Indústria na China: ‘economia marrom’ prejudica chineses e o resto do mundo. Foto: Dai Luo / Flickr.
Acordo sobre redução de emissões e uso de fontes não-fósseis são indícios de que país está repensando modelo econômico baseado em carvão, com potencial para se tornar laboratório exportador de medidas sustentáveis para o resto do mundo
Por Magali Cabral.*
Há mais de 30 anos, desde que iniciou as reformas estruturais, a economia chinesa produz dados surpreendentes: tirou 400 milhões de pessoas da linha da pobreza, acumulou cerca de US$ 4 trilhões em reservas, tornou-se o exportador número 1 do planeta, passou a responder por quase um terço do crescimento global e está em vias de assumir o posto de maior economia do mundo.
Do ponto de vista ocidental, é como se um lapso de dois séculos no tempo fizesse a Revolução Industrial reeclodir em território chinês, agora em uma versão hi-tech – porém, como nos séculos 17 e 18, alimentada a carvão. Segundo dados do Banco Mundial, o carvão representa quase 70% da matriz energética chinesa. O custo dessa industrialização acelerada é uma concentração de poluentes como nunca visto.
O bom é que hoje a China, além de farta mão de obra, detém conhecimento tecnológico e capital para desenhar seu futuro em tintas verdes e transformar-se em um grande laboratório exportador de sustentabilidade para o resto do mundo. Vários indícios apontam que o magnífico gigante com pés de carvão reconhece que o prazo de sua economia marrom está vencido. A poluição tem sido um entrave à atração e à permanência de talentos nas grandes cidades do país.
Ao descrever o seu dia a dia na província de Zhejiang, ao sul de Xangai, onde vive com a mulher e três filhos, Yuan Hsieh, responsável pela operação asiática da brasileira Fras-le, empresa de pastilha e lona de freio do Grupo Randon, ilustra a gravidade da situação: “Aqui, a concentração de 80 partes por milhão (ppm) de partículas é considerada baixa poluição. Em São Paulo, se a concentração de poluentes no ar chega a 50 ppm, as autoridades recomendam não fazer exercícios ao ar livre, entre outras precauções”.
Cada um dos dois andares da casa de Yuan é equipado com sofisticados purificadores de ar capazes de reter o material particulado mais fino que atravessaria um filtro comum. Outro dispositivo, também de última geração, foi instalado na pia da cozinha para conter a passagem de metais pesados. “Mas a água sai da torneira quase destilada, de modo que temos de tomar suplementos vitamínicos para repor os sais minerais que deixamos de ingerir”, conta. Em dias muito poluídos, para sair à rua, a família usa máscara com válvula. Para se alimentar, Yuan Hsieh e sua família também procuram fornecedores confiáveis que usem água e adubo com procedências comprovadas. Apesar das dificuldades, ele não pensa em voltar para o Brasil, país onde cresceu e se formou.
Yuan crê na transição para uma economia mais verde na China, ainda que não venha tão rápido quanto se gostaria. Mesmo que Xi Jinping, líder do Partido Comunista Chinês, esteja determinado a promovê-la, as dimensões territoriais e a densidade populacional são um empecilho a resultados de curto prazo.
Na análise in loco de Yuan Hsieh, apesar de estar enriquecendo, o povo chinês continua muito obediente às ordens do poder central. “Por exemplo, quando chega uma decisão de Pequim para que as saídas fluviais das fábricas tenham um determinado diâmetro, ninguém a discute. Simplesmente se executa a obra e ponto final.” Foi assim, também, com as sacolinhas plásticas que, como no Brasil, eram oferecidas gratuitamente em supermercados e no comércio em geral. De um dia para o outro, deixaram de existir nos supermercados — no restante do comércio é preciso pagar por elas. Em vez de protestar ou entrar na Justiça devido à queda na produção, a indústria imediatamente adaptou seu maquinário para trabalhar em outras frentes, enquanto os consumidores muniram-se de sacolas retornáveis para ir às compras.
