Por Danilo Giovanaz.
Entre domingo e segunda-feira, 17 e 18 de setembro, duas pessoas em situação de rua foram mortas em Curitiba. Antônio Agenor Martins, conhecido como “Favela”, foi assassinado a tijoladas no bairro Cabral. No dia seguinte, um homem não identificado morreu no Bacacheri após ser atingido no pescoço – o ferimento pode ter sido causado por faca ou arma de fogo.
Coordenador do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) no estado, Leonildo José Monteiro Filho afirma que existe um processo sistemático de culpabilização das vítimas. “Por exemplo, as autoridades dizem que um sujeito morreu queimado porque tinha uma vela do lado. Se morreu com uma tijolada, dão a entender que ele mesmo jogou um tijolo na cabeça”, lamenta. “Em vez de reconhecer que esse sujeito precisa de uma política intersetorial, é muito mais fácil jogar parte da sociedade contra essas pessoas”, critica.
Outro lado
Não há um trabalho conjunto entre a Fundação de Ação Social (FAS) e a Secretaria de Segurança Pública para prevenir esse tipo de ocorrência. “É uma coisa bem separada. O nosso trabalho de abordagem visa à questão social, ao atendimento”, ressalta Maria Alice Erthal, diretora de atenção à população em situação de rua da FAS.
“Existe uma diferença entre morte violenta e natural”, pondera o delegado Fábio Amaro, da Divisão de Homicídios, indicado como fonte pela Secretaria de Segurança Pública. Segundo o delegado, foram treze assassinatos de pessoas em situação de rua em Curitiba em 2017, dos quais sete com autoria identificada.
A FAS é responsável pelo acolhimento provisório à noite, quando supostamente ocorre a maior parte dos crimes. São 240 vagas para atender 1800 cidadãos.
Moradia
Para o antropólogo Tomás Melo, coordenador do Instituto Nacional de Direitos Humanos da População em Situação de Rua (INRua), o que une as vítimas é uma violação do direito à moradia. “Enquanto tentam aumentar o número de vagas de acolhimento provisório, não se produz uma porta de saída para as pessoas em situação de rua. Se a gente não encarar com seriedade esse fato, a probabilidade desses casos [assassinatos] aumentarem é muito grande”, alerta.
“Quando se trata de pensar em soluções ou alternativas, eu não consigo pensar em outra coisa senão em uma rede, política e intersetorial, garantidora dos direitos da pessoa em situação de rua”, acrescenta Tomás. “E a porta de saída são formas de moradia adequadas: habitações de interesse social, locações sociais nos parques públicos, enfrentar essa questão da especulação imobiliária”.
Segundo o coordenador do INRua, os problemas que se verificam em Curitiba são semelhantes aos de quase todas as metrópoles do planeta: “Existe uma incapacidade social de grandes proporções, na maioria das cidades, de garantir que as pessoas tenham acesso à moradia como um direito social, público”.
Dados de 2016 da Fundação João Pinheiro mostram que a região metropolitana de Curitiba responde por um terço do déficit habitacional do Paraná, o que equivale a cerca de 84 mil domicílios. Na soma dos estados do Brasil, o número ultrapassa os seis milhões. De acordo com os dados mais recentes do com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 58.327 imóveis vazios em Curitiba, somando os domicílios vagos e os de uso ocasional.
Caso análogo
“O maior problema é que, numa praça, junta todo tipo de pessoa”, analisa Erthal. “Tem tráfico de drogas, prostituição… é uma coisa muito complicada. Estamos numa tentativa de parcerias para poder encaminhar essas pessoas para unidades terapêuticas, porque é a única coisa que vai resolver. E, em seguida, oferecer trabalhos, cursos. Quando a pessoa quer voltar a sua cidade, nós oferecemos a passagem de volta. Essa é a nossa proposta. Mas, sem tratamento, a gente não vai conseguir”.
As pessoas em situação de rua estão sujeitas a vulnerabilidade, riscos à segurança, à saúde e à segurança alimentar. Porém, segundo os grupos e as organizações que representam essa população, não se resolve o problema de um dia para o outro. Muito menos, com truculência e desrespeito aos direitos humanos.
