Datas… mas o que são datas?
Datas são pontas de icebergs.
O navegador que singra a imensidão do mar bendiz a presença destas pontas emersas, sólidos geométricos, cubos e cilindros de gelo visíveis a olho nu e a grandes distâncias. Sem estas balizas naturais que cintilam até sob a luz noturna das estrelas, como evitar que a nau se espedace de encontro às massas subterrâneas que não se vêem?
(Alfredo Bosi)
Além de tragédias, crimes e celebridades, a mídia adora datas comemorativas. Mesmo assim, em seu calendário faltam algumas, como a do dia 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, que passou desapercebido pela mídia de Santa Catarina, com algumas honrosas exceções. A maioria destes veículos – concedidos pelo Estado e constitucionalmente responsáveis pela comunicação social – passaram, mais uma vez, ao largo da mobilização que parou por alguns minutos o km 233 da BR 101, em Palhoça, no chamado Morro dos Cavalos, um dos poucos trechos que se mantém não-duplicado e que atravessa o Parque da Serra do Tabuleiro.
Diferentes dos apaches e cheyennes que costumam ser homenageados pelas escolas no mês de abril, e que atestam nosso desconhecimento dos povos indígenas que povoam o território nacional, os manifestantes do dia 9 eram os mbyá-guarani, moradores da Aldeia Itaty, mais conhecida como Aldeia de Morro dos Cavalos.
Com o apoio de ecologistas, universitários e ativistas de vários movimentos sociais da região, os guarani, suspenderam por alguns minutos o intenso trânsito da rodovia para distribuir um pequeno jornal, buscando esclarecer os passantes a situação de desconsideração de seus direitos e da tensão sob as quais vivem, em função das pressões da sociedade envolvente, em especial os setores e sujeitos ligados ao capital imobiliário.
Os guarani aguardam há mais de vinte anos pela demarcação da Terra Indígena na qual vivem há séculos, hoje de forma precária, sem o reconhecimento que constitucionalmente lhes é devido. Sua presença, neste e em outros territórios do litoral, é fruto de um processo de aceitação deste povo aos inúmeros regramentos da(s) sociedade(s) nacional(is) em sua necessidade de “sedentarizar populações” e demarcar territórios. Um dos problemas que encontram é a camisa de força das nacionalidades, já que historicamente povoaram territórios situados em vários “países” do Cone sul, entre os quais o Paraguai, a Argentina e o Brasil.
Mesmo assim, neste contexto adverso e abdicando em grande parte da mobilidade que caracteriza sua cultura, os guarani tem contribuído com maestria para o manejo sustentável e a preservação da biodiversidade do pouco que resta da Mata Atlântica na litoral catarinense, em franco contraste com as áreas ocupadas pelos não índios, em especial aqueles detentores do capital. Uma simples mirada para o entorno da rodovia – propiciada pelo engarrafamento – permite perceber claramente quais são as áreas tradicionalmente ocupadas pelos guarani – com a mata preservada – e quais são as áreas tomadas pelos brancos – quase todas aplainadas, edificadas e erodidas.
A receptividade dos motoristas contrariou as expectativas nos manifestantes, que esperavam receber xingamentos e ameaças; muitos mostraram sincero interesse, simpatia e curiosidade, alguns identificaram-se como “meio índios”, alegando terem ancestrais indígenas. Vários tiraram fotos do inusitado protesto e poucos – muito poucos ! – expressaram algum tipo de rechaço, indignação e belicosidade. Apenas um dos condutores fez o famoso comentário : “é muita terra para pouco índio”. Chamou atenção a quantidade de motoristas que tomavam chimarrão enquanto aguardavam, esta deliciosa bebida de origem guarani apropriados de imediato pelos imigrantes europeus da região sul.