“Não dá para fazer comparações lineares da cultura Ocidental com a Oriental”, argumenta a chinesa Ling Wang. Ela nasceu em Taiwan e hoje, estabelecida no Brasil, viaja pelo menos duas vezes por ano para a China continental a negócios. Ling oferece assessoria para empresas que querem fazer transações com o país asiático e vice-versa e ajuda a encontrar fornecedores ou sócios para quem deseja montar empresa por lá – qualquer empresa na China deve ter obrigatoriamente um sócio chinês.
Sobre liberdade, ela relativiza. Põe na balança questões como a criminalidade. “É livre alguém que não pode andar na rua a qualquer hora do dia em segurança?”, pergunta. E descreve o espanto de uma cliente sua do Rio de Janeiro que, durante um percurso no metrô de Xangai, às 11 horas da noite, deparou-se com crianças na faixa dos 10 anos de idade voltando sozinhas para casa com seus instrumentos musicais. “Minha cliente lamentou que seus filhos, na mesma faixa etária, jamais teriam a chance de vivenciar essa experiência.”
Clodoaldo Hugueney, embaixador do Brasil na China entre 2008 e 2013, foi testemunha do período de grande ascensão econômica daquele país no mundo e da intensificação das relações com o Brasil. Ele lembra que a China, além de membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, é um país com relações multifacetadas (não só econômicas) com o mundo inteiro. “É hoje um parceiro fundamental para qualquer país”, assinala.
Para o embaixador, pelo menos três ações impactantes globalmente estão em curso na China neste momento. Uma é o Banco de Desenvolvimento dos Brics, que deverá começar a operar até o fim do ano em Xangai com US$ 100 bilhões em caixa e vocação para infraestrutura sustentável.
Outra é a nova Rota da Seda para incrementar o comércio com o Ocidente, uma espécie de cinturão econômico transeurasiano, inspirado na antiga Rota da Seda, com participação de Índia, Mianmar, China, Rússia, Bangladesh, Paquistão, entre outros. E, por fim, as metas conjuntas dos Estados Unidos e China para redução de emissões de gases de efeito estufa após 2020. Os EUA comprometeram-se a reduzir suas emissões de 26% a 28% até 2025 com base em 2005. Xi Jinping prometeu que o pico de emissões chinesas ocorrerá antes de 2030 e a partir daí haverá o declínio.
Neblina de poluição sobre a Cidade Proibida em Pequim: custo da industrialização acelerada é alta concentração de poluentes. Foto: bafac / Flickr
Sobre os Brics, Eduardo Viola, professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em negociações climáticas, levanta a tese de que ao gigante asiático interessa ser classificado como país em desenvolvimento, pois assim consegue mascarar seu poder no mundo e, de quebra, emplacar compromissos ambientais pouco significativos. Para ele, a China já não é mais um país em desenvolvimento. É parte do centro de um sistema internacional que possui três polos: Estados Unidos, União Europeia e China. No entanto, diferentemente dos demais países, consegue um desconto nas metas ambientais, uma vez que ainda precisaria se desenvolver.
Em sua opinião, a proposta de um pico de emissões até 2030 acaba com qualquer possibilidade de se evitar a mudança climática perigosa, para além dos 2 graus. “Quando Xi Jinping fecha as termelétricas mais poluidoras, não o faz para diminuir as emissões de carbono, mas para diminuir a poluição local”, constata.
O coordenador do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima, Tasso Azevedo, é mais otimista em relação aos compromissos ambientais chineses. O acordo firmado em novembro passado por Barack Obama e Xi Jinping, segundo Azevedo, é “importante e ambicioso”. Além da redução das emissões, a China também se comprometeu a atingir 20% de fontes não fósseis ao longo desse mesmo período (até 2030). Caso isso aconteça, ele prevê um impacto na demanda de combustíveis fósseis em todo mundo, o que poderá provocar a redução dos subsídios, hoje calculados em meio trilhão de dólares anuais. E ainda, para atingir essa meta de fontes não fósseis, a China precisará triplicar ou quadruplicar investimentos anuais em fontes renováveis. “As curvas de custos dessas energias deverão ter queda ainda mais acentuada que na última década, com reflexos em todo o planeta.”
