Por Thiago Luís Sombra*
Em JOTA.
Entre os dias 14 e 16 de dezembro ocorreu em Paris o seminário “A efetividade do Direito em face do poder dos gigantes da internet”, uma iniciativa conjunta da Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, Paris 5 – Descartes, Universidade de Versalhes, Universidade de Brasília e Universidade Federal de Santa Maria, sob a coordenação científica dos professores Nathalie Martial-Braz, Martine Behar-Touchais, Mélanie Clément-Fontaine, Alexandre Veronese e Christiana Soares de Freitas[1].
O objetivo do seminário foi promover o debate e o intercâmbio de experiências entre Brasil e França no tocante aos impactos causados pela internet na regulação de temas como direitos autorais, proteção de dados, patentes, gratuidade e medidas anticoncorrenciais, moedas digitais, novos modelos de pagamento, plataformas de empréstimos/financiamento e crowdfunding.
Na ocasião, abordamos o cenário de proteção de direitos autorais no Brasil após o Marco Civil da Internet, com reflexos sobre a proteção de dados pessoais, sobre o qual falaremos um pouco na coluna de hoje.
O desenvolvimento de novos suportes tecnológicos, marcados pela mescla entre estruturas virtuais e físicas, voltados à transmissão de informação na era da economia compartilhada, tem impactado de forma expressiva os direitos autorais. A eclosão da interatividade e dos processos de digitalização, convergência e disrupção tem exigido dos atores regulatórios mais do que a mera função coercitiva de proteção dos direitos autorais.
Os novos parâmetros regulatórios requerem dos atores a devida compreensão de um cenário de corregulação no qual autores ocupam simultaneamente a posição de desenvolvedores e usuários, consumidores e fornecedores de informação e invenções[1], como se percebe em plataformas como o Mendeley, o Sci-Hub, a SSRN, a Academia.edu e o Google Acadêmico.
A delimitação dos contornos do uso privado e da revelação pública, associada às novas características do consentimento, tem impactado o modo de aplicação do regime de responsabilidade civil dos provedores quando em confronto com a violação a direitos autorais.
A inversão de papéis acarretada pela maior representatividade do meio ou do suporte de transmissão da obra em detrimento da figura do autor confere à internet a marca de uma arena pública na qual cada cidadão é um potencial autor de conteúdo. Associado a isso, ganha corpo o debate em torno da livre circulação, que esbarra nos mecanismos tradicionais de proteção de direitos autorais previstos nos ordenamentos jurídicos de países de sistema common law e civil law.
Enquanto os americanos e ingleses recorrem a cláusulas abertas e conceitos indeterminados como o fair use e o fair dealing[2], o que lhes confere maior flexibilidade e atualidade no regime normativo, o Brasil se filia ao modelo de tradição romano-germânica do direito autoral, aproximado do francês e marcado pela previsão expressa de um número limitado de exceções à proteção do direito autoral. Por aqui, as exceções mais comuns ainda se restringem ao limite de citações, utilização em benefício de deficientes físicos e fins de crítica e caricatura[3], o que demonstra uma séria urgência no encaminhamento do projeto de lei de reforma dos direitos autorais (PL 3969/97)[4].
Independentemente do modo como cada um dos dois sistemas se porta perante os direitos do autor, ambos têm encontrado dificuldades regulatórias em relação ao modelo de compartilhamento da economia digital em que CDs e LPs são substituídos pelo streaming e pelo MP3. A passagem da infraestrutura física para a lógica-virtual tem exigido rápidas adaptações que países de tradição civil law não têm conseguido promover, além de não serem dotados de suficientes mecanismos de abertura normativa para soluções em concreto.
A tensão público-privado existente na internet tem fomentado questões como o exato momento em que uma obra é disponibilizada ao público e em que medida o consentimento do autor teria sido concedido e novamente poderia ser exigido[5]. Em linhas gerais, o exercício do direito do autor esgota-se com a colocação da obra em rede, isto é, este é o momento em que uma obra deve ser considerada como de revelação ao público e a partir do qual o autor passa a negociar seus direitos patrimoniais sobre ela[6].
Quando se admite que a obra esteja ao alcance do público mediante transmissão por algum dispositivo digital, nenhuma nova autorização é necessária, desde que mantida a finalidade e vinculação com o propósito inicial externado pelo autor[7]. O ato central protegido é a divulgação ao público. Posteriores reproduções meramente tecnológicas, como a passagem de um computador a outro do usuário, são irrelevantes, afinal ainda estaria caracterizado o uso privado da obra.
Outro desafio regulatório relevante envolve a adaptação das três expressões do direito patrimonial do autor – reprodução, distribuição e comunicação ao público – ao ciberespaço[8]. Enquanto no mundo físico e nas leis protetoras de direitos autorais a reprodução envolve a cópia de um ou vários exemplares, bem como o armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos, a figura do streaming não se adequa a nenhuma destas hipóteses[9].
Com a indefinição em torno da reforma da Lei de Direitos Autorais no Brasil e a entrada em vigor do Marco Civil da Internet, o cenário regulatório da proteção dos direitos do autor permanece deficiente, conforme se denota do §2.º do art. 19 e do art. 31 da Lei Federal 12.965/14.
A aplicação parcial do regime de responsabilidade civil do Marco Civil da Internet em casos de descumprimento de decisão judicial de remoção de conteúdo tem sido o meio mais eficiente de se preservar os direitos autorais na internet durante o período de omissão legislativa específica[10]. Mas e quando simultaneamente há uma interação entre violação de direitos autorais e proteção de dados pessoais?
