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Meio assim, sem muita gente perceber, o casamento do prato de comida no Brasil com o feijão dá sinais de crise. Não só a quantidade de consumo do grão apresenta um histórico de queda nos orçamentos familiares, como a produção dele —assim como a do arroz— enfrenta problemas que podem afetar o abastecimento neste início de ano. Uma parte procura se afastar, enquanto a outra encontra dificuldades para manter o relacionamento. O divórcio, ainda que seja reversível, está em curso.
O processo começa com a saída de casa. Há quatro décadas, pelo menos, as pesquisas do IBGE sobre as compras dos lares brasileiros indicam uma diminuição do alimento na despensa. Nos principais núcleos urbanos do país, a quantidade de feijão caiu pela metade desde meados da década de 1970 até o fim dos anos 2000.
Uma das pessoas que cantou a bola dessa tendência foi a historiadora Adriana Salay. Em sua dissertação de mestrado, “Feijão dono das tradições: representação identitária e consumo efetivo no Brasil (1973-2009)”, realizada na USP, a pesquisadora usou os dados do IBGE para ver, entre outras coisas, o quanto que se consumia, de fato, de feijão.
Segundo ela, o grão teria levado algo em torno de quatro séculos para se consolidar, no final do século XIX e início do XX, como o principal alimento nacional. Mas precisou de muito menos, por volta de quatro décadas, para começar a pular fora do prato de comida. No biênio de 1974-1975, consumia-se em média 14,7 kg de feijão por ano nos lares brasileiros, de acordo com o IBGE; em 1987-1988, 12,1 kg; depois, 10,2 kg em 1995-1996; 9,2 kg em 2002-2003; e finalmente 7,5 kg em 2008-2009.
Olhos nos olhos, o relacionamento anda instável. E para o que ele estaria cedendo espaço? “O IBGE não especifica”, afirma Adriana, em entrevista ao Joio. “Mas o instituto também fala em congelados, carne e frango. E o consumo de iogurtes, bolachas e biscoitos, que estão na categoria de ultraprocessados e bebidas adoçadas, aumentou. Historicamente, esse processo é muito claro”, ela afirma.
A dissertação de Adriana traça um panorama da história do feijão no país. Trata-se de uma pesquisa conduzido na área das humanidades, mas outros estudos Brasil afora, na área da saúde, principalmente, detectam a mesma tendência: o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados ante a diminuição da comida de verdade — e todas as consequências decorrentes disso.
O Ministério da Saúde, por meio de sua mais recente Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), notou que o consumo regular de feijão diminuiu de 67,5% em 2012 para 61,3% em 2016. Paralelo a isso, come-se também menos verduras, frutas e legumes, e a quantidade de pessoas obesas ou com outras doenças crônicas ligadas à má alimentação aumentou no mesmo período.
Dinheiro abala o relacionamento
Pode-se falar em muita coisa para justificar os problemas na relação: falta de tempo para cozinhar, em mudança de paladar ou até que o pessoal enjoou de se alimentar com os mesmos ingredientes por séculos e séculos. Mas o quanto que a coisa pega no bolso é, sem dúvidas, um dos fatores preponderantes.
Nos últimos tempos, o feijão anda com preços salgados. Quem viveu para ver se lembra: em 2016, um ano considerado atípico, o quilo do produto nas prateleiras dos supermercados chegou à casa dos R$ 18, e tivemos de importar toneladas.
Além disso, no indicativo mais recente do Índice Nacional de Preços ao Consumidor, que o IBGE usa para a medir a inflação, o custo do grão aumentou em quase 13%, de novembro para dezembro de 2018. O problema está em casa, mas a coisa, às vezes, vem do trabalho: algumas questões na produção agrícola vêm contribuindo para a crise na relação.
A área de plantio de feijão no país vem diminuindo. Não só a dele, como a do arroz. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura, estima que a área semeada com feijão, na primeira safra de 2018/19, tenha sofrido redução de 8,8% em relação à temporada passada, chegando a 960,7 mil hectares. E há estados no Brasil, como o Paraná, um importante produtor de feijão, em que as terras que cultivam o grão diminuíram em um terço.
Cleverton Santana, superintendente de informações do agronegócio da Conab, explica que essa redução da cultura é consequência da escolha dos produtores. “Nesse período, o cultivo do feijão está competindo com a cultura da soja e do milho por área, fazendo o produtor escolher pela cultura que proponha uma melhor rentabilidade. Algumas regiões escolheram plantar outra cultura e outras resolveram plantar menos”, afirma à reportagem.
Essas variações na produção, no entanto, são comuns, segundo Cleverton. É frequente que os agricultores alterem o que cultivam para buscar gêneros que ofereçam uma remuneração melhor.
De toda forma, essas mudanças ocasionais não deixam de causar dor de cabeça e morder o salário no fim do mês. “As variações na produção sempre geram problemas no abastecimento, uma vez que nossa produção de arroz e feijão é muito ajustada à demanda interna, que é inelástica (varia pouco de um ano para outro)”, diz Alcido Elenor Wander, doutor em economia agrícola e chefe-geral da divisão de arroz e feijão da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
O clima não é bom para a relação
O tempo tampouco tem feito bem para a relação dos brasileiro com o feijão, muito menos com arroz. Some-se às flutuações de oferta e demanda na agricultura de grãos os problemas climáticos. A falta de chuvas em Minas Gerais, importante pólo de feijão, e as enchentes provocadas pelas tempestades no Rio Grande do Sul, responsável por 70% da produção nacional de arroz, vão cobrar o preço do bolso dos brasileiros.
A Federação das Associações de Arrozeiros do Estado do Rio Grande do Sul avalia que os temporais provocaram perdas significativas na colheita do início do ano. A safra de 2019 no estado será, segundo estimativas iniciais, de 7,3 milhões de toneladas do grão, quase um milhão a menos do que os 8,2 milhões de 2018. As importações devem cobrir o que vier a faltar no mercado consumidor.
No caso do feijão, a seca causou perda de produtividade, e o preço dos lotes do grão está subindo, de acordo com o Instituto Brasileiro do Feijão e Pulses (Ibrafe). “Ainda não é possível afirmar que esta alta é exagerada ou coisa parecida. Ela começa a refletir o tamanho da quebra nas lavouras de primeira safra”, declara a entidade em comunicado.
Por enquanto, não é motivo para ligar o alerta vermelho. Mas vale acender o sinal amarelo. A produção de feijão se divide em três safras, sendo que a terceira costuma ser a mais elástica, podendo aumentar ou diminuir para suprir carências que ficaram das duas primeiras. Em 2016, o preço do feijão quebrou recordes porque houve problemas nas três colheitas do grão, algo que é, de acordo com técnicos em agricultura, muito raro.
“A queda esperada na produção é expressivamente menor do que foi em 2016. Ainda que haja uma ligeira queda, não é esperada uma crise de abastecimento no país, se as safras seguintes forem normais”, explica Alcido, da Embrapa.
Mas nunca é impossível que o pior aconteça. Vale lembrar que no relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2018”, a FAO, Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, apontou que a fome continuou a crescer no mundo pelo terceiro ano seguido, e as variações climáticas seriam um dos principais responsáveis.
Problemas em um relacionamento custam a ser percebidos de instante. Às vezes, só depois de uma sequência deles que se procura conversar ou, em casos de resolução mais difícil, divorciar. Mas, ora ou outra, sempre existe aquela pessoa de fora que vem e dá um toque, dizendo que as coisas não parecem bem. É bom ficar de olho. Quem avisa, amigo é.