Por Roberto Liebgott, Cimi Regional Sul, Equipe POA.
Entra mês e passam-se os anos e não se vislumbra, no âmbito das políticas públicas, que a Constituição Federal seja efetivamente cumprida, procedendo-se com as demarcações dos territórios indígenas e a titulação das terras quilombolas.
De acordo com o último levantamento realizado pelo Cimi e publicado no Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2021 (pág. 53), existem 1.393 terras indígenas no Brasil. Destas, 429 estão registradas, 143 aguardam identificação e 598 estão sem providência alguma.
Os povos cujas terras estão demarcadas ou sob proteção, como as de alguns povos indígenas em situação de isolamento voluntário, enfrentam as consequências dos descalabros do governo Bolsonaro, que promoveu a fragilização das equipes que atuavam na prevenção, fiscalização e combate às invasões dos territórios.
No atual governo, em seus meses iniciais, priorizou-se as ações na área Yanomami, em função da invasão garimpeira e do processo de genocídio que ocorria sob os olhares complacentes dos governantes, das autoridades e da sociedade.
No que se refere às comunidades e povos onde as terras não foram regularizadas – ou sequer tiveram os procedimentos de demarcação iniciados – percebe-se que o Ministério dos Povos Indígenas e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) buscam se organizar diante de uma realidade orçamentária caótica, obrigando a centralizar as ações governamentais no atendimento de situações emergenciais, no enfrentamento aos ataques contra comunidades, como recentemente ocorreu em Mato Grosso do Sul.
Aliás, apesar da grave realidade de violação dos direitos humanos naquele estado, que ano após ano vêm sendo denunciada nos relatórios de violência do Cimi como uma das mais dramáticas, as demarcações de terras estão todas paralisadas.
No Brasil, embora estejamos convivendo num ambiente mais harmônico, em decorrência de um novo governo, apartado da intolerância e do fascismo, as medidas que buscam garantir os direitos indígenas são incipientes. Preocupa, sobretudo, o fato da precariedade financeira, da falta de servidores públicos concursados e a ausência de indicativos quanto à política de demarcação de terras.
Sabe-se que, no âmbito do Ministério dos Povos Indígenas, há necessidade de conciliar e resolver, dentre tantos desafios, os conflitos internos – entre indígenas – e externos – com os invasores ou ocupantes de boa-fé –, todos vinculados às invasões e ao esbulho dos territórios.
Diante dos problemas, espera-se, no entanto, que não sejam retomadas, especialmente nas regiões mais conflituosas do país – Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Bahia, Santa Catarina, Tocantins, Rio Grande do Sul –, as propostas de criação de mesas de diálogos entre governo, lideranças indígenas, Ministério Público e demais interessados nas demarcações de terras, para, entre todos, estabelecer consensos.
É importante ressaltar que essa prática já ocorreu em períodos anteriores e se revelou inócua, especialmente nos governos de Dilma Rousseff.
As tais mesas de diálogo contemplariam, à época, os interesses e ambições do agronegócio, dos latifundiários e dos grandes empresários que exploram recursos naturais, agrícolas, agrários, minerais e hídricos. Na prática, as tais mesas nunca levaram a lugar algum, a não ser submeter – ainda mais – as comunidades indígenas a uma exposição desnecessária perante seus principais inimigos.
As propostas de pagamentos pela terra nua, apesar dos esforços no governo Dilma, não avançaram porque os invasores repudiam a possibilidade de uma solução: eles são exploradores, vivem da expropriação, se retroalimentam dela
Duas eram as propostas através das mesas de diálogos:
1. Propor a redução dos limites – extensão ou tamanhos das terras – definidos durante os estudos circunstanciados de identificação e delimitação das terras; ou seja, ignorando estudos técnicos e antropológicos, se pretendia convencer os indígenas de que eles não precisariam de tanta terra para sobreviver, visto que o governo lhes forneceria benefícios sociais e assistenciais compensatórios;
2. Apontar, como solução dos conflitos, a relativização do artigo 231 da Constituição Federal, inserindo, como regra, o pagamento, aos invasores, pela terra nua. Ou seja, aqueles que deveriam perder a posse e a propriedade da terra em função da demarcação, pois os títulos são declarados nulos, passariam a ser agraciados com indenizações milionárias por propriedades da União, destinadas ao usufruto exclusivo dos indígenas.
As duas propostas são inconstitucionais e imorais. A primeira visava convencer os indígenas de que seu direito mais sagrado, o direito à demarcação da terra, poderia ser trocado por migalhas futuras e incertas. Se houver, porventura, iniciativas nesse sentido, se estará praticando atentados à vida e ao direito.
A segunda proposta era uma espécie de legitimação das invasões. E, mais grave, o Estado estaria dando um atestado, validando os crimes de esbulho e de genocídio. Portanto, além de legitimá-los, se afrontaria a Constituição Federal, porque o artigo 231, em seu parágrafo 6º, é taxativo:
“São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção do direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé”.
As propostas de pagamentos pela terra nua, apesar dos esforços no governo Dilma, não avançaram porque os invasores repudiam a possibilidade de uma solução: eles são exploradores, vivem da expropriação, se retroalimentam dela.
Caso esse tipo de iniciativa resultasse em benefícios para as comunidades originárias e tradicionais, a reforma agrária no Brasil, a demarcação e titulação dos territórios quilombolas teriam sido exitosas, porque, em ambos os casos, há previsão de indenização, pagando pelo valor da terra nua.
Há, em alguns estados da federação, como é o caso de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, nas suas Constituições, previsão de pagamento de terras quando houver litígios relativos à demarcação de áreas que foram, no passado, colonizadas pelos governos estaduais.
Portanto, nesses casos, o estado reconhece que promoveu a ocupação de terras que não eram suas, cabendo-lhe o reconhecimento do vício histórico e reparando-o, indenizando aquelas famílias que foram assentadas indevidamente e pagaram pelos títulos de propriedade.
Toda e qualquer iniciativa, de boa ou má-fé, que vise retirar ou restringir os direitos indígenas, deve ser veementemente enfrentada e combatida. Não há meia medida
Embora haja previsão legal, as questões envolvendo indígenas e pequenos agricultores não são solucionadas por falta de interesse político, de previsão orçamentária e por abrir um precedente possível de superação dos entraves burocráticos e jurídicos, o que não interessa aos que promovem o esbulho e invadem os territórios.
Não há negociações e mediações possíveis quando se discute direitos originários, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis dos povos indígenas. É dever absoluto da União demarcar as terras destes povos, por comporem parcelas de seu patrimônio e por ser caracterizada, a terra, como um direito fundamental.
Toda e qualquer iniciativa, de boa ou má-fé, que vise retirar ou restringir os direitos indígenas, deve ser veementemente enfrentada e combatida. Não há meia medida.
Direito indígena à terra não se negocia e nem se releva.
Não à tese do marco temporal e demarcação já!
Porto Alegre (RS), 3 de abril de 2023.
Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.
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