Dois promotores do Ministério Público catarinense defendem a manutenção de uma sociedade homofóbica e machista

Escola Sem Partido

Por Giselle Zambiazzi, para Desacato.info.

Dois promotores de justiça de Santa Catarina têm atuado de forma sistemática na construção de uma sociedade homofóbica, acrítica e do ódio. Um deles tem sua imagem colada ao projeto inconstitucional Escola Sem Partido em Jaraguá do Sul, no Vale do Itajaí. Rafael Meira Luz dá palestras em diferentes cidades com um discurso difuso que, no final das contas, planta a ideia de que professores, professoras e “esquerdistas” estão querendo confundir as crianças e destruir famílias com o que ele chama de “ideologia de gênero”.

Já Henrique Limongi, de Florianópolis, usa sua caneta para destruir famílias propriamente ao tentar anular ou impedir casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Nos últimos cinco anos, foram 112 casos. Um dos mais recentes aconteceu em junho com a engenheira civil Adrieli Roberta Nunes Schons e a médica Anelise Alves Nunes Schons, que casaram em dezembro de 2017 e agora enfrentam a tentativa de impugnação da união por parte de Limongi.

Direitos Humanos

As palestras de Rafael Meira Luz sempre acontecem em um auditório de alguma paróquia. No dia 19 de junho foi a vez da Paróquia São Luiz Gonzaga, em Brusque, recebê-lo para ouvir sobre o tema “Por que dizer não à ideologia de gênero”. Sim. Ouvir, já que diálogo não existe nos seus eventos.

A terça-feira estava fria, garoava e a palestra aconteceu às 19h30min. Auditório lotado. Pré-candidatos às próximas eleições estaduais se fizeram presentes e alguns deles puxaram palmas entusiasmadas quando o promotor da Vara da Infância começou a misturar conceitos de marxismo e gênero distorcendo a seu gosto ideias já consagradas pela ciência e pela academia.

Tentando fundamentar a argumentação com pensadores renomados como Horkheimer, Foucault e Derrida, ao mesmo tempo em que citava autoras feministas como Firestone para logo em seguida fazer referência à Bíblia, a fala do promotor era uma espécie de mistura de descontextualização proposital com pitadas de morde-e-assopra. Em linhas gerais, ele usa tudo isso para afirmar que Marx e os comunistas querem destruir a igreja e a família, já que família seria um conceito burguês e os marxistas, por sua vez, são contra a burguesia. Claro, afinal de contas, trabalhadores não têm família e nem estão preocupados com ela, certo?

O promotor, que se vangloria de um mestrado feito na Espanha em Direitos Humanos, diz que não é contra os homossexuais, mas faz questão de enfatizar que a única família reconhecida por Deus é aquela formada por um homem e uma mulher. E mais: que lugar de mulher é em casa cuidando dos filhos e dócil ao marido. Para ele, por ser mais carinhosa, a mulher é fundamental dentro de casa e é importante que elas sejam “livres para exercer a maternidade”, coisa que na sua visão é impedida pelo feminismo.

Escola Sem Partido

O promotor começou a ganhar mais notoriedade dentro e fora de Jaraguá do Sul quando iniciaram as discussões sobre o projeto Escola Sem Partido na sua cidade. Em março deste ano, a Câmara jaraguaense promulgou uma lei que proíbe o ensino de “ideologia de gênero” nas escolas. Embora manifestamente favorável à ideia, o prefeito Antidio Lunelli (MDB) seguiu as orientações do departamento jurídico – afinal, esse tipo de lei é reconhecidamente inconstitucional – e preferiu não sancionar nem vetar, deixando a promulgação a cargo da Câmara mesmo.