A preocupação básica dos motoristas era com o tempo que duraria o engarrafamento, que em menos de cinco minutos se materializou, enfileirando carros de passeio, ônibus , e muitos – mas muitos – caminhões. Nesta curiosa vitrine chamada estrada, descortinou-se em pouco tempo um retrato sem retoques do que move a economia brasileira: um desfile quase completo do novo Brasil que vem se impondo na América do Sul: carregamento de cimento, de gasolina, de produtos alimentícios, madeira, água, butijões de gás, e muitas- mas muitas cegonhas. (Contabilizei pelo menos 16 destes extensos veículos que carregam automóveis, todos novos e reluzentes, em menos de 30 minutos.) E claro, os atores desta terra de oportunidades, entre eles motoristas estressados, com horários desumanos a cumprir e mercadorias a entregar, empresários e autoridades invisibilizados pelos vidros fumês e protegidos pelas placas brancas, além de turistas e viajantes com tempo livre e carros finos, carregados de souvenirs e animais de estimação.
É preciso destacar que para a Baixada do Maciambu está previsto um crescimento sem limites para os próximos anos. Em função destes projetos imobiliários de grande porte, houveram nos últimos anos, várias alterações nos marcos legais em Santa Catarina: a transformação do Parque da Serra do Tabuleiro em um Mosaico, a alteração do Código Ambiental Estadual, as recentes alterações dos Planos diretores do município de Palhoça e de Paulo Lopes, aos quais pertencem a maior parte da área litorânea do Parque. Mas elas não bastaram para saciar a voracidade do capital: a terra indígena, se colocou, assim, como mais um entrave a ser banido neste projeto que alguns insistem em chamar de “progresso”, ainda que normas mínimas de saneamento e preservação de recursos e mananciais não façam parte das preocupações dos empreendedores e dos gestores “públicos”. A derrubada de direitos ambientais e territoriais no âmbito federal segue o mesmo diapasão: a alteração do Código Florestal no âmbito federal e a PEC 215(em tramitação) – entre outros processos, afetam diretamente as terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação.
Não obstante discursos formais e políticas fragmentadas que valorizam o “multiculturalismo da nação, os saberes e a cultura dos povos tradicionais, a situação concreta dos indígenas de carne e osso -– e não apenas os que vivem em Morro dos cavalos – comprova que problema do índio no Brasil, como dizia Mariátegui, é um problema da terra. Daí a impossibilidade do mundo do capital respeitar os que desfrutam da terra e dos recursos naturais algo distinto daquele que regime de propriedade lhe destina: fonte de renda, lucro e poder.
Neste engarrafamento do bem (para usar a expressão de um dos manifestantes) em que não houve nenhum conflito, viu-se um momento fugaz, raro e belo de uma interlocução tensa e difícil, de dois projetos de societários e civilizatórios senão opostos, no mínimo, muito diferentes: de um lado, em cima da BR, o cortejo do projeto hegemônico (protagonistas, atores e vítimas): o Brasil “BRIC”, Brasil do IIRSA, do agrobusiness, do crescimento acelerado, da expansão do consumo,do crédito e do endividamento, da precarização do trabalho, elementos intrínsecos do “desenvolvimento” de um país que se impõe imperioso sobre os países vizinhos. Do outro lado, nas margens da rodovia, trilhando as pequenas picadas, avistando ora o Atlântico, ora o Cambirela , um outro mundo, não exatamente novo – posto basear-se em tradições, ainda que reinventadas – mas seguramente outro.
O engarrafamento no trânsito é a expressão mais cabal do Brasil atual. Dialeticamente, ele também produziu, no dia 9 de agosto, para alguns, a possibilidade de pensar. Mas, para que este processo reflexivo aconteça é preciso parar.
Datas são pontas de icebergs…
Petição: Secretaria Nacional dos Povos Indígenas.
Povos indígenas que,
por pressões políticas, econômicas e religiosas ou por terem
sido despojados de suas terras e estigmatizados em função dos seus
costumes tradicionais, foram forçados
a esconder e a negar suas identidades
tribais como estratégia de sobrevivência
– assim amenizando as agruras do
preconceito e da discriminação – estão reassumindo
e recriando as suas tradições indígenas (LUCIANO, 2006, p. 28). http://www.avaaz.org/po/petition/Secretaria_Nacional_dos_Povos_Indigenas/?fgsJddb&pv