Por Luciane Recieri, para Desacato.info.
Acabo de saber por fotografias, estas, ironicamente, datam da antevéspera do golpe militar de 1964, que pareço lá um pouco com meus pais. Por tantos anos procurei e só hoje vi o que há de mais legítimo. Sim. Sou legítima deles. Porque nada via neles que me contemplasse, porém, nesses últimos meses, tenho estado tão perto que ando me parecendo mais. Talvez seja porque queira guardar tudo na memória. Das falas às manias. Das seriedades às anedotas todas. Agora, começam a ficar mais vagarosos e posam pra mim. Domingo, anotei em meu diário de coisas que nunca mais quero esquecer, as partes que me deram: Do meu pai herdei as pernas e a boca suja. Da minha mãe, as mãos e o jeito dramático. Ainda do pai, o ímpeto de mandar tudo à merda. De dizer o que pensa, mesmo que em forma de galhofa. Da mãe, o sonho de subir num palco e ser artista com roupa de lamê. Do pai, a mão aberta e o sorriso grande. Da mãe, os olhos que fecham quando sorri. Do pai, a cara de pau pra falar com estranhos. Da mãe, o silêncio e a observação pra que nunca precise falar com estranhos. Do pai, o bico de viúva. Bico de viúva? Assim como têm em comum o Che Guevara e o Mickey Mouse, esse biquinho que o cabelo faz e converge para a testa. Do pai, os descontentamentos. Da mãe, devotamentos. Do pai, matemáticas; da mãe, as práticas. Da mãe, o cabelo pouco, assim, de penugem. Do pai, a impaciência. Da mãe, a urgência. O sinalzinho de furo no queixo é do pai. A covinha só de um lado é da mãe. A cor vem da mãe misturada com a antiga brancura do pai, porque hoje ele misturou também. As sobrancelhas fortes do pai. O gosto pela música é da mãe. O gênio insuportável é dos dois. E o amor que sinto também. É dos dois.
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Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP