Por Edna Garcia Maciel, para Desacato.info.
Itamar Vieira Júnior (1979-) é autor de Torto Arado[i]. Ele recebeu vários prêmios, inclusive, o Leya, de Portugal. Não é para menos. Seu romance é uma ode às mulheres que lutam e que que nunca desistem, por isto mesmo, imprescindíveis à emancipação humana. Os personagens principais são duas irmãs descendentes de escravos que se revezam no relato da fantástica história criada pelo autor. Itamar passa por temas complexos, por vezes, violentos, porém, sem perder a delicadeza – da arte refinada ao abordar questões humanas configuradas em suas histórias. Impossível não sentirmos uma imensa compaixão pelas aguerridas mulheres que dão o tom dessa ficção. Não há diálogos. O autor conduz sua narrativa por meio do que pensam e sentem suas principais personagens: mulheres fortes.
A primeira parte do livro denominada Fio de Corte, inicia a história de um acidente com as irmãs Bibiana – de sete anos de idade – e Belonísia, com seis anos. Aproveintando a ausência da avó Donana, as curiosas meninas reviram seus guardados escondidos em uma mala debaixo de sua cama. Encontram uma faca muito afiada e brilhante que as deixa fascinadas. Então, acontece o acidente. As meninas se ferem e são levadas para serem atendidas na cidade. Elas nunca tinham saído da Fazenda Água Negra e, muito menos, viajado de carro. Ficam espantadas de ver que no hospital há mais gente de pele branca do que negra.
Bibiana era a filha mais velha dos quatro filhos de Salustiana e de Zeca Chapéu Grande, um dos filhos de Donana. A avó das crianças era parteira e curandeira de males do corpo e do espirito. Viera morar com a família quando ficou sozinha na fazenda Caxangá. Donana jamais superou o terrível incidente. Perdeu o interesse por tudo e sua demência progrediu rapidamente. Um dia, encontraram-na caída na beira do rio. Semanas depois, Zeca teve que se tornar curador, tal como sua mãe. Tornou-se pai espiritual da gente de Água Negra.
Sete anos depois do acidente, veio morar em Água Negra, seu tio Servó – irmão de seu pai, com seis filhos. O gerente da fazenda informou-lhe que podia construir sua casa de barro – de alvenaria era proibido – num lugar destinado aos trabalhadores. Disse-lhe que não havia dinheiro, mas que teriam comida do cultivo de uma rocinha perto da casa deles, além de trabalhar na lavoura do patrão. Toda a família precisava trabalhar, inclusive as crianças. O gerente da fazenda, além de receber o fruto do trabalho dos cativos, confiscava parte dos alimentos que eles cultivavam para si mesmos: batatas, abóboras, quiabos e ervas de chá. Eles só conseguiam algum dinheiro vendendo, às escondidas, azeite de dendê e massa de buriti na feira da cidade. Assim, podiam comprar coisas que não produziam. Tal forma de vida, passada de geração em geração, parecia algo natural e eterna à gente da fazenda, em meio à década de 1960. Apartados do mundo, viviam à margem das leis trabalhistas promulgadas pelo governo Vargas há três décadas. Chama especial atenção, neste livro, a descrição de relações de trabalho análogas às da escravidão que ainda persistem. Faz lembrar o grotesco “ornitorrinco”[ii]: uma metáfora utilizada por Oliveira em sua formulação sobre caracteres inusitados do capitalismo no Brasil. Embora Severo não saiba, o trabalho de um cativo – não importam as formas e nem o local onde se efetiva – faz parte do trabalho social, regido pelas leis da acumulação do capital.
Enfim, Bibiana acaba se enamorando de seu primo Severo, filho mais velho de Servó. Fica grávida aos dezesseis anos e esconde o fato dos pais. Severo tinha sonhos: desejava ir embora e ter sua própria terra: trabalhar para si mesmo. Convence Bibiana a deixar Água Negra. Tempos depois, Bibiana vem visitar seus pais com seus dois filhos. Ela conta que a vida deles não tinha mudado na outra fazenda. O destemido Severo, além de trabalhar, participava de atividades sindicais. Tinha esperança de mudar o destino que havia sido designado para sua gente – já sabia, por experiência própria, ser impossível ter sua terrinha.
Na segunda parte do livro, – Torto Arado – Belonísia é a protagonista que conduz parte da história. Revela sua vida a partir do momento em que se junta com Tobias, um homem muito mais velho do que ela. Com o consentimento dos pais, vai morar em seu casebre de três cômodos. Belonísia fica estarrecida diante da sujeira acumulada e da bagunça espalhada por todo canto. Tenta tornar a casa habitável. À noite, ao consumar o casamento, Belonísia descobre que aquilo era mais um trabalho que desconhecia. Porém, essa não era a pior parte. Um dia, Tobias volta bêbado berrando palavras violentas contra todos e atira um prato de comida na direção de Belonísia. Ela sente muita raiva dele, mas não teve medo pois aprendera com sua mãe e sua avó a enfrentar homens insolentes e atrevidos.
