Do fantástico à rotina, literatura como rota de fuga na América Latina

O leitor que cair nos labirintos de Borges, ou na amarelinha de Cortázar, se encantar com os fascínios de Macondo, ou se jogar nas investigações frenéticas do Bolaño, está fadado a um caminho sem volta. Ficção e realidade se confundem de tal forma neste continente, que décadas atrás Gabo se obrigou a admitir: segundo ele, faltam recursos narrativos para dar conta do nosso cotidiano absurdo. Por isso, tudo que resta é literatura.

Por Mariana Serafini.

Por sorte – dos leitores, obviamente – os escritores insistem nesta batalha inglória. A cada nova geração, chega às livrarias uma vasta produção literária potente, capaz de atender aos mais exigentes, acostumados às tramas narrativas dos mestres latino-americanos.

Na tentativa de fazer ecoar esta produção, há dez anos o Hay Festival lança uma lista com 39 escritores com menos de 40 anos. Eles estão em plena produção, são destaques em seus países e têm muito a oferecer aos mais variados leitores. A literatura latino-americana é marcada pelas tramas policiais, o realismo mágico e os jogos psicológicos. Esta nova leva não foge à regra, mas traz algo novo, intrinsecamente ligado a este tempo.

Lina Meruane por Olavo Costa
Segundo os curadores do Hay Festival, a literatura contemporânea da América Latina consiste em uma narrativa limpa, urbana, cosmopolita, muito voltada para o indivíduo e talvez não tão engajada em questões sociais. Certamente, todas estas características estão presentes, mas cada novo escritor tem uma particularidade que coloca em xeque esta regra e mostra que na complexidade de seus personagens, habitam muitos mais elementos do que uma banca julgadora pode destacar.

Por mais individuais que sejam os dramas dos personagens do chileno Alejandro Zambra, a sombra da ditadura permeia a obra do autor que teve a infância marcada pelo horror do regime de Augusto Pinochet. Ainda no Chile, Lina Meruane choca na primeira página, ao cegar sua protagonista com sangue no olho, literalmente. A partir daí, o leitor se vê num jogo de texturas narrado pela personagem que acabou de ficar cega e precisa se mover ao longo do romance tateando cada superfície.

É impossível ler Zambra ou Meruane e não pensar no também chileno – que viveu no México – Roberto Bolaño, e tudo que sua narrativa mordaz deixou a esta geração seguinte. Neste ponto da trama, entra o mexicano Juan Pablo Villalobos, com sua Trilogia do México – “Festa no Covil”, “E se vivêssemos num lugar normal”, “Te vendo um cachorro” – que depois de se embebedar nos “Detetives Selvagens” trouxe algo novo, cheio de ironia e humor ácido, para fazer uma crítica à vida e à produção cultural latina e compor o quadro das produções recentes.

Neste jogo de vai-e-vem de gerações, podemos fazer incontáveis links, como se, sem perceber, estivéssemos pulando num tabuleiro de amarelinha – rayuela para os mais ortodoxos. E por falar nos argentinos, em meio à literatura “seca” das novas gerações, surge Samantha Schweblin sem dever nada aos jogos psicológicos de Cortázar.

No Brasil, temos Daniel Galera que depois de se consagrar com Barba Ensopada de Sangue, gastou saliva argumentando que sua literatura não é realismo mágico, e não é mesmo. Mas foi inútil quando as editoras europeias chegaram à conclusão de que venderiam mais se o conectassem ao estilo de Gabriel Garcia Márquez.

E se pensarmos que, para além do conteúdo, a forma também é uma maneira poderosa de se expressar, Diamela Eltit perturba ao prender seus dois personagens de “Jamais o Fogo Nunca” num quarto à Beckett e deixá-los lá temerosos pelo que as ruas de Santiago (do Chile) reservam a eles depois da ditadura de Pinochet. Mais que um manifesto político, é um manifesto da forma. A obra lançada nos anos 90 foi trazida ao Brasil só agora, pelo autor de “A Resistência”, Julián Fuks. Mais um encontro de gerações memorável.

