Por *V.B. em Desacato.info
Em uma de suas últimas viagens do ano, Clara adquirira maior consciência da relação entre leigos e a arte. Relação que a incomodava desde algum tempo.
Ao sentar-se ao lado de Felipe, silenciosamente junto ao seu livro, permaneceu em seu mundo ambivalente e fascinante. Ali, podia habitar ela mesma sem censura, na desrazão de qualquer tentativa sóbria. Ser livre naquele espaço de pensamento era algo que talvez Felipe não pudesse compreender.
Por algum tempo permaneceram sem se falar, até que algumas palavras de Felipe romperam a barreira invisível do desconhecido. O objetivo de sua viagem relacionava-se a família, mote da conversa, pois final do ano as relações familiares se estreitam. Desde o início ele nota a peculiaridade das ênfases do discurso de Clara. Ao ceder espaço onde proliferavam questionamentos, ela percebe que a partir daquele momento novas paisagens seriam possíveis para ele, porque janelas surgiriam por onde a vida seria desnudada pela beleza da visão das descobertas.
Pouco a pouco ele vai se dando conta que ela era diferente de tudo o que ele conhecera porque naquele mundo ele jamais pensara adentrar, nem mesmo com um passo bastante tímido. Mas adquirira coragem e cautelosamente se lança e se entrega às suas dúvidas e incertezas, confiando que ela talvez fosse a janela por onde ele poderia olhar este complexo recorte de mundo.
Entregue aos conflitos da fala de alguém com uma postura de quem habita um lugar onde a fecundidade e a fresta das possibilidades estão no vínculo entre a vida e a arte, ele, desordenadamente, tomado por dúvidas que agora, mais do que nunca, corajosamente questiona a partir do seria a seu ver a ideia de arte. Como para ele tudo precisava estar inserido em uma lógica de utilidade, pergunta:
– Qual a utilidade da arte?
Clara sem relutar faz uma aproximação de acordo com a lógica do pensamento de Felipe e responde:
– Se você quer saber se a arte serve para algo te digo que ela não serve para nada, dentro da lógica esta que estruturamos todas as coisas do mundo. A arte é inútil, e, portanto, muito útil.
– Como assim? Não entendo.
– O que você entende por utilidade?
– Se ela existe para alguma coisa deve servir, não é mesmo?
– E você acha que ela serve para que?
– Para ter alguma função estética e, por isso valorativa?
-Talvez você esteja pensando em arte como um objeto dentro de uma funcionalidade pertencente a uma mercado-lógica, na qual forma e beleza são os referenciais.
– Então o que eu entendo por arte é problemático?
– Problemático é atribuir-lhe apropriações indevidas, dissociá-la do mundo quando ela resiste a uma conceituação fixa de sua função. Em arte há diálogos possíveis, existências múltiplas, nada absoluto, mas essencial. Sendo você o homem das Exatas, sabes da impalpabilidade do exato, então te questiono:
– Qual é a relação entre a Matemática e a Física?
Calou-se por um instante, não esperava, e ela continua:
– A Física não precisa da Matemática? Sem a Matemática a Física seria possível? Pois pensemos que todas as coisas estão relacionadas de algum modo, mas muitas vezes temos dificuldades de entender estas relações por uma necessidade demasiada em separar o que está disposto no mundo e classificar. E a arte é o que dificilmente conseguimos abarcar desta maneira. Ela não permite tal facilidade de ordenamento.
– Mas o que é arte?
– Você tem sentimentos, não tem? Você tem necessidade de se expressar, se comunicar? Pense nas palavras, pense na Física, na Química. Você consegue me explicar como é um elétron, um átomo? Talvez supostamente, mas você acredita porque foi provado cientificamente que pode ser isso ou aquilo, não é? Na ciência se criam hipóteses e o experimento tenta enclausurá-las na tentativa de respostas a uma relatividade-abstrata. Na arte não há possibilidade de experimentos e sim experiência. A poesia, a arte, a música como se prova senão a partir da experiência e do embate entre você e ela? As sensações, as interpretações singulares de cada sujeito estão implicadas nesta relação. Se há dificuldade de compreensão ao que digo é porque nosso tempo é bastante fragmentado de experiências, as relações estão confusas, há uma grande perda que se explica pela nossa nebulosidade de olhar o mundo com outros olhos. Parece que só vemos penumbra do mundo. Se não há respostas nos desinteressamos. Talvez por isso, pouco se saiba sobre arte em geral. Muitos tentam reduzi-la a uma explicação plausível ou subitamente descartá-la pela dificuldade do que ela pode ser mesmo que ela não seja, porque ela escapa ao que queremos que ela seja, e é por si mesma.
– Então a arte é muita coisa?
