No programa Roda Viva exibido pela TV Cultura na última segunda-feira, o cardeal- arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, defendeu o Estado laico. Segundo dom Odilo, o exercício republicano da Justiça não deve se nortear por normas religiosas. Quando a Igreja Católica se opõe ou dá seu apoio a alguma lei ou política pública apenas exerce um direito garantido aos “sujeitos sociais” em geral, individuais ou coletivos, numa democracia, disse o cardeal.
Muitos telespectadores que identificaram equilíbrio e sensatez nas primeiras respostas de dom Odilo provavelmente se decepcionaram quando o sacerdote passou a defender as posições da Igreja em relação a questões legais específicas. Ao endossar a oposição oficial do Vaticano aos métodos contraceptivos, inclusive quando está em jogo a prevenção de doenças graves – como no caso do uso da camisinha no combate à Aids -, o cardeal repisou os caminhos de uma sensibilidade moral pelos quais a doutrina da Igreja se afasta de grande parte de seus fiéis. Mas, se a moralidade oficial católica soa anacrônica e dogmática no que tange à camisinha, no tocante à discussão sobre o direito ao aborto em casos especiais, como nos de anencefalia em que os fetos simplesmente não têm cérebro, a posição da igreja chega a ser aberrante.
No papel de escudeiro da doutrinação dita “conservadora” do papa Bento XVI, dom Odilo se contrapôs à descriminalização de abordo de anencefálicos, questão que deverá ser retomada, em breve, pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo ele, portanto, a mulher que carrega em seu útero um feto com essa má-formação – que, se nascer com o coração batendo, terá apenas uma breve vida vegetativa – deve ser obrigada por lei a viver todo o processo da gestação e a parir seu bebê sem cérebro.
Qual a justificativa apresentada pela autoridade cristã para considerar legítima a imposição de tal sofrimento e dos riscos à saúde materna envolvidos nessas gestações – ou, caso a mulher faça o aborto a revelia da lei, a imposição do estigma do crime e o enfrentamento de processo e punição judiciais – a uma pessoa que já vivencia uma situação traumática? O feto anencefálico também é um ser humano, responde dom Odilo. A sociedade deve proteger sua vida, por mais precária que seja, como a de qualquer pessoa. Senão, de acordo com o cardeal, abriríamos uma brecha para a relativização dos direitos humanos universais e baixaríamos a guarda diante do risco de novas eugenias.
A recusa de identificar diferenças fundamentais entre uma vida propriamente humana – que requer um cérebro – e a existência vegetativa de um feto anencefálico é compatível com o pensamento dogmático, que só enxerga em preto e branco, sem tons de cinza, dispensa investigação e ignora evidências. E a imposição de um dogma às outras pessoas, mesmo as não católicas, que numa democracia deveriam ser livres para acolhê-lo ou rejeitá-lo, eleva os defensores da criminalização desse tipo de aborto a outro patamar na escala do obscurantismo, o dos fundamentalistas.
Mas há ainda outro recanto obscuro nesse pensamento doutrinário – uma incoerência que revela, provavelmente, suas motivações psicológicas. Senão vejamos. Se realmente crê que o batimento cardíaco e a vida celular de um corpo que não tem nem nunca desenvolverá um cérebro minimante funcional são suficientes para identificar nesse corpo uma vida humana a ser protegida como qualquer outra, a Igreja fica obrigada a rejeitar a legitimidade da chamada “morte cerebral”, critério médico internacionalmente reconhecido como o mais confiável para a constatação do óbito. A vida anencefálica não pode ser considerada mais humana do que aquela.
ainda presente em um corpo cujo cérebro parou de funcionar. De acordo com a lógica dogmática que sustenta a defesa da criminalização do aborto de fetos anencefálicos, portanto, as leis e práticas internacionais referentes a transplantes de órgãos deveriam ser consideradas também intoleráveis e criminosas, comparáveis ao assassinato, como, na visão da Igreja, devem ser entendidos a eutanásia e o próprio aborto. Mesmo levantando certas dúvidas e ressalvas quanto à constatação do óbito pelos critérios da morte cerebral, entretanto, a Igreja Católica aceita os transplantes de órgãos com base nessa definição médica da morte. O que explicaria essa contradição? Arrisco uma explicação, que pode ser resumida numa palavra central para o sistema de pensamento e a atuação da Igreja. Sexo.
Como se sabe, a moral sexual, assunto que não mereceu a atenção do próprio Cristo, como se pode constatar nos Evangelhos, é uma obsessão milenar para a Igreja Católica.
A ausência do componente sexual na questão dos transplantes abre espaço para uma sensata flexibilização por parte da Igreja, que se permite nortear pela compaixão para com os receptores de órgãos. Já as grávidas de anencefálicos, segundo a tradicional lógica católica que associa sexo, culpa e punição – algo que atualmente não pode ser admitido sem eufemismos por clérigos cordiais como dom Odilo – não merecem a mesma deferência.
Por trás da dureza dos dogmas e da frouxidão dos malabarismos verbais com que os representantes da Igreja de Roma tentam justificar sua condenação ao aborto de anencefálicos enquanto aceitam os transplantes de órgãos, mal se esconde uma velha sanha punitiva: a mulher impura deve arcar com o preço do seu pecado.
Diante dessas evidências, os defensores da doutrina católica oficial podem escolher entre duas opões coerentes: ampliar sua cruzada lutando pela criminalização de transplantes de órgãos de pacientes em estado de morte cerebral, mesmo que isso resulte em milhares de mortes, ou aceitar que a complexidade ética e biológica desses temas exige a admissão da existência de regiões cinzentas entre o preto e o branco que demandam análise, discussão e um exercício cuidadoso de discernimento que leve em consideração os importantes direitos e valores em jogo. E, se essa escolha gerar uma angústia imobilizadora, me permitam sugerir uma terceira via, a do divã.
Fonte: Terra.