A dialética entre o pincel, o panfleto e o livro de História, nos leva a utilizarmos politicamente os murais de Rivera para marcarmos com tintas e palavras o território do combate contra o conservadorismo.
Os conservadores falam que é preciso “ amar o Brasil “, desde que você se esqueça de que é um latino americano. Esquecer que vivemos na América Latina, continente em que aquelas veias abertas descritas por Eduardo Galeano ainda jorram sangue, é o desejo de todos os imperialistas. Se a luta de classes estrutura-se no plano da
linguagem através das disputas entre narrativas, devemos não apenas disseminar mas nos amalgamarmos com as histórias, as imagens que apresentam o rosto plural do povo latino americano resultante do processo histórico que vai da colonização
europeia até o capitalismo industrial contemporâneo. O pintor mexicano Diego Rivera fornece um rico material imagético que possui uma função educativa para os
trabalhadores latino americanos.
A dialética entre o pincel, o panfleto e o livro de História, nos leva a utilizarmos
politicamente os murais de Rivera para marcarmos com tintas e palavras o território
do combate contra o conservadorismo. Logo o que se segue não é um comentário
diletante em torno de um “ curioso “ episódio da chamada História da Arte. Nem
mesmo uma análise do conjunto dos afrescos do pintor. Tenta-se esboçar aqui um
comentário poético da história da luta de classes através da arte de Rivera; e para tal ocorrem referências aos murais do artista. A necessidade de construirmos uma
consciência crítica da história, exige que levemos para os conflitos políticos a obra de
Rivera, ou seja, munição estética da boa.
O que observamos em Diego Rivera é capacidade de síntese dos conflitos históricos
através da articulação de imagens: a Conquista espanhola, a destruição dos povos pré colombianos, a escravização das populações indígenas, a exploração do povo
mexicano, o processo de independência da América Espanhola, a Revolução mexicana de 1910 e o movimento operário, estão reunidos no mesmo espaço imagético de seus murais, configurando em termos plásticos aquilo que Benjamin classificaria em suas fecundas Teses Sobre o Conceito de História(1940) como o “Tempo do Agora “. A pintura de Rivera narra a história do México a partir de um leito subterrâneo, reprimido e soterrado pelo colonizador espanhol dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. São os indígenas, os camponeses, os peões e os operários as figuras de proa em conflito com a Coroa espanhola, o Clero, os chapetones, os criollos e os burgueses. Ao revirar os escombros da memória do seu país, ao revisitar episódios históricos, o artista mexicano reúne realidades do passado e do presente enquanto processo conflituoso.
As pinturas de Rivera, especialmente aquelas produzidas entre os anos de 1920 e
1930, partem da lição fundamental do Manifesto Comunista(1848) de Marx e Engels,
ou seja, a luta de classes é o motor da história. Embora segundo referências biográficas Rivera nunca tenha se aprofundado na leitura das obras de Marx, o fato é que sua pintura historiciza o conceito de Trabalho, mergulha nas tensões entre opressores e oprimidos enquanto estratagema de uma cultura violentamente mestiça.
Em Entrada para as Minas(1923) e O Moinho de açúcar(1923) , ambas da série Visão Política do Povo Mexicano, Rivera nos mostra trabalhadores anônimos que portando tristemente, pesadamente, suas ferramentas surgem de dentro dos olhos de um “monstro “ e encaminham-se para o interior da boca do mesmo, pisando
exaustivamente num fundo forrado por escadarias. É um monstro devorador de
trabalhadores. Seu nome é mina, ás vezes engenho, sendo suas formas sócio
econômicas assumidas ao longo dos tempos a Encomienda, a Mita, o latifúndio e o
trabalho assalariado. Esses trabalhadores que carregam o sangue misturado dos povos indígenas com o colonizador espanhol, misturam melancolicamente o melaço,
derramando-o sobre fôrmas dispostas lado a lado, compondo aquilo que será o futuro bolo de açúcar. São homens que, seja no interior das minas, seja nos moinhos de açúcar , extraem riquezas que não são suas, produzem o doce numa vida amarga; e neste início de século XXI os trabalhadores mexicanos e latino americanos em geral não provaram ainda o sabor do açúcar.