– Sim, e por ser muita coisa ela corre muitos riscos e armadilhas de discursos frágeis. Os referenciais não estão definidos de modo exato e nunca poderão estar. Você é o Felipe, mas qual? Você é você, mas também tantos outros. O que eu vejo é um Felipe, um que aparece para mim, mas não o que aparece para outrem, entende? Você é humano e por isso fascinante dentro da possibilidade do que você pode ser. Também você é sempre outro, porque o tempo interfere em você, em suas experiências de vida e o modo como você aprende e transmuta-se. Você nunca é o mesmo, o referencial é móvel, compreende?
– Nossa! Nunca pensei em tudo isso. Sempre acreditei no domínio da técnica como sendo o maioral da arte, mas vejo que talvez isto fosse importante antes, e agora não mais, não é?
– Dizer que agora não é preciso saber fazer não seria adequado, apesar das mudanças o mais sempre é mais. Um pedreiro precisa saber como se faz uma casa para construí-la, precisa de certa forma, compreender um projeto estrutural e arquitetônico, mesmo que ele não saiba tanto quanto o engenheiro ou o arquiteto dentro de suas especificidades.
– Sim. Mas o arquiteto e o engenheiro estudam muito, criam, e não se compara ao pedreiro.
– Não entendi tal colocação. Então você acha que o trabalho de um pedreiro por ser mais físico e artesanal não tem o mesmo valor? Onde está escrito essa hierarquia de valores, você pode me dizer?
– Não sei, mas penso que o trabalho intelectual é diferente, porque nem todos têm boas ideias.
-E nem todos tem habilidades manuais. Cada um tem seus potenciais e suas debilidades, o que faz de todos iguais. Sem um o outro não atinge seu objetivo. Precisamos dos outros.
– É, acho que foi um pensamento egoísta meu.
– Não se sinta mal por isso. Aprendemos a valorar mais algumas coisas do que outras; o que não quer dizer que estamos impedidos de pensar diferente.
– A partir desta lógica, como você categoriza o trabalho do artista?
– Puxa você me pegou. Parece não corresponder esse meu apontamento, porque o artista geralmente domina ambas as capacidades, portanto, não podemos inseri-lo nesta hierarquia.
– O que destaco nestas observações é o fato de saber também que existe o que é externo a tudo isso, que é o eu chamo do que legitima o artista hoje. Muitas vezes nem a ideia e nem o trabalho precisa ter força, mas o discurso basta. Pense que hoje não se compra uma roupa pela qualidade do tecido, mas sim pela marca conhecida. O valor é algo que colocamos dentro de uma lógica inventada.
– E isso é ruim?
– Não se não formos ingênuos e soubermos que todas as escolhas implicam riscos. E que nem tudo é o que parece, e nem tudo que parece é.
– E como vou entender a arte e tudo o que implica o fazer, o ser arte hoje?
– Não tenho todas as respostas, também nunca poderia tê-las, mas o que me preocupa é não entendermos nem a relação da arte com sua própria história, isso é um agravante que priva e obscurece qualquer esclarecimento. Claro que as coisas mudaram, mas tudo muda, porque o mundo muda e a arte é o reflexo destas mudanças, destes tempos. Vivemos nele e precisamos questioná-lo olhando para trás também. Você é você porque você tem uma história. Se você perder a memória hoje você será outro a partir de outra coisa. Sua fragilidade e o recorte de você implicará em um outro Felipe desvinculado de qualquer passado, presente e futuro do que estaria determinado a partir do que você era antes.
– Como assim?
– Somos dentro de uma possibilidade. Sempre o hoje foge a uma compreensão total de luz, porque olhamos com o olhar do agora. Precisamos entender que as coisas são tão confusas assim por nossa causa, porque classificamos, nomeamos e definimos tudo, até o que seja impossível de definição, e isso faz enxergarmos tudo com muita confusão quando os referenciais são outros, quando estes são inerentes a nós próprios como seres sensíveis e instáveis. Não existe estabilidade, o que existe são maneiras de viver. O que podemos é ver sempre com outros olhos, capazes de ir além do que o limite da visão permite. Não há receita e sim descobertas e entregas. Somos humanos e precisamos entender o que isso significa. Se choramos e sorrimos é porque há uma utilidade nisso, não é mesmo?
Felipe permaneceu em silêncio e ao chegar ao seu destino, levantou-se, olhou para Clara e disse:
– Nunca aprendi tanto.
Ela sorridente responde:
– Se não houvesse suas dúvidas, não haveria minha fala.
Ele se virou e foi embora.
Depois daquela conversa nada mais seria igual.
Imagem tomada de: https://bamarte.com.ar/
*V.B. é pedagoga e artista plástica. Co-fundadora da Cooperativa Comunicacional Sul
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