Anos depois, Bibiana e Severo voltam para Água Negra. Constroem uma casa próxima à de seus pais. Ela torna-se professora na escola da fazenda e, Severo, além de trabalhar na lavoura, participa das atividades sindicais. Ele possuía a mesma liderança, força e sabedoria de seu pai para conduzir pessoas, mas por caminhos diferentes. Severo era um anunciador dos tempos que viriam. Enquanto isso, a agressividade de Tobias chegou, a tal ponto, que a mãe de Belonísia pede que ela volte para casa. Como se vê, a violência contra mulheres parece uma praga sem fim. Quando Tobias morre de acidente, Belonísia encontra em seus guardados, a faca afiada que havia desaparecido da casa do seu pai.
Depois da última safra de cana, as grandes plantações foram sendo reduzidas ano a ano. Os proprietários estavam velhos e seus filhos não tinham interesse em cuidar da fazenda. Seu pai e outros trabalhadores se aposentaram incentivados pelo gerente, mas continuaram morando e vivendo da mesma maneira. Um dia, apareceu a primeira televisão branco e preto em Água Negra. Foi um acontecimento. Este foi também o último ano de vida de seu pai.
Devido a Severo, Belonísia aprendeu a história de sua gente e descobre, em parte, a causa de seus rancores. José Alcino, seu avô, tinha sido um garimpeiro que migrou, do Recôncavo para a Chapada Diamantina. Estava cansado das atrocidades sofridas pelos negros que enriqueciam coronéis às custas de muito sangue e loucura de trabalhadores. José Alcino vai para a fazenda Caxangá, onde vivia sua avó cativa – ainda jovem. Donana era parteira da fazenda e também raizeira: curava males do corpo e do espírito. Quando seu filho Zeca Chapéu Grande, enlouqueceu, Donana se convenceu de que precisava praticar rituais da religião de seus antepassados. Mas houve um fato terrível causado pelo seu terceiro marido. Sua avó golpeou o criminoso com a mesma faca que, anos depois, seria a causa do acidente de suas netas.
Meses após a morte do pai, a fazenda Água Negra foi vendida, tal como se diz, “de porteira fechada”: como se os corpos cativos fossem mobílias. O novo dono foi impondo restrições: a começar, pela proibição de enterros na Viração, o cemitério de Água Negra. Os velhos acharam aquilo uma ofensa porque há mais de duzentos anos deitavam seus mortos lá. Severo vivia conversando com o povo da fazenda, falando sobre seus direitos, entre outras coisas. Também confrontava os novos donos e o gerente da fazenda. Com a morte do sogro, Severo assumiu de vez a liderança do povo de Água Negra.
Salomão, o novo dono, veio residir na fazenda. Aí, tenta mudar as coisas repentinamente. Disse que pagaria salário aos trabalhadores. Montou um barracão com provisões onde eles podiam comprar mercadorias em troca de seus dias de trabalho. A questão é que, ao adquirir os produtos, os trabalhadores acabavam deixando uma dívida maior do que o pagamento que tinham a receber. Neste campo desigual, Severo levantou a voz. A cada movimento de tirania, a liderança de Severo aumentava. Para não serem expulsos, os cativos construíram casas de alvenaria e Severo fundou uma Associação de Trabalhadores. Foi então, que começou a aparecer um carro de patrulha da polícia.
A terceira parte, – Um Rio de Sangue – é composta de histórias alternadas entre o presente e o passado da família. Severo paga o preço pela sua luta em defesa dos direitos de sua gente. Porém, o novo dono queria plantar café. Em nenhum de seus planos estavam incluídas reivindicações do povo de Água Negra. Os negros revoltados ameaçam tocar fogo na sede da fazenda. A libertação dos escravos deixou a gente negra entregue à sua própria sorte: morrer de fome, ou, submeter-se à servidão. O fato é que a libertação dos escravos – na segunda metade do século XIX – é concomitante à vinda de imigrantes europeus, em sua maioria, destinados a trabalhar em fazendas de café e nas indústrias das cidades. A força de trabalho negra torna-se, historicamente, supérflua, com a vinda incessante de imigrantes já adestrados ao trabalho assalariado. Não foi por acaso que a fazenda Água Negra foi vendida bem abaixo de seu valor: devido à existência de quilombolas. O novo dono pensou em tudo, menos na resistência negra organizada por Severo. Não tinha como destituir os trabalhadores de suas posses, por conseguinte, transformá-los em assalariados, repentinamente.
A dona da fazenda, diante da crescente revolta, traz um pastor para homenagear Zeca. Salustiana foi enfrentar a mulher e disse-lhe: “Fui parida mas também pari esta terra”[iii]. Fala que a terra morava nela e que a morada da terra não estava no documento da fazenda – que a terra não era nada sem o trabalho de sua gente. Então, Belonísia descobre que a faca havia desaparecido de sua sacola e fica aterrada. Ela pressente o inexorável: “Era o fio de corte que rasgava o véu do passado e chegava ao seu presente para fazê-la recordar aquele dia [..]. O punhal de Donana era a lâmina que mais uma vez dividia o corpo , a terra e nela fazia correr o rio de sangue”[iv].
