Por Pedro Munhoz.*
A semana que ora se encerra foi verdadeiramente tenebrosa para todos aqueles que lutam por uma sociedade mais inclusiva e justa no Brasil. Boquiabertos, assistimos a uma estrutura concebida e articulada para a defesa dos direitos das minorias e dos grupos vulneráveis brasileiros, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, ser tomada de assalto por um dos principais símbolos da intolerância religiosa e do obscurantismo no Congresso Nacional: o deputado e pastor Marco Feliciano, do PSC.
Feliciano não assumiu, ainda, nenhum cargo na referida comissão, mas, mesmo que não o faça, pode-se esperar que a CDHM, nas mãos de seu partido, o PSC, acabe sendo pautada pelos interesses e crenças do pastor que, na maioria das vezes, são diametralmente opostos àqueles que a Comissão, pelas suas atribuições, teriam que defender.
Para quem não está familiarizado com Marco Feliciano e o ideário por ele defendido, segue-se uma breve lista de infâmias proferidas pelo parlamentar que justificam o receio dos militantes dos Direitos Humanos no Brasil quanto às consequências de sua influência junto à comissão parlamentar:
– Feliciano afirmou mais de uma vez que a raça negra é maculada por uma maldição bíblica proferida pelo patriarca Noé no livro de Gênesis. Por anos a fio, esse foi o argumento utilizado por religiosos de diferentes denominações cristãs para justificar a escravidão negra. Hoje, fundamentalistas mundo afora recorrem à maldição bíblica para justificar as mazelas que assolam os países do continente africano, deslocando o problema da esfera política para o lugar contraproducente, desonesto e conformista, da inevitabilidade e da impotência diante da vontade divina.
– O pastor, recuperando a retórica apocalíptica e preconceituosa do pânico moral que se seguiu à descoberta do vírus da AIDS, afirma que a doença, que chama de “câncer gay”, é de inteira responsabilidade dos homossexuais que, na visão do religioso, seriam os culpados por espalhar pelo mundo a doença. Vê-se aí uma tentativa rasa de criminalização da orientação homoafetiva que vai de encontro às mais recentes pesquisas e estatísticas, que apontam um maior crescimento da enfermidade entre heterossexuais. Além disso, esse tipo de pregação, quando levada a sério, gera nos heterossexuais uma falsa sensação de segurança, já que a AIDS, vista pelo pastor como um castigo divino imposto aos homossexuais por suas condutas, não deveria atingir, pela lógica da “justiça divina”, aqueles que direcionam os seus desejos e afetos para pessoas do sexo oposto.
– Feliciano e seu partido são abertamente contra o casamento igualitário, demanda das mais centrais dos movimentos LGBT. Caracterizando, aliás, os homossexuais como uma “falsa minoria” em busca não de direitos, mas de privilégios, o pastor sempre se esforçou para esvaziar e ridicularizar todas as suas demandas. São comuns, ainda, na retórica do deputado, acusações de perseguição religiosa e intolerância dirigidas a militantes LGBT que, alvos de constantes ataques por parte do discurso do pastor, têm a sua defesa magicamente transmutada em ataques infundados contra Feliciano. Com sua postura, o deputado ajuda a construir uma imagem ainda mais negativa para um grupo que, estatisticamente, é alvo de preconceitos que, não raro, redundam em violência física e morte.
– Marco Feliciano, em um vídeo que julgo especialmente assustador, relata a fiéis de uma congregação que o governo e o Congresso Nacional, de que faz parte, estão “dominados por satanás”. A postura demarca claramente uma inequívoca confusão entre a crença pessoal do deputado e a função que exerce no legislativo. Sendo o pastor um parlamentar democraticamente eleito de um Estado que, apesar de todos os desvios, ainda se diz laico, é pertinente questionar se sua atuação legislativa não seria, de forma que ultrapassa as barreiras do aceitável, contaminada por sua cosmovisão religiosa particular. Sendo a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados responsável, também, por zelar pela diversidade religiosa e pela liberdade de culto e de crença, pergunta-se se a atuação do PSC frente à sua frente não iria preterir ou ignorar as demandas de religiões tradicionalmente demonizadas pela religião do deputado, como o Candomblé, a Umbanda e até mesmo o Espiritismo Kardecista.
Essa pequena lista não consegue contemplar, nem de longe, a virulência com que o parlamentar ataca as pessoas e grupos que a comissão, agora dominada pelo seu partido, deveria, por suas atribuições legais, defender.
Parece claro que a apropriação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara pelo PSC encerra uma engenhosa tentativa de barrar os avanços dos direitos das minorias e dos grupos vulneráveis no país, já que a bandeira do partido, nesse particular, é a do puro e simples retrocesso.
Pergunta-se de que forma a referida comissão foi cair nas mãos de um grupo que simboliza tudo aquilo contra o que a estrutura deveria lutar. A comissão estava, anteriormente, nas mãos do Partido dos Trabalhadores que, certamente, conta com excelentes quadros no quesito de defesa dos Direitos Humanos. Apenas para citar apenas alguns exemplos, a deputada Erika Kokay, que integrava anteriormente a comissão, e os mineiros Nilmário Miranda e Padre João são figuras públicas que pautaram, ao menos parcialmente, suas carreiras políticas, de forma coerente e honrosa, pela defesa dos Direitos Humanos no Brasil.
Aparentemente, porém, o PT teria aberto mão do comando da Comissão de Direitos Humanos e Minorias para abraçar outras comissões, consideradas, pelo partido, mais relevantes ou estratégicas para o governo federal. Como simpatizante de determinados quadros do Partido dos Trabalhadores e, de forma especial, daqueles ligados à defesa dos Direitos Humanos, deixo ao partido uma pergunta: até quando a chamada “governabilidade” pode ser considerada uma desculpa razoável, pronta a justificar o afastamento, ainda que temporário, do Partido dos Trabalhadores de suas bandeiras históricas?
Se o PT não pode ser diretamente responsabilizado pelo assalto dos fundamentalistas à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, pode ser, certamente, acusado de, abandonando a pretensão de segurar para si o comando da comissão, ter deixado o espaço aberto para que grupos pautados por interesses escusos se apropriassem da estrutura, invertendo, como parece ser o caso, suas funções.
Que me desculpem a pobreza da metáfora, mas ao deixar a porta do galinheiro escancarada é no mínimo ingênuo imaginar que ele não será, na calada da noite, invadido por uma raposa faminta.
* Pedro Munhoz (@pedromunhoz5) advogado e historiador.