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O promotor, que mantém seu discurso de isenção e a favor do debate democrático sobre o assunto ao mesmo tempo em que afirma que professores têm que se limitar à cátedra e não podem emitir opiniões em sala de aula, foi pessoalmente até o gabinete de Lunelli acompanhado de um grupo de pais chamado “Por uma Escola Sem Partido” para pressionar o Executivo local. Na ocasião, ele declarou à imprensa que “a esquerda não sabe debater” e admitiu “pessoalmente simpatizar” com esse tipo de projeto.

Essa não foi a primeira vez em que Meira Luz usou seu cargo para atuar politicamente. No início de 2017, afirmou publicamente que ele mesmo processaria o prefeito de Jaraguá do Sul se o Executivo não tomasse uma providência em relação à greve dos servidores que ocorria naquele momento.

Debate

Embora o promotor apele constantemente para a necessidade do debate e do estudo, suas palestras não têm espaço para a troca de ideias e nem para referências que não sejam as dele. No evento em Brusque, o tempo para perguntas foi quase nulo. Em Blumenau, a pedagoga e servidora municipal Marilei Teresinha Schreiner, que milita em um coletivo feminista, esteve na palestra de Meira Luz. Ela integrava o grupo de mulheres que tentou fazer o contraponto, mas não houve diálogo.

Uma delas é bióloga e quis apresentar argumentos científicos sobre a diversidade de arranjos e comportamentos que existem na natureza. “Quando ela levantou a mão, ele ficou entusiasmado porque alguém estava querendo interagir, mas, quando percebeu qual era o tipo de interação, ele ficou muito contrariado e disse que foi convidado para dar uma palestra e não para participar de um diálogo”, conta Marilei.

Em Jaraguá do Sul, o Coletivo União Nacional LGBT (UNA) vem tentando combater o discurso do promotor através debates sobre a questão de gênero. Robson Girardello, psicólogo jaraguaense e membro da direção estadual da UNA, salienta que a expressão “ideologia de gênero”, usada pelo promotor, se refere a algo que sequer existe e tem o propósito de confundir a sociedade. Seus posicionamentos batem de frente com orientações dos ministérios da Educação e da Saúde que incentivam ações para discussão sobre sexualidade, gênero, papel da mulher, racismo, drogas e todo tipo de prevenção dentro das escolas. “Há um número enorme de autores que discutem cientificamente a sexualidade humana e os professores sabem falar sobre isso com a linguagem apropriada para cada faixa etária”, aponta Girardello.

Mordaça e prejuízo

A desculpa de Meira Luz para esconder a inconstitucionalidade do Escola Sem Partido é a de que a escola tem que discutir seus conteúdos com pais e mães, mas ele mesmo não leva em conta que essa discussão já acontece há décadas através de consultas públicas, audiências, fóruns, seminários e grupos de trabalho em ministérios e outros órgãos. Leis federais como a Lei de Diretrizes e Bases, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a própria Constituição Federal já norteiam todas essas questões nas quais o Escola Sem Partido quer interferir de maneira arbitrária.

Em contrapartida, leis da mordaça normalmente passam pelas câmaras municipais sem qualquer discussão com a população e muito menos com os profissionais da educação, como foram os casos de Brusque e Jaraguá do Sul.

Para a professora de Sociologia Kênia Gaedtke, que trabalha no IFSC de Jaraguá do Sul, o Escola Sem Partido está umbilicalmente ligado ao projeto de congelamento nos investimentos públicos e privatização do sistema de ensino brasileiro. “Isso cria uma obsessão em relação à questão de gênero e diz que a escola estaria ensinando nossos filhos a serem gays e comunistas. Coloca a escola e os professores como inimigos em potencial. Isso cria um conflito na sociedade e estimula um medo nas famílias. Instaurado esse medo, as famílias vão preferir pagar uma escola particular”, conclui.