Qualquer que seja a motivação, a China tem potencial para dominar as tecnologias do futuro com vantagens tanto de escala como de capacidade de mudança rápida.
É o que diz o ambientalista e escritor australiano Paul Gilding, no livro A Grande Ruptura, lançado no Brasil no ano passado pela Editora Apicuri. Ele diz que não ficaria surpreso se a China instituísse um sistema nacional de fixação do preço do carbono antes mesmo que Estados Unidos e Austrália conseguissem aprovar esse tipo de medida em seus respectivos processos políticos.
“Nos últimos anos, a China vem tomando decisões cada vez mais incisivas no sentido de forçar mudanças de orientação ambiental em sua economia, ao passo que as democracias de mercado têm patinado”, afirma Gilding.
Ele lembra ainda que a China já é o maior fabricante de painéis solares fotovoltaicos do mundo, e o maior mercado de energia eólica.
Outro movimento já bem definido é a transferência das indústrias chinesas mais poluentes, como as de produtos cromados (brinquedos e peças automotivas), ou de mão de obra intensiva, para países mais pobres – entre eles, Vietnã, Mianmar, Camboja e Indonésia –, o que a rigor faz grande diferença para as emissões chinesas e nenhuma para o aquecimento global e os efeitos da mudança climática. Com essas transferências, a China melhora a sua imagem, não apenas na área climática, mas também na área trabalhista. Além da poluição e do regime não democrático, a exploração de mão de obra é outro tema polêmico na esfera da sustentabilidade. Os consumidores conscientes querem ter certeza de não estar consumindo o suor de mão de obra escrava quando compram produtos chineses.
O consultor para negócios na China Fabio Carvalho, que morou cinco anos em Changsu, a uma hora de Xangai, e participou da montagem de uma planta para a Votorantim Cimentos, diz que nos grandes parques industriais do país o trabalho é totalmente regulamentado. Porém, afastando-se desses grandes centros, os padrões de segurança, de fato, vão relaxando, a exemplo do que ocorre também no Brasil.
“Creio que esse é um processo natural de transição. Se olharmos para três décadas atrás, quando estava começando o plano de desenvolvimento chinês, a única coisa que tinham era uma imensa e faminta população disposta a fazer qualquer coisa para melhorar de vida.” Segundo Carvalho, é egoísmo dos ocidentais só criticar e não ver o movimento do país como um todo. “O governo de Pequim estabeleceu prioridades e regular a segurança do trabalho é uma delas.”
Além das pesquisas e entrevistas com conhecedores da realidade chinesa, consultamos também o I Ching, O Livro das Mutações, propondo a seguinte pergunta: para onde caminha a China no plano da sustentabilidade? Além de ser uma obra dedicada ao autoconhecimento, o I Ching vem sendo utilizado como oráculo desde a Antiguidade. É, na realidade, “um monumento ao pensamento chinês”, como disse o psiquiatra e psicoterapeuta fundador da psicologia analítica Carl G. Jung, no prefácio que fez para a versão de Richard Wilhelm.
Para descrever o presente, obteve-se o hexagrama 12 – Estagnação, em que o céu movimenta-se para cima e a terra para baixo, distanciando-se um do outro. Esse é um movimento típico de desequilíbrio e declínio, em que prevalecem a confusão e a desordem. Torna-se impossível uma atividade frutífera, ou seja, em vista de um projeto maior, o do crescimento econômico, a sustentabilidade está entorpecida. Porém, a linha mutante diz: “A época de estagnação aproxima-se do ponto em que uma transformação em direção oposta ocorrerá. O homem que é chamado a essa tarefa será ajudado pelas condições do momento…” Dando sequência à consulta, o hexagrama 20 – Contemplação, representando o futuro, traz a imagem do vento que sopra sobre a terra, pressupondo a chegada de coisas novas. “Quando o vento sopra sobre a terra, alcança todos os recantos e a grama inclina-se ante seu poder.”
Matéria original publicada na revista brasileira Página 22, dedicada à inovação e à sustentabilidade.
Fonte: Opera Mundi