O artigo abaixo foi escrito por Tarcísio, numa época em que ainda não se sabia com precisão quem havia sobrevivido à ditadura. Corriam muitos boatos sobre Caio. Caio Venancio Martins estudava direito na USP e militava na ALN – Ação Libertadora Nacional, quando decidiu sair do Brasil, devidos as sucessivas prisões de militantes da Resistencia à ditadura. Caio foi pro Uruguai. Em terras orientais pediu asilo e foi preso em seguida.
O documento anexado produzido pelo DOPS paulista e difundido pelo serviço de informações da Aeronáutica traça um falso perfil do estudante, considerando-o perigoso por saber lutar karate e capoeira, para assim justificar a repressão.
DOCUMENTO
MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA
QUARTEL GENERAL
IV ZONA AÉREA
DIVISÃO DE SEGURANÇA
DIFUSAO NSISA
RD Nº 14015/NSISA/2911
ENCAMINHAMENTO 197/QG4
3DEZ69
http://pt.scribd.com/doc/97450809
SOBRE CAIO, TARCÍSO ESCREVEU O SEGUINTE ARTIGO PUBLICADO PELO BLOG ARQUIVO 68
http://josekuller.wordpress.com/2008/05/25/ecos-da-repressao-2/
Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, 1968.
– Você sabe alguma coisa do Caio?
– Soube que ele estava tentando chegar no Uruguai …
Esta história começou bem antes. Em 1960 eu cursava o ginásio. Era o Instituto de Educação Cel. Bonifácio de Carvalho, a melhor escola de São Caetano do Sul, onde nasci e morei até 1972. Escola estadual, pública. Tive de fazer exame de admissão para entrar.
Dentre os colegas da turma havia dois que foram marcantes de forma bem diferente. Um era o “seu” Jaime, um carteiro de 45 anos no meio daquela garotada e que dizia que queria ser advogado. Outro era o Caio, com quem eu não tinha muita proximidade. Era valentão, brigador (fisicamente mesmo). Um dia inesquecível foi quando foi marcada a disputa entre ele e o Sérgio Batista, um negro muito forte, para decidir quem era o melhor de briga. Deu empate.
Num dia de exame oral estávamos vários colegas no pátio esperando pela hora de sermos chamados. O Caio estava muito nervoso, inquieto e veio me perguntar como eu fazia para ficar calmo. Disse a ele que a respiração profunda podia ser útil, pois aumenta a quantidade de oxigênio no sangue, irriga melhor o cérebro e favorece o relaxamento.
Ele resolveu tentar. Fiquei junto dele, praticando respiração. Depois de algum tempo ele estava mais tranqüilo. Foi para o exame oral e se saiu bem. Veio me agradecer.
Terminamos o ginásio e fomos por caminhos diferentes. Ele continuou no “Instituto”, eu fui para uma escola técnica. Em 1966 prestei vestibular para direito na USP e entrei. Em 67, quando começaram as aulas, encontrei na mesma turma em que eu estava aquelas duas figuras. O “seu” Jaime estava lá, mais próximo de seu sonho. E o Caio. Agora sereno, tranqüilo e poeta. E ativista político dos mais engajados, trabalhando na clandestinidade. Durante o tempo em que convivemos na faculdade ele foi uma figura pública apagada, mas muito ativo nos “subterrâneos”.
Em 1968, seguindo a onda dos acontecimentos mundiais, a faculdade foi “tomada” pelos estudantes que demandavam a abertura democrática, eleições, uma constituição digna. Alguns professores apoiaram o movimento. Dentre eles, duas grandes figuras: Gofredo da Silva Telles e Dalmo Dallari. Outros, como Esther de Figueiredo Ferraz, de que depois viria a ser Ministra da Educação, condenaram. Os meses que a ocupação durou foram de muita atividade. Todas as noites tínhamos alguma personalidade que aprecia lá para prestar sua solidariedade aos alunos.
Uma dessas figuras extraordinárias foi Mário Schemberg, professor da Física da USP. Já quase cego, ficou horas conversando com a turma. Um papo que poderia durar meses! Eu trabalhava durante o dia em São Caetano, mas todo final de tarde, assim que saía da empresa, pegava o ônibus e ia para a faculdade. Ficava lá até por volta das onze horas e depois voltava para casa. A pé até o Parque D. Pedro, onde pegava o ônibus. Descia em São Caetano e caminhava cerca de um quilômetro.
A “tomada”, inicialmente tratada com certa indiferença pelos órgãos da repressão, começou a incomodar. As manifestações dos alunos foram para o Largo São Francisco, e aí a polícia reagiu. Numa madrugada em que havia poucos estudantes no prédio, a tropa de choque desalojou a todos. Não houve resistência. A faculdade ficou ainda algum tempo fechada, mas depois reabriu normalmente. Quando voltamos às aulas, reencontrei vários colegas que não via há tempo. Foi a um deles que perguntei:
– Você sabe alguma coisa do Caio?
– Soube que ele estava tentando chegar no Uruguai, mas parece que em Santa Catarina pegaram ele.
Nunca mais se ouviu falar do Caio. Caio Venâncio Martins, estudante de direito, poeta e ativista político. Desaparecido.