Toda a obra de ficção é catártica.
(Ao menos para) Ernesto Sabato
A última terça-feira, 30 de abril, marcou o segundo aniversário de morte de um dos maiores mestres da literatura latino-americana, o argentino Ernesto Sábato. O autor de Sobre Heróis e Tumbas nasceu em 1911 e morreu em 2011, a menos de dois meses de tornar-se centenário. Vista em perspectiva, a trajetória de Sabato – brilhante, desigual e surpreendente – não está nada longe de seus personagens tortuosos. Jogador de futebol na juventude, comunista, físico de grande futuro, súbita desistência da carreira científica, ficcionista, artista plástico, equívoco e espetacular correção de rumos frente à ditadura argentina, o que não fez Sabato?
Aos 22 anos, estudante na Faculdade de Ciências Físico-Matemáticas de La Plata, foi um dos fundadores o Grupo Insurrexit, de tendência comunista, que atuava na reforma da universidade. Ainda no mesmo ano de 1933, foi eleito Secretário Geral da Juventude Comunista e conheceu Matilde Kusminsky Richter, uma estudante de 17 anos que abandonou a casa de seus pais a fim de viver com ele.
Quando jovem, Sábato foi um promissor físico. Aos 25 anos, trabalhava no Laboratório Curie de Paris, realizando estudos sobre radiação atômica, e um ano depois, já estava no renomado MIT (Massachusetts Institute of Technology) nos EUA. Trocou Paris pelos Estados Unidos antes do início da Segunda Guerra Mundial. Em 1940, retornou à Argentina para ser professor na Universidade de Buenos Aires e, em 1943, em crise existencial — ele cita que via “um vazio de sentido” naquilo que fazia — , desistiu das ciências exatas pela literatura e pintura.
Os romances e ensaios de Sábato não traem o cientista que ele fora, nem o humanista que sempre demonstrou ser. O poeta, romancista e ensaísta Fernando Monteiro chama-o com toda a razão de “o último dos renascentistas”. Dotado de uma vasta cultura, escreveu sobre os mais variados assuntos como se deles tudo soubesse – e parecia sabê-lo. Politicamente, causou espanto por ter sido um anti-stalinista de primeira hora. Sua posição, mais facetada e complexa a que a do comum dos militantes, fez com que fosse atacado como imperialista pela esquerda e como comunista pela direita. “Não vou ser complacente com o stalinismo e o que ele representa, não sou comunista de salão”, disse na época. Também o intelectual não traía a paixão mais chã pelo futebol – ele era um interessado hincha do Estudiantes de Plata – e pela música popular. Na música popular, há uma história recente contada pelo grande compositor e músico sérvio Goran Bregovic numa entrevista ao El Pais.
Disse Bregovic: “Ao chegar a meu hotel em Buenos Aires, me deram um pacote da parte de Ernesto Sabato, escritor que conhecia muito bem. Ele continha sua obra-prima Sobre Heróis e Tumbas, além de uma carta em que me pedia desculpas por não poder ir ao concerto em função da idade. Me explicava que minha música o havia salvado em momentos de depressão. Aquilo era incrível. Quando eu cumpria o serviço militar em Niš, na época do comunismo da Iugoslávia, roubei um exemplar deste livro do quartel. Era um romance extraordinário! Eu tinha o livro na biblioteca de minha casa em Sarajevo. Com a guerra perdi tudo, inclusive a biblioteca. Você pode começar uma nova vida, mas não pode começar duas vezes uma biblioteca”.
Mas Sábato também cometeu erros incríveis: levado por seu ódio ao peronismo, dois meses após o golpe militar de 1976, participou de animado convescote com Jorge Rafael Videla, representantes religiosos e Jorge Luis Borges. Sabato elogiou a cultura de Videla, a quem tomou por um líder moderado. Escritor à antiga, Sabato manteve sempre uma independência que não levava em conta quem eram os beneficiários ou as vítimas de suas opiniões.
Porém, quando deu-se conta de onde tinha embarcado, retirou imediatamente seu apoio e, após o final da ditadura, colocando-se a 180 graus da posição inicial, tornou-se o presidente da Conadep (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) que teve por objetivo investigar as graves e reiteradas violações aos direitos humanos durante o Terrorismo de Estado entre 1976 e 1983. Sabato foi o responsável por reunir o testemunho e a documentação de 8960 desaparecimentos, assim como da existência de 340 centros de detenção e tortura. A Comissão recebeu milhares de declarações e depoimentos, verificando in loco a existência de centenas de locais de tortura e prisão em todo o país. Foi este o instrumento que permitiu o início dos processos e a condenação dos responsáveis máximos das juntas militares, começando justamente por Jorge Rafael Videla. Foi uma correção e tanto de rumo.
Sabato não foi um escritor prolífico. Em 1945, publicou seu primeiro livro, Nós e o universo, uma série de artigos filosóficos nos quais critica a neutralidade moral da ciência e alerta sobre os processos de desumanização nas sociedades tecnológicas.
Em 1948, publicou a novela O Túnel, a qual fez com que os hofolotes se voltassem para ele a partir do entusiasmo de Albert Camus pela narrativa. Trata-se de uma curiosa história policial, narrada pelo autor de um assassinato, o artista plástico Juan Pablo Castel. Seu tema é a solidão e a incapacidade de criarmos conexões com outras pessoas. A obra termina com uma oração que diz “Senhor, livra-me de mim”. O Túnel é uma espécie de um longo desabafo — de notável fluência e eficiência — que reconstrói os fatos e os sentimentos que levaram ao crime. Castel apenas busca que alguém, “ainda que uma só pessoa”, compreenda seu ato. Logo, o leitor entende que Castel matara a “única pessoa” que poderia ouvi-lo, Maria. “Adotei a narrativa em primeira pessoa depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitiria passar a sensação da realidade externa a partir de um coração e de uma cabeça, a partir da subjetividade total…”.
