Por Clóvis Victoria.
O distanciamento controlado por cores de bandeiras que o governador Eduardo Leite (PSDB) exaltou como o casamento entre a ciência, a política e a eficiência no combate ao coronavírus atingiu o pico do fracasso desde que foi implantado há pouco mais de um mês no Rio Grande do Sul. Na sexta-feira (12), o Decreto Estadual, de 11 de maio, deu seu último suspiro. Foi quando a Prefeitura de Porto Alegre anunciou novo decreto para esta segunda-feira (15), restringindo comércio para tentar retomar a eficiência perdida com o fim do isolamento social.
Alguns fatores levam à conclusão de que a guerra para o coronavírus estava perdida no RS e a abertura para a circulação e os negócios só apressaram a derrocada. Apesar de o governo estadual levantar bandeiras coloridas e receber elogios, especialistas que acompanham a dispersão do vírus contam uma história de que se tratava da crônica de um fracasso anunciado.
Ceder à pressão da indústria e do comércio e chamar de distanciamento o que deveria ser isolamento ou quarentena nunca deixou de ser uma falácia. O Decreto 55.240, de 10 de maio, simplesmente mascarou a gravidade do potencial perigo da doença para os gaúchos. Era questão de tempo a covid-19 chegar ao RS e pressionar o sistema de saúde. E mais: Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), entre eles as máscaras e o álcool em gel são insuficientes sem se considerar condições socioeconômicas individuais precárias.
Não é difícil levantar as causas do fracasso. Elas são evidentes. O governo do Estado não considerou aspectos fundamentais ou desdenhou desses aspectos básicos para modelar seu projeto de combate à covid-19 e o novo coronavírus.
O vício de origem conjuga o baixíssimo número de testes nos 100 primeiros dias da infecção, além de questão decisiva. Governo neoliberal costuma ser duro com trabalhadores e leve demais com quem tem muito dinheiro.
Então, manteve indústrias como frigoríficos e fábricas de calçados funcionando e fez trabalhadores se aglomerar em transporte público, shoppings centers e, claro, na indústria. Quer dizer, não atacou a mobilidade urbana nem as aglomerações.
Como se não bastasse foi insensível a uma questão estrutural. Não compreendeu ou ignorou a condição socioeconômica dos gaúchos mais pobres neste último mês.
Quem não tem água em casa, quem precisa trabalhar, conta com a ajuda que não tem vindo do Estado e do poder público para ter comida e ficar em casa. Aliás, a comida tem chegado por doações de sindicatos e movimentos sociais. Na periferia de Porto Alegre, falta ajuda do poder público.
Nem o governo federal, nem o governo estadual e nem as prefeituras realizaram campanhas de comunicação massivas para sensibilizar sobre o perigo que o coronavírus representa. Sim, está na TV e nas redes sociais. Mas nem todo mundo tem acesso à internet.
Professor critica distanciamento controlado
O professor do Campus Litoral Norte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ricardo Dagnino sabe bem sobre o que fala quando faz críticas severas ao distanciamento controlado. Ele é geógrafo, demógrafo e o responsável por alimentar o Sistema de Informação Geográfica (SIG), da UFRGS, sobre os casos de coronavírus por município no RS.
Desde que o vírus chegou em 29 de fevereiro, acompanha a evolução dos números fechados pelas instâncias governamentais de casos da covid-19 no Rio Grande do Sul. Percebeu muitas falhas na organização, registro e compilação dos dados.
E, quando ficou sabendo do distanciamento controlado e das variáveis que o governo levava em consideração, anteviu que não ia funcionar. “Não tem como controlar o vírus. Sem teste massivo e sem vacina, não tem como. Sem testar, não tem como desenhar uma política pública. Este distanciamento nunca existiu porque as pessoas não param de circular”, explica Dagnino.
Poucos testes nos primeiros 100 dias de infecção
Desde 15 de abril, o governo do estado distribui remessas de testes aos 497 municípios gaúchos, segundo dados da transparência da página da Secretaria Estadual de Saúde do RS. Os testes rápidos recebidos do governo federal e distribuídos aos municípios, aqueles que o fabricante recomenda sejam feitos em doentes de, ao menos, uma semana para serem mais eficientes, somaram 348.460 em 29 de maio.
Desde que a doença chegou ao Estado, em 29 de fevereiro, até a segunda-feira (8), 100 dias se passaram. Somando todos os testes realizados nestes 100 primeiros dias, chegamos a 50.245. Daquele total de testes recebidos do Ministério da Saúde, os municípios e o governo estadual conseguiram fazer 14,4% dos testes.
Se consideramos os 54 dias desde que começaram a chegar os testes, no dia 15/4, foram realizados 1.289 testes por dia no RS. Se consideramos o 29 de fevereiro, os primeiros 100 dias da pandemia, este número cai pela metade.
Juntando todos os tipos de testes no RS, com resultados, até 8/6, 69.653 foram feitos. É um teste com resultado para cada 163 habitantes, considerando a população de 11,37 milhões de gaúchos segundo projeção do IBGE para 2019.
Temos aí a primeira prova do fracasso do governo do estado em sua tentativa de controlar o vírus: a subnotificação jogou por terra o projeto científico de Eduardo Leite de tentar controlar o vírus liberando a circulação. Lembramos: poucos testes praticamente inviabilizam políticas públicas. No mínimo, produzem um desenho de política equivocado.
Mas vamos aos testes positivos e às respostas que eles deram. Até 8/6, 6.732 casos foram detectados de infecção por coronavírus no estado. Isso significa que 13,4% dos testes rápidos (50.245) feitos no RS dão positivo. Extrapolando com uma regra de três simples, se todos os mais de 300 mil testes fossem realizados, o RS poderia ter detectado entre 40 e 50 mil casos de gaúchos infectados.