Paulina Flores por Olavo Costa 
Nem política, nem forma, o que faz da jovem (muito jovem) chilena Paulina Flores um dos grandes nomes desta geração é a capacidade narrativa de detalhes, memórias, sensações. De dentro de uma banheira, durante um banho morno e longo, uma de suas protagonistas pensa nas relações familiares, amizades, caminhos que a levaram até a tal banheira da casa da mãe depois de um casamento fracassado. O livro de estreia desta escritora de apenas 20 e poucos anos, “Que Verguenza”, é uma perolazinha que merece atenção.

Especial de literatura latino-americana no Vermelho

Diante de um cenário com tanta história contada para ser lida, percebemos que sabemos pouco – quase nada – sobre a literatura dos nossos vizinhos e por isso, decidimos produzir um caderno especial sobre literatura latino-americana. A princípio, pensamos em destacar apenas os contemporâneos. E nos deparamos com um desafio bastante concreto: a maior parte das obras são traduzidas primeiro para inglês, ou francês, antes de chegar ao português. Mas ainda assim, o projeto ganhou vida própria e percebemos que seria impossível falar dos poucos jovens que atravessam a barreira do idioma sem reverenciar os mestres. Assim, este caderno se dedica a mostrar o que há de novo sem abrir mão do que já foi feito.

Os colaboradores, as jornalistas do Portal Vermelho e os ilustradores da Quanta Academia de Arte que trabalharam nesta edição não se reuniram todos, ao mesmo tempo, para debater a pauta nenhuma vez. Ainda assim, quando começaram a chegar os textos, percebemos que eles, de uma forma ou outra, se relacionam. O leitor pode escolher começar a leitura pelo excelente artigo da mestranda em Teoria Literária Juliana Cunha sobre Jorge Luís Borges e, inevitavelmente cair na resenha sobre Samanta Schweblin. Ou fazer o contrário e começar pela análise da obra de Alejandro Zambra, da jornalista Verônica Lugarini, sem saber que seu destino, por fim, será o Roberto Bolaño, revisitado aqui pelo doutor em América Latina, Alexandre Ganan De Brites Figueiredo. Talvez porque a literatura latino-americana seja uma grande trama que, hora ou outra, se encontra para não deixar mais rotas de fuga.

Se o leitor estiver disposto a percorrer uma linha do tempo, ele pode começar pela “anti-resenha” do escritor Luiz Henrique Dias sobre Júlio Cortázar, e inevitavelmente vai cair em Ricardo Píglia, que gastou páginas e páginas de seus cadernos para analisar a obra de seus contemporâneos e chega aqui, nesta edição, sob o olhar do escritor Luís Fernando Pereira.

De uma ponta a outra, passamos pelo Brasil em uma entrevista com o escritor Luís Felipe Leprevost, que acaba de lançar seu “Tudo Urge no Meu Estar Tranquilo” e fala sobre a necessidade de nos aproximarmos de nossos vizinhos. Ainda em terras tupiniquins, nos deparamos com a resenha da jornalista Alessandra Monterastelli sobre o “Amora”, de Natalia Polesso. Se seguimos mapa acima, passamos pela Colômbia, onde o jornalista José Carlos Ruy bate à porta de Macondo para resgatar a obra de Gabriel García Márquez e paramos em Cuba, para a Verônica nos apresentar as ferramentas de escrita utilizadas por Leonardo Padura.

Este caderno é uma pequena tentativa de apresentar aos amantes da literatura o que tem sido produzido pelos jovens escritores e de que forma estas novas produções estão ligadas aos nossos clássicos. Todos os artigos, resenhas, e críticas foram lindamente ilustrados por Helena Enne, Olavo Costa e Tainan Rocha. Eles mergulharam nesta volta ao continente em textos e deram conta de aguçar nosso paladar com desenhos. Tirando estas análises e declarações de amor aos nossos escritores preferidos, todo o resto é literatura.

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