A verdade é que, tal como constata o autor de Torto Arado, os negros travam, ainda hoje, uma batalha insana na tentativa de fazer com que seu problema se torne uma questão geral. O fato inegável é que movimentos configurados em lutas específicas – de negros, índios, quilombolas, professores, dentre outros – embora necessários, parecem insuficientes para mudar os rumos da nossa história. Por isso mesmo, vale o pressuposto de que a libertação dos negros – ou, de toda classe trabalhadora – supõe a emancipação da própria humanidade. Haverá um dia em que homens e mulheres reconhecerão que não precisam mais lutar por terra, moradia, emprego, comida, dentre outras necessidades, tal como no passado. A sociedade burguesa criou, materialmente, condições de produzir riquezas excedentes, há muito tempo. No dia em que essa materialidade se fizer consciência, será inevitável a derrubada da barreira histórica que impede que a riqueza se espalhe pela sociedade. E, então, homens e mulheres livremente associados, se tornarão cidadãos plenamente desenvolvidos.
Torto Arado é um livro surpreendente. A força e riqueza desse romance provêm da maneira singela e, ao mesmo tempo, contundente, no trato de problemas sociais que ainda nos afligem. Interessante observar que, nesse livro, valentes mulheres recortam problemas como facas de fio de corte. Não foram mulheres aguerridas que conduziram, politicamente, a primeira greve geral do Brasil, em 1917? Ademais, foram mulheres que organizaram, na Rússia Imperial, uma passeata de cerca de noventa mil operárias no dia 8 de março, de 1917: contra o desemprego, a carestia e a deterioração das condições de vida do povo russo. Operários metalúrgicos juntaram-se às manifestações que duraram dias, e que acabou precipitando a Revolução Russa de 1917[v]. Por conseguinte, nos países da União Soviética, o “Dia da Mulher” passou a ser comemorado, todos anos, a oito de março. Meras coincidências? Não parece. Somente em 1975 é que a ONU institui o dia oito de março como “Dia Internacional da Mulher”. Tais fatos, davam indícios do que viria depois. Na década de 1960, movimentos revolucionários estremeceram, não só o Brasil, mas toda América Latina. Por isso mesmo, foram instaurados regimes ditatoriais nos países latinos a fim de barrar o avanço da história. Depois disso, perdemos a capacidade ou, abrimos mão de sonhar com um futuro de grandeza? Assim, vale ainda a indagação: o problema dos negros, tal como aparece em Torto Arado, não seria um reflexo da degeneração social em que nos encontramos, desde então? Talvez seja essa questão que Torto Arado instiga à reflexão.
[i] VIEIRA, Itamar Júnior. Torto Arado. 7ª. Reimpressão. Editora Todavia, São Paulo, 2020.
[ii] Ornitorrinco é um mamífero que bota ovo, tem bico igual ao do pato, tem patas e rabo. Este estranho animal inspirou o sociólogo Francisco de Oliveira (1933-2019) a acrescentar um estudo em seu livro, “Crítica à razão dualista: O Ornitorrinco”. Segundo o pesquisador, o capitalismo no Brasil, semelhante ao bicho, combina coisas diferentes e desiguais formando uma síntese dialética. Neste caso, o trabalho cativo com o trabalho assalariado – porque o capital é movimento que encarna em distintas formas de trabalho e as submete à sua lógica. De acordo com essa formulação, não existem dois brasis: um atrasado e, um outro, desenvolvido, por conseguinte, dual.
[iii] VIEIRA, Itamar Júnior. Torto Arado. 7ª. Reimpressão. Editora Todavia, São Paulo, 2020. p.229.
[iv] VIEIRA, Itamar Júnior. Torto Arado. 7ª. Reimpressão. Editora Todavia, São Paulo, 2020. p.234.
[v] Dizem que a ideia de uma celebração anual surgiu depois que o Partido Socialista da América organizou um “Dia da Mulher”, em fevereiro de 1909, em Nova York, numa jornada pela igualdade de direitos civis e a favor do voto feminino. Em uma “Conferência de Mulheres da Internacional”, em Copenhague, Clara Zetkin, do Partido Comunista Alemão, sugeriu que o “Dia da Mulher” fosse celebrado anualmente, mas sem definir a data. Assim, a partir de 1913, mulheres russas passaram a celebrá-lo no último domingo de fevereiro. Somente em 1917 é que o dia 8 de março se tornou definitivo como “Dia da Mulher” – com a Revolução Russa. O “Dia Internacional da Mulher” foi instituído em 1975 pelas Nações Unidas e é comemorado em mais de cem países do mundo. Disponível em: pt.wikipedia.org/ wiki/Dia_Internacional_da_Mulher. Acesso em: 25, fevereiro, de 2021.
–
Edna Garcia Maciel é natural de Igarapava, São Paulo. Foi professora e pesquisadora da UFSC. Doutora em Educação. Atualmente, participa do Núcleo de pesquisa Transformações no Mundo do Trabalho, da UFSC. Livros literários são parte do seu viver.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
Leia mais:
8M – Dia Internacional de Luta das Mulheres – Estreia do JTT-A Manhã com Dignidade. Assista!