A periferização ameaça os mais vulneráveis
Não foi por falta de avisos. Desde os casos da Itália, da Espanha e até da China e dos Estados Unidos, sabe-se que o coronavírus se espalha dos centros das cidades e bairros de maior renda para as periferias. É fácil imaginar que o vírus começou do outro lado do mundo, passou pela Europa e foi trazido para o Brasil por quem tem maior renda e pode viajar de avião para outros países.
É o que os cientistas chamam de “periferização”. O professor do Campus Litoral Norte da UFRGS Guilherme Garcia de Oliveira é doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. Assim como o professor Ricardo Dagnino trabalha com dados de dispersão do coronavírus.
Ele cuida, entretanto, da compilação e análise dos dados mundiais. Para ele, estudos estão claramente a introduzir mais um fator de dispersão do coronavírus e da covid-19. A falta de saneamento básico indica uma causalidade forte.
No Rio Grande do Sul, o número de bairros onde as pessoas que não dispõem de água corrente em casa para lavar as mãos moram é menor do que em Manaus e em outros estados do Nordeste. Daí, quem sabe, mais uma variável capaz de explicar o menor volume de casos de coronavírus e covid-19 entre os gaúchos.
“O Rio Grande do Sul está um ou dois meses atrasado. De modo geral, ainda não chegamos no pico. Não é apenas a questão do intercâmbio de pessoas. As condições de saneamento básico são uma evidência”, acrescenta o professor Guilherme.
Segundo ele, fatores sociais como a dificuldade de as pessoas fazerem isolamento no Brasil, ficar em ambientes fechados e, quem sabe, o frio a partir de junho, podem significar algum surto da covid-19 nas próximas semanas ou meses em estados mais ao Sul, como é o caso do RS, Santa Catarina e o Paraná.
“Percebemos que em São Paulo o número de casos e de mortes tem subido menos nas últimas semanas. Pode ser que estejamos caminhando para o pico. Mas não se pode dizer que é uma tendência com base em dados de um dia para o outro. É preciso analisar dados semanais no mínimo porque os dados diários são muito voláteis. No Brasil, não começamos uma quarentena de verdade. Tivemos quarentena parcial que está falhando. É uma tendência o vírus se espalhar pelo estado (RS)”, salienta.
Os números podem ser uma armadilha
Nunca é demais repetir que é preciso ter cuidado com os números. Ricardo Dagnino, professor da UFRGS, chama a atenção para as respostas precárias que os números podem oferecer. Ele é demógrafo e fala da importância da mobilidade como fator de dispersão do coronavírus e da covid-19.
Morador de Osório, Dagnino conta que uma fábrica de calçados de sua cidade não parou de produzir. E o mais preocupante. Muitos dos trabalhadores que diariamente montam calçados nas esteiras desta grande empresa vêm de lugares distantes.
Para se ter uma ideia, um ônibus da própria empresa traz trabalhadores de Palmares de Sul até Osório. Para de lugar em lugar, recolhendo os operários. De Palmares até Osório, são quase 50 quilômetros em linha reta. “Esse distanciamento não existe. É para quem tem condições de se distanciar”, reforça Dagnino
E tem ainda outra questão. Podemos falar de uma certa sociologia dos números da covid-19. Como eles são fechados? Dagnino conta que os números são fechados nos municípios pelas secretarias de Saúde locais, repassados para os estados, que, por sua vez, repassa-os à instância federal, o Ministério da Saúde.
O caminho é longo e tem ainda fatores que tornam os números ainda mais imprecisos. Por exemplo, nos fins de semana, os municípios não costumam manter servidores públicos de plantão para compilar dados. O efeito, segundo Dagnino, é não se poder confiar nos dados publicados “nas segundas e terças-feiras”.
Toda política pública de combate à pandemia depende da sensibilidade dos governantes e do nível de disposição para esconder os dados e parecer competente. O caso do presidente Jair Bolsonaro já passou da vergonha mundial e beira o genocídio. Seu governo tenta esconder números de forma mais escancarada desde a semana passada.
O coronavírus parece ficar, cada vez mais claro, pune o governante insensível, para dizer o mínimo, e sem coragem. Brincar com remédios como a cloroquina, bravatear saída da Organização Mundial da Saúde (OMS) e desdenhar da covid-19, chamando-a de gripezinha, cobram alto preço. Não por acaso os Estados Unidos de Trump e o Brasil de Jair Bolsonaro passaram a liderar o número de casos e de mortes.
Um exemplo que o professor Ricardo Dagnino aponta como representativo desse descaso é a recente liberação dos serviços de cabelereiras(os) e manicures como essenciais por Bolsonaro.
“Não se fala que os professores da rede estadual prestam um serviço essencial. Não disseram, voltem a trabalhar. Por que os cabelereiros são mais essenciais que os professores?”, compara para dar noção do absurdo.
Pergunta que faz sentido em tempos estranhos. O professor da UFRGS conta que perdeu recentemente sua tia-avó com mais de 90 anos no estado de São Paulo. Até então, ele mesmo não tinha uma dimensão mais sensível da tragédia que é a covid-19. “Enquanto os três filhos mais importantes do país não forem contaminados e ficarem doentes, o presidente não vai parar de ficar mandando a vida voltar ao normal”, salientou.
E isso serve aos governadores. Como os especialistas afirmam, combater o vírus é tarefa local. Por isso a importância dos prefeitos, das pessoas cuidarem uma das outras, dos médicos na ponta do sistema. Mas o papel dos governantes é decisivo.
Quem tenta controlar o vírus sem isolamento, com dados numéricos imprecisos, sem vacina e procurando atender interesses aumenta o risco de derrota. Perde o controle.
Edição: Katia Marko.
Fonte: Brasil de Fato.