São Paulo, a maior metrópole brasileira, enfrenta esse dilema há quase 20 anos. A área conhecida como “Cracolândia”, no bairro Santa Efigênia, tornou-se uma referência para usuários de crack e pessoas em situação de rua. No primeiro semestre, o prefeito João Dória (PSDB) autorizou uma ação policial para “revitalizar” a região central da cidade. Como resultado, houve violência e brutalidade, os antigos habitantes se dispersaram para outras praças públicas, mas nada foi resolvido.
Após o fracasso da ação policial, a proposta do prefeito é internar compulsoriamente os usuários de drogas, apesar das evidências de que essa saída também não é eficaz. Tomás Melo é taxativo: “Hoje, o que existe é um processo de higienismo. E as respostas que tem se buscado já se mostraram inefetivas, nesse sentido: não adianta espalhar as pessoas em situação de rua. Não adianta insistir para que elas saiam de determinado espaço público para ir para outro”.
“Também não adianta internar as pessoas compulsoriamente”, prossegue o antropólogo. “Como você vai fazer um tratamento de saúde ou uma reorganização da vida pessoal contra a vontade das pessoas? A gente está tratando de pessoas adultas, e é necessário conversar com elas, pensar que políticas são mais adequadas às suas necessidades. Caso contrário, fica nesse empurra-empurra, que não promete qualquer sinal de melhoria, e é dessa forma que as coisas têm sido feitas hoje no município [Curitiba]”.
Críticas à gestão Greca
A população em situação de rua foi objeto de uma das maiores polêmica nas eleições para a Prefeitura de Curitiba em 2016. Durante um debate, o então candidato Rafael Greca (PMN) declarou: “A primeira vez que tentei carregar um pobre e pôr dentro do meu carro, eu vomitei, por causa do cheiro”. Na semana seguinte, ele pediu desculpas e, após uma disputa acirrada, acabou eleito em segundo turno.
Além do acolhimento provisório com 240 vagas e dos Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros POP) abertos durante o dia, na gestão Greca, a FAS possui um veículo para distribuição de alimentos à noite. O atendimento nos Centros POP, segundo a Fundação, inclui cuidados de higiene e alimentação, atendimento de saúde, cadastro e entrevista para identificação das necessidades de cada cidadão e encaminhamentos para a rede de proteção social.
O coordenador do MNPR no estado, Leonildo José Monteiro Filho, discorda das diretrizes da atual gestão da FAS e da Prefeitura, de maneira geral. “Ele [Greca] acredita que a gestão que deve ser feita é a mesma que ele fez 30 anos atrás”, argumenta, em referência ao mandato anterior do prefeito. “Sempre passa a imagem de que são bandidos os que estão na rua, ou que são todos usuários de álcool e drogas. E isso acaba provocando a sociedade da classe média alta, que acaba saindo e produzindo uma violência gratuita. [O discurso é] mais ou menos assim, ‘se o sujeito esta na rua, ele precisa morrer mesmo’; ‘ele é culpado de estar na rua’. Infelizmente, Curitiba é hoje uma cidade perversa, uma cidade que extermina mesmo”.
Tomás Melo afirma que o que há “são tentativas de institucionalização do voluntariado, das pessoas que entregam comida. Mas o que a gente precisa é de segurança alimentar, de formas públicas de acesso à rede de políticas públicas”.
Não é de hoje
Apesar das fragilidades apontadas na gestão Greca, os números indicam que as violações de direitos contra a população em situação de rua são anteriores a 1º de janeiro de 2017.
O MNPR no Paraná solicitou ao Núcleo de Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua do Ministério Público do Paraná (MP/PR) um levantamento das ocorrências registradas no ano passado. Foram 41 casos de crimes violentos, a maioria em Curitiba: vinte homicídios, onze agressões, oito denúncias de negligência por parte de servidores e serviços de atendimento e sete mortes sem causa identificada. Também houve seis casos de morte por hipotermia e outras seis tentativas de homicídio.
Fonte: Brasil de Fato