Juan Pablo conta como conheceu Maria, objeto de seu desejo e de sua obsessão, em uma de suas exposições. Explica que Maria foi a única pessoa a notar uma pequena cena em um de seus quadros: a cena de uma mulher numa janela. Quando Maria revela que não viu senão ausência de esperança em sua obra e pede insistentemente que a deixe em paz, o artista é dominado por ciúmes e mata a única pessoa que se aproximou dele. O Túnel tem notável construção de personagens e pode, deve, ser filiado ao existencialismo. Albert Camus fez com que a obra fosse traduzida para o francês. O livro foi lançado pela célebre editora Gallimard e o fato, como sói acontecer na América Latina, fez com que Sabato passasse a ser imediatamente reconhecido na Argentina.
Muitos consideram Sobre Heróis e Tumbas (1961) o melhor romance latino-americano do século XX. E ele certamente é um dos melhores. Nele, a voz do narrador é absolutamente furiosa e expressionista, ou seja, a realidade é deformada a fim de expressar a natureza e o ser humano, dando total precedência aos sentimentos em relação à descrição objetiva da realidade. Trata-se de um longo e complexo romance dividido em quatro partes. Resumidamente, podemos dizer que seus fios condutores são a história (o “romance de formação”) de Martín e a decadência da família Vidal Olmos, de onde provém a extraordinária e misteriosa personagem Alejandra Vidal, pela qual Martín e os leitores imediatamente se apaixonam. Se Martín é o melancólico e apático filho de um pintor fracassado de uma mulher da rua, Alejandra é sua antítese.
Há cenas que descrevem os anos finais do primeiro governo Perón e outras do século XIX, pois a família de Alejandra, os Vidal Olmos, é histórica, tradicional, rançosa e… parece estar inexoravelmente destinada a uma descida aos infernos. Alejandra tem uma relação de amor e ódio com seu pai Fernando, que a estuprou quando criança, e de apenas ódio com sua mãe, que fazia vistas grossas ao fato. A terceira parte do livro, Informe sopre Cegos, é a mais famosa e pode ser lida separadamente. O informe pode ser chamado de “narrativa pânica e paranoica”. Fala sobre um estranho complô milenário e demoníaco, regido pela Seita Sagrada dos Cegos, que governaria o sentido do mundo e as ações dos homens. Não, não estamos mais em terreno naturalista, mas no metafórico. A história refere-se a algo mais profundo e misterioso, aninhado em seus próprios medos inerentes da humanidade.
O metrô de Buenos Aires, os túneis secretos que ligariam a Escola Nacional da cidade com a antiga aduana, outras passagens que sairiam da igreja do bairro de Belgrano para se transformarem nas incomensuráveis cavernas que levam o protagonista — que aqui já é Fernando Vidal Olmos — à sua perdição, são símbolos subjetivos da condição e dos medos do homem diante da morte, da incompreensão da vida e das dúvidas sobre o certo e o errado, o bem e o mal. Com método e rigor científicos — é um informe –, lemos um relatório de absoluto pesadelo. Os agentes são pessoas cegas — metáfora retomada anos depois por Saramago — , mas Fernando Vidal Olmos também parece sê-lo. O leitor torna-se um espectador que contempla ao mesmo tempo céu e inferno.
Sabato foi o mestre das histórias trágicas e dos personagens angustiados. Seu estilo furioso e suas muitas histórias e questionamentos — quase todos eles sem resposta — exigem grande atenção do leitor. Depois, o escritor publicou uma série de ensaios, mas somente mais um romance: Abaddón, o exterminador. Se antes havia dúvidas sobre quem venceria a partida, aqui o mal triunfa. O livro mistura ficção, realidade, considerações filosóficas e crítica. Decididamente apocalíptico, temos grande número de referências a fatos trágicos da história argentina, assim como também à Segunda Guerra Mundial, às bombas de Hiroxima e Nagasaki e à Guerra do Vietname. Não é um bom romance e Sabato abandonou o gênero com Abaddón.
Ernesto Sábato faleceu em 2011. Vivia há mais de uma década sem a mulher, a Matilde de sua juventude, e agora sem o filho, Jorge Federico, ambos falecidos. Morava e era amparado pela governanta da família, Elvira. Ao final da vida, refugiava-se na pintura, sua antiga paixão.
Quem olhava a tranquila figura de Sábato em seus últimos anos, após receber todas as distinções literárias e doutorados honoris causa imagináveis — à exceção do fugitivo Nobel — jamais imaginaria o oceano de ódio e angústia que ele poderia carregar no peito. Um sinal externo disto era certamente o fato do escritor pintar quadros e mais quadros para depois deixá-los na rua, a céu aberto, destruindo-se. De forma muito peculiar, Sábato jamais saiu da Paris dos anos 30 onde “pela manhã me sepultava entre os eletrômetros e provetas, para depois anoitecer nos bares, com os delirantes surrealistas, alcoolizado com aqueles enviados do caos e da transgressão, passando horas e horas elaborando cadáveres refinados”.
Deus existe, mas às vezes dorme, seus pesadelos são nossa existência.
(Ao menos na opinião de) Ernesto Sábato
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/2013/05/dois-anos-sem-o-furioso-brilhante-e-desigual-ernesto-sabato/
muito boa as materias do site