. Estudantes da Universidade da Cidade do Cabo atacaram a estátua do imperialista britânico Cecil Rhodes, mas viram sua remoção como somente o ato de abertura de uma luta ampla para pôr fim à supremacia branca. Com os slogans de “mais que uma estátua” e “descolonize a universidade”, estudantes pediram por transformações sociais e econômicas para desfazer hierarquias raciais que persistem na África do Sul pós-apartheid, junto com um currículo afro-centrado e ensino superior gratuito.
Agora, parcialmente surfando na onda global das mobilizações do Black Lives Matter, pedidos de descolonização varreram as ex-metrópoles imperiais europeias. Em Bristol, na Inglaterra, no mês passado, manifestantes derrubaram a estátua de Edward Colston, o diretor da Companhia Real Africana, que dominou o comércio de escravos africanos nos séculos 17 e 18. Na Bélgica, manifestantes focaram na estátuas do Rei Leopold ll, que comandou o Estado Livre do Congo (hoje República Democrática do Congo) como sua propriedade pessoal de 1885 até 1908. O Rei Phillipe ll da Bélgica recentemente expressou seu “arrependimento” pelo regime brutal de seu antecessor, que causou a morte de 10 milhões de pessoas.
O colonialismo, os manifestantes insistem, não apenas configurou o sul global. Fez a Europa e o mundo moderno. Lucros do comércio de escravos alimentaram o crescimento de cidades portuárias como Bristol, Liverpool e Londres enquanto a economia do Atlântico que a escravidão criou ajudou a alimentar a Revolução Industrial. O Rei Leopold acumulou uma riqueza vinda do Congo de mais de 1 bilhão de dólares atuais. Sua visão do Museu Real da África Central, que abriu em 1910 logo após sua morte, reproduziu uma narrativa de um atraso africano enquanto escondeu a exploração violenta dos congoleses.
Ao derrubar ou vandalizar essas estátuas, os manifestantes escancaram a narrativa nacional e forçaram uma confrontação com a história do império. Essa é uma descolonização do mundo sensorial, a ilusão de que o império era em outro lugar.
Colocar uma bandeira da República Democrática do Congo na estátua do Rei Leopold ou carregar a estátua de Colson até o mar, onde milhares de mulheres e homens escravizados perderam suas vidas, rasga as fronteiras entre passado e presente, metrópole e colônia. Insistindo na presença do passado, os manifestantes revelam o romance da Europa consigo mesma, desmascarando suas conquistas políticas e econômicas como produto da escravidão e da exploração colonial.
Esse reconhecimento histórico é somente o primeiro passo. Reconhecer que a história colonial molda as atuais desigualdades e hierarquias que embasam o mundo, prepara o terreno para o próximo passo: reparação e compensação.
A reparação não será algo feito uma única vez. A comunidade caribenha já exigiu reparações pela escravidão e pelo genocídio indígena da Grã-Bretanha, França, Espanha e Holanda. Embora haja pouca movimentação em relação aos estados, a Universidade de Glasgow concordou, no ano passado, em pagar 25 milhões de dólares para pesquisas e desenvolvimento com a Universidade das Índias Ocidentais em reconhecimento pelos benefícios que a universidade usufrui por causa dos lucros do comércio transatlântico de escravos.
Os Herero da Namíbia, que sofreram o primeiro genocídio do século 20 nas mãos da Alemanha, também pediram por reparação. Seus esforços seguiram os pedidos exitosos por reparações feitos pelos Mau Mau do Quênia, que foram torturados durante a brutal repressão britânica ao seu movimento de independência em meados do século 20. Em outros contextos, ativistas vêm focando na devolução de artefatos saqueados que enchem os grandes museus europeus. A França, por exemplo, se comprometeu a devolver 26 obras de arte roubadas ao Benin.
Mas as reparações não deveriam focar somente nas ex-colônias e nas suas relações com estados europeus. O colonialismo vive dentro das fronteiras europeias, e a própria Europa deve ser descolonizada. Os europeus negros vivenciam a discriminação na educação e no emprego, são estereotipados por causa de sua raça e sofrem violências racistas nas mãos de policiais e compatriotas.
A União Europeia recentemente declarou que “Vidas Negras Importam”, mas suas políticas negam direitos iguais aos negros, os encarceram em campos e os afogam no Mediterrâneo. O imperialismo além mar já foi tido como uma necessidade política para os estados europeus; hoje, a política anti-imigração cumpre o mesmo papel. Em todo caso, legisladores europeus negam responsabilidade pela miséria que causam.
Reparação e compensação são devidas tanto aos europeus negros quanto às ex-colônias europeias. Significaria tratar os europeus negros e todos os migrantes do mundo colonizado como participantes iguais da sociedade europeia. E essa forma de reparação não pode ser percebida como uma transação excepcional. Ao invés, deve ser a base da construção de uma Europa inclusiva e igualitária.
Essa não é uma tarefa fácil e não vai acontecer da noite para o dia. Mas devemos nos lembrar que apenas 80 anos atrás, o comando colonial parecia ser um recurso estável e quase permanente da política internacional. Em apenas três décadas, nacionalistas anticoloniais transformaram o mapa mundial.
A luta pela igualdade racial na Europa é uma luta por uma condição verdadeiramente pós-colonial, e sua criação está subentendida a cada estátua derrubada. Se o colonialismo fez o mundo moderno, a descolonização não pode ser completa até que o mundo – incluindo a Europa – seja refeito.
*Publicado originalmente em ‘The New York Times‘ | Tradução de Isabela Palhares
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