Rivera utiliza tintas para expor o que as letras da historiografia oficial ocultaram por
séculos. O muralista mexicano desenha a figura do chapetone em sua imponente
vestimenta aristocrática, com seu dedo indicador dando ordens aos indígenas. Estes
últimos por sua vez esculpem cidades, carregam cestos e entregam frutas para
sombrios sacerdotes católicos: estes clérigos, que trouxeram para o território
americano a intolerância da Contrareforma católica, possuem mãos gananciosas e
estão sempre famintos por moedas de ouro ou prata. Nunca a pintura conseguira até então traduzir em imagens dramáticas a dimensão além mar da Acumulação Primitiva de Capital estabelecida pelas monarquias europeias. Os murais formam cenários históricos em que povos nativos são massacrados por canhões ibéricos, são acossados em barrancos por soldados europeus, são marcados a ferro e fogo em paisagens desoladoras, nas quais até burros de carga expressam tristeza. São recorrentes nestes painéis tanto cenas de caráter bélico quanto cenas do cotidiano opressor. Assim observamos o capataz montado em seu cavalo, dando ordens nos canaviais para camponeses curvados: estes trabalhadores estão amarrando a cana de açúcar cortada e a carregando para abastecer a pança da metrópole. Mais cenas de opressão eletrizam nossas pupilas em outras pinturas. Um mal estar terrível invade o espectador que percebe indígenas enforcados em árvores e submetidos ao trabalho compulsório.
Porém, sabemos que o povo nunca deixou de lutar, tanto contra a tirania do
colonizador europeu de ontem quanto a do imperialista norte americano de hoje.
A história registra, inclusive pelo pincel de Rivera, que essas populações oprimidas
surgem em luta contra as classes dominantes, afirmando a força da sua cultura, a
presença subversiva dos seus deuses astecas, guerreando contra os invasores. A
capacidade de síntese pictórica de Rivera se faz sentir em afrescos que expõem a saga da luta de classes no México desde a colonização até os anos de 1930. São episódios em que Marx surge como profeta materialista para explicar a história mediante a um acúmulo de lutas: uma longa e brutal jornada que inicia-se entre a pólvora do colonizador e as armas dos astecas. Num capitulo fundamental desta epopeia encontramos os líderes criollos, que com as espadas em punho lideram as lutas pela independência. Os olhos do espectador seguem e aterrissam nas imagens do movimento revolucionário cujos personagens reivindicam terra e liberdade. Chega-se ao flamejar da bandeira vermelha contemporânea do pintor, levantada pelo movimento operário internacional.
O artista consegue transcender o contexto da história do seu país para revelar o
sentido internacionalista do combate revolucionário da atualidade; e ele o faz tendo
como campo temático a maquinaria moderna utopicamente transposta em cenas
monumentais, com asas que abrigam imagens vertiginosas. O muralista registra(e
denuncia) o potencial destrutivo da guerra química promovida pelo imperialismo, a
repressão policial contra trabalhadores, o rosto vil da burguesia, o sonho de libertação entre os oprimidos da Terra . De fato, o espectador sente que no caótico enredo do século XX, os trabalhadores são aqueles que anunciam a possibilidade de um outro futuro. Se Miguel Hidalgo e José Maria Morelos são os revolucionários do passado, da Independência do México, agora revolucionários também são os russos Vladmir Lenin e Leon Trotski, ou ainda Emiliano Zapata, cujo sangue fertiliza o solo da insurreição popular no México contemporâneo. Observamos em algumas pinturas o proletariado, como exemplificam os operários norte americanos com seus macacões azuis e bonés beges trabalhando em Detroit ou na região da Califórnia. Os
trabalhadores produzem a riqueza a partir da tecnologia moderna, capaz de realizar
maravilhas para a humanidade. Tais operários e não a burguesia americana podem,
aos olhos de Rivera, colocar um fim junto aos povos saqueados, como os mexicanos,
na exploração do homem pelo homem.
Ao revelar as entranhas da servidão do trabalho, Rivera pinta o movimento político
revolucionário da história. O destinatário, o espectador endereçado destes murais,
desta retumbante forma de arte pública, era o povo mexicano, em sua maioria
analfabeto. A exemplo do trabalho de outros muralistas mexicanos, existe nesta
proposta uma postura política de intervenção sobre a construção da narrativa
histórica. Não por acaso, as aulas de muitos professores de História reacionários de
ontem e de hoje, perdem fôlego diante do muralismo: enquanto que o discurso
histórico dos colonizadores do passado e da burguesia do presente, herdeira dos
anteriores, é muitas vezes reproduzido em sala de aula, ocultando assim a brutalidade da Conquista espanhola, as pinturas de Rivera a denuncia, a coloca em cheque, expõe as engrenagens econômicas e políticas por onde a opressão torna-se um conjunto de figuras historicamente definidas.
Sabemos muito bem que a amnésia histórica, o desconhecimento da história,
envolvem obstáculos para a consciência de classe dos trabalhadores atuais. Sindicatos e centros culturais de esquerda encontram em Rivera um auxílio preciso para contar aos trabalhadores a história decomposta em cenas pintadas, que funcionam como pinceladas de combate, até hoje.