Por Daniella Cambaúva e Murilo Machado
Duas décadas depois
Assunção – Apesar do característico sol intenso de Assunção, é difícil distinguir ao certo se é dia ou noite naquela cela. É possível enxergar marcas de terra nas paredes, deixadas pela poeira que sobe do chão batido. Também compõem o cenário as grades, uma cadeira, um rádio, um par de sapatos e uma banheira estreita. O que se nota de longe é a presença de uma pessoa atirada no chão, encurvada, acorrentada pelos pés. “É um boneco, uma tentativa de recriar o cenário original”, avisa o guia Martín Ibarrola.
Atualmente, aquela cela funciona apenas como uma parte do Museu das Memórias, mas, até 1989, era uma das salas de tortura e prisão da Direção Nacional de Assuntos Técnicos (Dina), centro de detenção clandestino criado em 1956 – “A Técnica”, como foi apelidado. “Quando o rádio estava ligado alto, os presos já sabiam que um deles seria torturado”, explica Ibarrola. Se a cena é estarrecedora para quem visita o lugar pela primeira vez, para aqueles que passaram por ali durante os anos da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-89) e hoje voltam para visitar o museu, o local é como um “hotel cinco estrelas”, relata o guia.
Ao lado daquela cela, há outra na qual ficavam geralmente oito presos. Por ali, passaram ao todo dez mil pessoas, das quais três mil estão desaparecidas. Nos demais cômodos do prédio, hoje usado exclusivamente como museu, há informações sobre outros lugares em que funcionaram centros de detenção, sobre a Operação Condor e sobre técnicas de tortura. Foi possível, inclusive, encontrar alguns dos objetos, como a “picana elétrica”, usada para dar choques. Em um dos corredores, há uma seção com pertences doados, que representam alguma ligação das vítimas com o lugar. Há malas usadas por pessoas que partiram para o exílio e bonecas que acompanharam crianças na prisão. Olhando para o conjunto, Martín Ibarra conta a história de ex-presos e, em alguns casos, de famílias inteiras que ficaram presas ali e depois voltaram para visitar: “Aprendi muito com os testemunhos horríveis neste lugar ao longo dos sete anos em que estou aqui”.
No Paraguai, um projeto desenvolvido desde 2012 visa a transformar 51 antigos espaços da repressão em museus, como foi feito com a “Técnica”, incluindo centros de detenção clandestina, valas comuns e lugares onde aconteceram atentados. “É um período para o qual ninguém quer voltar. Por isso esses lugares são importantes”, avalia o jornalista Antonio Pecci, um dos autores do livro En los sótanos de los generales (No sótão dos generais).
Pecci, assim como Martin Almada, quem descobriu os “Arquivos do Terror”, foi vítima do regime militar. “Fui preso entre as décadas de 60 e 70, de uma hora a um ano, em nove oportunidades. E bom… Estive em lugares diferentes. A maioria das vezes era investigação. Era um lugar onde havia um letreiro, como dizia Dante, ‘deixe toda a esperança aquele que entrar aqui’. Havia muita tortura, muita gente saía morta. Eram torturas brutais. Eu não fui submetido às mais brutais, como a pileta elétrica. Estive a um ponto… Mas não. Sofri outros tipos de torturas físicas e psicológicas”, relatou.
Segundo ele, o assunto ditadura e busca pelos desaparecidos foi impulsionado no país por conta da Comisão de Verdade e Justiça (CVJ) paraguaia, fomentada pela sociedade civil. A CVJ funcionou entre 2004 e 2008 e teve nove membros, dentre os quais sete eram civis, um do Executivo e outro do Legislativo. Por fim, os trabalhos estimaram que 18.772 pessoas foram vítimas de tortura durante o regime de Stroessner, 28.077 sofreram violações de direitos humanos e 33 mil foram ao exílio. Há registro de 230 menores presos, mais 20 bebês nascidos nas prisões.
A comissão estimou ainda que 2.800 funcionários do Estado, entre policiais e militares, foram responsáveis pela violação de direitos humanos. No Paraguai, não há lei de anistia, mas também não houve uma ação por parte do Estado para julgar os agentes da repressão identificados pela Comissão da Verdade e Justiça. Alguns deles estão presos, mas outros não foram julgados.
Na opinião de Pecci, esse processo de investigação é complexo e “precisa haver um movimento mais intenso por parte dessas 100 mil vítimas diretas ou indiretas” para haver continuidade. “Precisa ter manifestação nas ruas, pedidos para os políticos importantes, pedidos para o Congresso, que foi o que fizemos para criar a Comissão de Verdade e Justiça. Não foi nada fácil, com um governo Colorado e um Parlamento em que o partido Colorado tinha muito poder”, lembra.
Algumas tarefas são urgentes, segundo o jornalista. Uma delas é produzir mais pesquisas sobre o período, além de indenizar e assistir as vítimas. “As vítimas, em geral, precisam ter reparação econômica, social e pública. Continuam sendo vistas ainda como subversivas, opositoras ou como alguém que ‘algo de culpa devem ter”, argumentou. Recentemente, foram encontrados restos humanos de 23 pessoas no Paraguai, mas eles ainda não foram identificados por falta de recursos do Estado. O valor necessário para que uma equipe faça esse trabalho foi estimado em US$ 130 mil. O ideal, segundo Pecci, é criar um banco de identificação genética de desaparecidos entre 1954-1989. “Muita gente vai morrer sem ter nem ideia de onde estão os restos de seus familiares desaparecidos”, lamentou.
O general do Partido Liberal Andrés Rodríguez Pedotti, que deu um golpe no governo Stroessner em fevereiro de 1989, era consogro do então presidente. Até sua morte, Stroessner nunca foi julgado. Alguns dias depois de consolidada a queda da ditadura, o novo governo optou por enviá-lo ao exílio, em Brasília, onde viveu até morrer, em 2006. Em 1993, Pedotti entregava o cargo nas mãos de Juan Carlos Wasmosy Monti, do Partido Colorado, escolhido na primeira eleição depois do regime militar.
Fonte: Rede Brasil Atual