Para Gilson Moura Henrique Júnior, mestrando em História pela Universidade Federal de Pelotas (RS), o projeto Escola Sem Partido é parte de uma agenda fascista ultraconservadora. “Ela não está aí à toa. Engloba grupamentos de pessoas relacionadas com Bolsonaro, Rodrigo Constantino, etc. e que tem um aspecto ultraliberal na economia, desmonte do Estado, de proteção social, de desvio de recursos públicos apenas para o enriquecimento dos capitalistas e que faz parte de um ataque a qualquer tipo de educação crítica que dificulte essa agenda ultraliberal”, avalia. “A ideia do Escola Sem Partido é a satanização do professor e do conhecimento criando uma escola que não faz educação, apenas treina e que evite qualquer tipo de confronto com essa agenda ultraliberal destruindo totalmente qualquer autonomia do professor”, conclui.

Essa leitura justifica a preocupação de Kênia com o exercício da sua profissão. Em Jaraguá do Sul, a promulgação da lei da mordaça mal saiu e Meira Luz imediatamente comentou na imprensa local que alguns professores já estariam sendo investigados por conduta ilegal. “Uma fala em tom de ameaça, mas sem deixar claro a qual escola ele se referia, qual professor e o que realmente aconteceu. Falas que não têm muitos fatos concretos, mais para colocar terror na população”, afirma Kênia.

Para Marilei, que sempre trabalhou com crianças e adolescentes, o Escola Sem Partido representa um prejuízo para toda a sociedade. “Eu conheço os direitos da criança e do adolescente, o ECA, o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. O promotor fala muito sobre o direito da criança de viver em um lar tranquilo e frequentar uma escola que respeite seus princípios. Questiono isso. A criança que convive em uma família homoafetiva também tem o direito de ter sua vivência comunitária preservada e não sofrer assédio na escola”, observa. “Ele está defendendo o direito de um segmento da sociedade, mas nem esse está preservado porque as crianças têm o direito de conhecer a humanidade como ela de fato é. Todos os direitos são violados quando a gente retira a discussão de gênero da escola”, conclui.

E para além da sexualidade, a questão de gênero envolve inúmeros outros fatores. “Temos ainda os casais heterossexuais que reproduzem relacionamentos violentos e se eu não posso discutir gênero na escola, eu também tenho limitações para fazer uma abordagem em relação a uma criança que chega chorosa na escola porque a mãe apanhou”, pontua Marilei. Posicionamento muito parecido com o de Kênia. “Quando ficam só batendo na tecla da orientação sexual e da ideologia de gênero, mascaram o fato de que quando tratamos de gênero na escola, o principal ponto que queremos discutir não é orientação, mas o machismo, o patriarcado e a violência”, esclarece.

Resistência

O próprio promotor Rafael Meira Luz admitiu durante a palestra proferida em Brusque que a corregedoria do Ministério Público já lhe chamou a atenção. No entanto, ele segue com seus eventos machistas e homofóbicas pelo estado sempre a convite de algum padre e continua defendendo o projeto inconstitucional Escola Sem Partido por onde passa.

Embora nas cidades menores o promotor não encontre muita resistência, existem movimentos em Santa Catarina que objetivam combater ideias como as dele. Tramita na Assembleia Legislativa desde agosto do ano passado o projeto Escola Sem Mordaça, que busca garantir o direito à pluralidade no sistema de ensino catarinense. Há ainda vários movimentos organizados como o Professores Contra o Escola Sem Partido e a Frente Por Uma Escola Sem Mordaça, todos com articulação nacional. Além, é claro, dos posicionamentos de sindicatos, coletivos e outros movimentos sociais.

Talvez só uma escola sem mordaça contribua para que não surjam mais promotores como Henrique Limongi, que adora uma mídia desde 2013, quando começou com a sua perseguição a casais homoafetivos na justiça. Apesar das críticas da OAB e de já ter sido alvo do Conselho Nacional do Ministério Público, ele segue com sua conduta. Para tentar barrá-lo, o PSOL de Florianópolis protocolou, neste mês de junho, uma representação contra o servidor por improbidade administrativa.

Giselle Zambiazzi é jornalista, ativista política e militante pela neurodiversidade. Mora em Brusque/SC.

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