Tem se intensificado o número de plataformas virtuais e serviços que se valem de práticas de suposta gratuidade, como o download ou o upload de livros, artigos, pesquisas e resumos em troca do cadastro e fornecimento de dados pessoais pelo usuário. Tais dados pessoais serão posteriormente objeto de outros negócios realizados entre essas plataformas e seus patrocinadores e financiadores, o que revela a essência do que se tem denominado negócios jurídicos supostamente gratuitos.
Outro aspecto relevante abordado durante o seminário foi a ideia de plataformas digitais normativas ou simplesmente estruturas normativas[11], que consiste numa faceta do poder dos intermediários (provedores de aplicação e serviços) de deliberar, sem um critério claro, público, sujeito a controle (accountability), sobre quais usuários terão acesso irrestrito ou não, que benefícios obterão em troca, que obras terão maior ou menor destaque e como serão qualificadas. As estruturas normativas construídas por plataformas digitais têm feito com que se questione a observância do devido processo legal e a eficácia da lei na imposição de comportamentos e proteção de direitos[12], conforme salientado no último Fórum de Governança da Internet (IGF, em inglês), em Guadalajara.
Diante de um contexto de mudança de meios de suporte, a qual permite acesso transnacional a obras de autores de todas as partes do mundo, é premente que o Brasil promova a adaptação da sua legislação de proteção de direitos autorais sob as premissas de maior acesso ao conteúdo, resguardo da posição dos autores e proteção dos dados pessoais dos usuários.
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[1] BENKLER, Y. (2000): From costumers to users: Shifting the deeper structures of regulation toward sustainablecommons and user access. Federal Communications Law Journal, v. 51, n. 3, 561-578.
[2] ASCENSÃO, José de Oliveira. O fair use no direito autoral. Direito da Sociedade e da Informação, v. 4, 2003; LITMAN, Jessica, Revising copyright law for the information age, Oregon Law Review, v. 75, p. 19, 1996; BEEBE, Barton, An empirical study of US copyright fair use opinions, 1978-2005, University of Pennsylvania Law Review, p. 549–624, 2008.
[3] ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras privadas: benefícios coletivos: a dimensão pública do direito autoral na sociedade da informação. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 141.
[4] Cf. http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/505086-ESPECIALISTAS-DISCORDAM-SOBRE-REFORMA-DA-LEGISLACAO-DE-DIREITOS-AUTORAIS.html
[5] No tocante ao consentimento, o STJ tem entendido que “havendo autorização específica do autor da obra para publicação apenas na edição da revista para a qual foi criada, não se pode reconhecer a transferência de titularidade dos direitos autorais para a exposição da obra em um segundo momento, ou seja, no Acervo Digital Veja 40 anos” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1556151/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Terceira Turma, DJe 08.09.2016).
[6] ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito de autor no ciberespaço. Revista da EMERJ, v. 2, n. 7, p. 21–43, 1999, p. 27.
[7] SENFTLEBEN, Martin, Bridging the Differences between Copyright’s Legal Traditions–The Emerging EC Fair Use Doctrine, Journal of the Copyright Society of the USA, v. 57, n. 3, p. 521–552, 2010, p. 523.
[8] O tema da execução pública em torno do streaming foi analisado em audiência pública pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.559.264/RJ, Rel. Ricardo Vilas Cueva.
[9] Conforme MULERIKKAL e KHALIL, o streaming utiliza uma técnica conhecida como Content Delivery Network – CDN, na qual clusters localizados na ponta das redes onde os usuários-finais estão localizados se comunicam continuamente, de forma a replicar o conteúdo digital requerido por estes, garantindo um acesso mais rápido ao pacote de dados requisitado. MULERIKKAL, Jaison Paul; KHALIL, Ibrahim, An architecture for distributed content delivery network, in: 2007 15th IEEE International Conference on Networks, New York: IEEE, 2007, p. 359–364. Para mais detalhes sobre os reflexos do streaming no Brasil, cf. a excelente monografia de Thiago Guimarães Moraes, Atores Regulatórios do Streaming e o Sistema de Direitos Autorais Brasileiro. Monografia de Graduação da Universidade de Brasília. Brasília, 2016.
[10] Por ocasião da palestra, analisamos especificamente o Recurso Especial 1.512.647/MG, Rel. Min Luis Felipe Salomão, no qual apontamos as inúmeras idiossincrasias de um modelo normativo deficiente de proteção de direitos autorais, que acaba por se valer de figuras da common law como o fair use, a responsabilidade vicária e a responsabilidade contributiva, em virtude das inadequações da atual Lei de Direitos Autorais.
[11] DeNardis, Laura. The global war for Internet governance. New Haven: Yale University Press, 2014, p. 153-172.
[12] HILDEBRANDT, .M (2008): Legal and Technological Normativity. Techné: Research in Philosophy and Technology, v. 12, n. 3, p. 169–183; OERMANN, Markus; ZIEBARTH, Lennart. Interpreting code–Adapting the methodology to analyze the normative contents of law for the analysis of technology. Computer Law & Security Review, v. 31, n. 2, p. 257-267, 2015.
*Thiago Luís Sombra – Advogado, Professor de Direito Privado da Universidade de Brasília, Coordenador do Laboratório de Pesquisa Direito Privado e Internet-LAPIN