Saí cedo hoje. Andei muito como sempre. Parei pra comprar uma revista e acabei conversando com três crianças que cuidavam de carros. Eles insistiram em guardar minha bicicleta… Um amontoado de palavras: a-gente-guarda-a-gente-olha-compra-a-revista-não-tem-perigo-a-gente-olha-se-vier-alguém-tenho-canivete.
Por Luciane Recieri, para Desacato.info.
– Quantos anos têm? – Oito, dona. Ele, 10. Meu primo, 12. – Moram por aqui? – Não… Lá no Primeiro de Maio. – Vieram a pé? – É, tia. Estava muito frio, queria conversar mais…
Eles não paravam de brigar, talvez pra se aquecerem. Queria perguntar da escola, estas basbaquices que adultos perguntam porque não sabem como disfarçar o pouco caso, mas não deu. Começaram a se bater de verdade e meter o indicador na cabeça do outro: – Tenho um “três oitão”.
Despedi-me. Dever cumprido, falei com eles. Entrei em casa e a Anna me abraçou, menina estranha a Anna. Sacou que eu estava triste. – É Anna… triste. – Por que, mãe? – Porque a gente se acostuma com tudo na vida. – Tudo mesmo? – Tudo: morte, envelhecimento, partida, solidão, descaso, incompetência, barriga, o cacete. – Duvido. Você não entende a miséria. – É, Anna. Tomamos o café e não sinto mais vontade de nada por hoje.
Imagem: autor anônimo
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[avatar user=”Luciane Recieri” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /] Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP.