Franz Hinkelammert, no seu mais recente livro “Lo indispensable es inútil: hacia uma espiritualidad de la liberación” (Costa Rica, 2012), diz: “Se hoje dizemos que outro mundo é possível, se queremos uma sociedade alternativa, ou o socialismo no século XXI, então creio que é fundamental partir sempre dos direitos humanos. Os direitos humanos não são simples moralismo. O reconhecimento dos direitos humanos é mais bem a condição de possibilidade de uma sociedade alternativa e uma sociedade sustentável, a base de toda sociedade que podemos considerar que vale a pena sustentar.” (p. 96).
Para entendermos o alcance dessa afirmação, precisamos ter em vista uma mudança fundamental na luta pelos direitos humanos no século XXI.
A luta pelos direitos humanos no século XX se deu fundamentalmente em oposição aos Estados autoritários ou totalitários que negavam os direitos individuais dos cidadãos através, por ex., de torturas e censuras. Na medida em que passamos por processos de democratização política, esse autoritarismo do Estado foi sendo controlado ou diminuído em quase todos os países da América Latina. Por isso, pode parecer a muitos que o discurso dos direitos humanos é algo ultrapassado, restrito hoje a grupos e lutas como Comissão Nacional da Verdade, “Tortura nunca mais” ou lutas contra violência contra minorias. (Não vou discutir aqui a tese de que os DH devem ser substituídos por Direito da Natureza)
Essa primeira impressão esconde um mecanismo perverso: hoje a violação dos direitos humanos é cometida não tanto ou somente pelo Estado autoritário, mas também e principalmente através dos mecanismos do mercado “livre”. Com a globalização neoliberal, o principal “agente” violador dos direitos humanos passou do Estado para o sistema de mercado livre. Por ex., as piores violações contra os direitos humanos na guerra do Iraque não foram cometidas pelo exército norte-americano, que estão sob as leis americanas e internacionais, mas por soldados e agentes profissionais contratados através de empresas privadas, que não estão sob as leis internacionais que colocam limites aos procedimentos desumanos na guerra.
A censura é outro exemplo. A principal forma de censura dos meios de comunicação no mundo hoje não é feita através de mecanismos mais “brutos” das ditaduras, mas de modo muito mais silencioso e sutil pela seleção das versões de notícias que estejam de acordo com os interesses dos conglomerados empresariais por detrás dos meios de comunicação. A censura é feita em nome da liberdade de imprensa.
E o direito fundamental à vida –direito que implica em direito ao emprego, saúde…de todos/as— é massivamente violado, não de modo direto, mas indireto. Estado autoritário mata diretamente, enquanto que o sistema neoliberal de mercado global não mata diretamente, o que faz é não permitir que os pobres vivam. Para assegurar, por ex, a sustentabilidade do sistema financeiro europeu e também global, impõe-se aos países como Grécia, Portugal e Espanha medidas duras que não permitem que milhões de trabalhadores pobres possam sobreviver. Há cálculos que indicam que na Rússia, no período de transição para “mercado livre”, morreram quase três milhões de pessoas por causas dos efeitos dessa liberalização.
Para o sistema neoliberal, o que consideramos indispensável, o direito à vida digna de todas as pessoas, é algo inútil e ineficiente porque implica em medidas que limitam a liberdade do mercado. A defesa do direito fundamental à vida de todos/as se dá hoje prioritariamente contra o sistema de mercado neoliberal que impõe sua liberdade de mercado e os direitos dos grandes conglomerados econômicos, “pessoas jurídicas”, sobre as populações de todo o mundo. Em termos da vida cotidiana, os direitos humanos foram substituídos por “direito do consumidor”, porque, no neoliberalismo, quem não é consumidor não é humano, portanto não possui direitos fundamentais.
Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de “Sujeito e sociedades complexas” (Vozes). Twitter: @jungmosung.
Fonte: http://www.adital.com.br
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